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26/11/2001 - 06h52

Aliança diz que respeitará prisioneiros

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IGOR GIELOW
da Folha de S.Paulo

Burhanuddin Rabbani, o presidente do Afeganistão deposto pelo Taleban que voltou a Cabul há duas semanas, concedeu ontem uma rara entrevista coletiva na qual passou quase 70% do tempo repetindo a mesma frase: "Vamos respeitar os prisioneiros, não mataremos ninguém exceto aqueles que estão em combate".

A preocupação é clara: a imagem da Aliança do Norte, grupo do qual é líder simbólico, está arranhada pelos relatos de atrocidades cometidas pelas tropas após a saída do Taleban do norte afegão.

"Eu dei ordem expressas a meus comandantes para que tratem bem os prisioneiros", afirmou Rabbani, citando nominalmente o uzbeque Rashid Dostum, que retomou a cidade de Mazar-e-Sharif no início do mês. Lá, a Cruz Vermelha já achou 600 corpos -a maioria do Taleban, segundo informações extra-oficiais, e pelo menos cem executados.

Rabbani reiterou que "a lei internacional" de respeito a prisioneiros será respeitada. A chave são os chamados estrangeiros, combatentes de outras nações que se uniram ao Taleban por motivos principalmente ideológicos. São árabes de vários países, paquistaneses e tchetchenos.

Eles são vistos como guerreiros sanguinários. Mesmo prometendo "perdoar a todos", o presidente da Aliança reforçou o estereótipo ao relatar um suposto ataque de dois tchetchenos que se entregaram anteontem nos arredores de Mazar. "O general Dostum disse que eles jogaram granadas contra as tropas. Mataram o general Nadar Ali e foram mortos."

Mortos não falam
Rabbani pode estar certo, mas, como mortos não falam, alguns detalhes jogam tintas sombrias no quadro róseo que pintou.

Perto de Bagram, vilarejo que ganhou atenção mundial por ser palco de uma feroz batalha entre o Taleban, a Aliança do Norte e os EUA pelo controle de sua estratégica pista de pouso, há um pequeno cemitério muçulmano.

As covas são divididas em quatro colunas. Uma leva a inscrição "Exército de Muhammad", forma pela qual os afegãos que caíram lutando pela milícia extremista são chamados até hoje. As outras três ficam sob a chancela "estrangeiros", dando idéia da proporção de baixas por grupo.

Divisão semelhante se encontra no hospital militar de Cabul, onde 15 feridos ainda estão internados. A direção não permitiu nem entrevistas nem fotografias.

"Não identificamos por quem os soldados lutavam nem como foram mortos. Está fora de nossa jurisdição, que é a de evitar problemas de saúde pública devido à exposição dos cadáveres e dar um enterro digno aos corpos", disse o delegado da Cruz Vermelha em Cabul, Bernard Barrett.

A Folha acompanhou anteontem uma equipe de seis homens da entidade, que foi recolher corpos perto de Bagram. Todos os cinco encontrados eram do Taleban, e quatro deles foram muito provavelmente executados.

Rabbani dá a todas as suspeitas o rótulo de "propaganda enganosa". "Disseram que havia uma cova rasa com corpos do Taleban perto de Bagram. Não é possível, até porque tomamos a cidade em um dia e a cova apareceu no outro, não daria tempo para fazer algo assim. Foi coisa do Taleban."

O cemitério é o local de repouso dos 61 corpos retirados até sábado dos campos de batalha próximos a Cabul desde que o Taleban se retirou para o sul afegão.

O número é dez vezes menor do que o registrado em Mazar-e-Sharif, porque o Taleban se retirou antes da ofensiva final da Aliança.

A Cruz Vermelha, que trabalha com ajuda do Crescente Vermelho local, só está trabalhando nas áreas totalmente pacificadas.

Ou quase, pois o pequeno comboio que a entidade organizou na manhã de sábado para levar jornalistas para acompanhar o recolhimento de corpos teve que ser parado para esperar uma escolta armada na vila de Khalai Gulai.

A equipe, conduzida pelo corpulento e gritalhão Washai, encontrou primeiro três corpos juntos a um muro com tiros na cabeça. Dois estavam bem decompostos, em pedaços, mas era possível ver nos crânios já à mostra o ferimento por bala. O resultado lembrava muito as fotos feitas pelos soldados norte-americanos que chegaram à frente ocidental européia em 1918 e ficaram morbidamente fascinados com esqueletos em uniformes.

Um quarto corpo foi achado junto a uma viela, mas estava tão decomposto que foi impossível saber a causa da morte numa olhada. Isso será feito pelo legista da Cruz Vermelha, que analisará as fotos tiradas por um membro da equipe -o corpo em si não é examinado, é levado para enterro.
Um mulá (sacerdote muçulmano) assegura os rituais de praxe, mas o corpo não é lavado, como tradicionalmente ocorre no islã.

"A orientação é que morto em combate não pode ser lavado", afirma Washai, entre uma ordem e outra dada a seus homens, que ganham 200 mil afeganis (cerca de US$ 6) por dia de trabalho. Já o quinto corpo da manhã, o 61, foi brutalmente morto. "Era um paquistanês terrível, que estava aqui há um ano aterrorizando a todos. Foi morto por oito pessoas, a pauladas, facadas e tiros", afirmou Toza Ghol, 28, ex membro do Taleban de origem pashtu.

Como desertor, Ghol não poupa críticas a seus ex-chefes. "Eles promoveram massacres, principalmente por causa dos estrangeiros envolvidos", afirmou, dando a medida do sentimento de vingança no ar.

O resultado é visível. O cadáver 61, razoavelmente conservado, estava com a metade da cabeça ainda não decomposta completamente desfigurada e as pernas, quebradas em dois pontos. O couro cabeludo foi arrancado e jogado a cerca de cinco metros do corpo. ""Recolham tudo", disse um impassível Washi, antes de convidar os presentes para um chá após o trabalho.

Burhanuddin Rabbani terá trabalho para fazer valer seu ponto de vista.

Leia mais:
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