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28/01/2002
-
18h08
MIKE WOOLDRIDGE
da BBC, no Afeganistão
Eu me surpreendi ao descobrir o que Razia fazia - ela foi uma das primeiras mulheres a se tornar motorista de caminhões-guindaste no Afeganistão. Mas a maior surpresa foi conhecer alguém que gostasse tanto do que fazia.
Razia é uma mulher de meia-idade e vive num dos apartamentos da fábrica em que começou a trabalhar aos 14 anos.
Ela começou como operária, mas já tinha sido promovida a motorista quando operou o caminhão-guindaste que ajudou a construir o prédio em que ela mora.
O seu prédio e os vizinhos foram feitos na época da ocupação soviética. Os blocos estão em péssimo estado de conservação. O lixo se acumula na rua e falta eletricidade com frequência.
Tragédias
Razia diz em tom de brincadeira que eu trouxe a eletricidade comigo. Depois de uma longa interrupção, a energia elétrica acaba de ser reestabelecida e podemos nos sentar perto do aquecedor elétrico, na fria noite de inverno, enquanto conversamos.
Nos sentamos à moda afegã, em tapetes no chão. Um xale verde cobre a cabeça de Razia, que se senta com a neta no colo.
Ela conta que foi arrimo de família por muito tempo. O salário da sua adolescência, como operária, ajudava a manter seus pais e as irmãs. O único irmão havia sido morto.
Ela se casou com um oficial do Exército, que também foi morto.
Mas as tragédias na família não param por aí: dois dos seis filhos que ela teve morreram numa batalha entre facções de mujahedins, no início dos anos 90. Uma das suas filhas já é viúva.
Razia tem cicatrizes de um ferimento de bomba e não me supreende que ela tenha saudade de um tempo em que o Afeganistão era diferente e no qual ela tinha um emprego do qual se orgulhava.
Trabalho duro
Ela diz que trabalhava duro. E lembra de um ministro ter ficado tão satisfeito com a construção rápida de um prédio, que deu a ela dois meses de salário como gratificação.
Razia ajudou a construir a embaixada soviética em Cabul. E conta que mantinha boas relações com os supervisores russos. Poderia ter ido para a União Soviética para fazer um treinamento, mas não foi por causa das responsabilidades familiares.
Ela reluta em dizer o que realmente pensa da invasão soviética de 1979.
Talvez seja nostalgia dos dias em que ela passava "no ar", como descreve o tempo que passava controlando o guindaste.
Taleban
O mundo dela começou a mudar quando os rebeldes muçulmanos que lutavam contra a Rússia tomaram o poder.
Dirigir era trabalho de homem e ela perdeu o emprego. Tornou-se faxineira, até o Taleban assumir o poder e proibir o trabalho feminino.
Para sustentar a família ela começou a vender tudo o que tinha no apartamento, mas conta que passou fome muitas vezes.
Ela não tinha dinheiro para comprar o véu que o Taleban exigia que toda mulher usasse e tinha que pegar o da vizinha emprestado.
E conta que viúvas como ela que se arriscassem a esmolar nas ruas corriam o risco de ser espancadas.
Bomba
Eu notei, ao chegar, que a apenas algumas centenas de metros do apartamento dela havia uma cratera na rua, que podia ser vista do seu apartamento. Razia conta que o buraco foi aberto por uma bomba americana.
E diz que todos tinham medo quando os aviões B-52 sobrevoavam a cidade. Mas que tinham também esperanças de que o Taleban fosse ser derrubado.
Olhamos na janela e, para além da cratera, está o aeroporto que acabou de ser reaberto. Um avião russo de carga estava pousando em meio aos entulhos de duas décadas de guerra: aviões derrubados e prédios destruídos.
À esquerda, a fábrica na qual Razia trabalhava também está num estado lastimável: máquinas quebradas, entulho, portões enferrujados e paredes caindo.
Dá para perceber que Razia fica com o coração partido ao olhar para a fábrica, que hoje tem um décimo dos trabalhadores que costumava ter nos dias de glória.
Razia só tem um pedido hoje: ela quer trabalhar. E não há nada no mundo que ela queira mais do que voltar a controlar um guindaste e participar da reconstrução do Afeganistão.
Não sei se ela vai conseguir o que ambiciona. Mas, ao sair do apartamento, cruzo com meninas voltando da escola e fico imaginando se alguma delas vai seguir os passos de Razia no novo Afeganistão.
Leia mais no site da BBC
Veja também:
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Mulher sonha em voltar a dirigir guindaste no Afeganistão
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da BBC, no Afeganistão
Eu me surpreendi ao descobrir o que Razia fazia - ela foi uma das primeiras mulheres a se tornar motorista de caminhões-guindaste no Afeganistão. Mas a maior surpresa foi conhecer alguém que gostasse tanto do que fazia.
Razia é uma mulher de meia-idade e vive num dos apartamentos da fábrica em que começou a trabalhar aos 14 anos.
Ela começou como operária, mas já tinha sido promovida a motorista quando operou o caminhão-guindaste que ajudou a construir o prédio em que ela mora.
O seu prédio e os vizinhos foram feitos na época da ocupação soviética. Os blocos estão em péssimo estado de conservação. O lixo se acumula na rua e falta eletricidade com frequência.
Tragédias
Razia diz em tom de brincadeira que eu trouxe a eletricidade comigo. Depois de uma longa interrupção, a energia elétrica acaba de ser reestabelecida e podemos nos sentar perto do aquecedor elétrico, na fria noite de inverno, enquanto conversamos.
Nos sentamos à moda afegã, em tapetes no chão. Um xale verde cobre a cabeça de Razia, que se senta com a neta no colo.
Ela conta que foi arrimo de família por muito tempo. O salário da sua adolescência, como operária, ajudava a manter seus pais e as irmãs. O único irmão havia sido morto.
Ela se casou com um oficial do Exército, que também foi morto.
Mas as tragédias na família não param por aí: dois dos seis filhos que ela teve morreram numa batalha entre facções de mujahedins, no início dos anos 90. Uma das suas filhas já é viúva.
Razia tem cicatrizes de um ferimento de bomba e não me supreende que ela tenha saudade de um tempo em que o Afeganistão era diferente e no qual ela tinha um emprego do qual se orgulhava.
Trabalho duro
Ela diz que trabalhava duro. E lembra de um ministro ter ficado tão satisfeito com a construção rápida de um prédio, que deu a ela dois meses de salário como gratificação.
Razia ajudou a construir a embaixada soviética em Cabul. E conta que mantinha boas relações com os supervisores russos. Poderia ter ido para a União Soviética para fazer um treinamento, mas não foi por causa das responsabilidades familiares.
Ela reluta em dizer o que realmente pensa da invasão soviética de 1979.
Talvez seja nostalgia dos dias em que ela passava "no ar", como descreve o tempo que passava controlando o guindaste.
Taleban
O mundo dela começou a mudar quando os rebeldes muçulmanos que lutavam contra a Rússia tomaram o poder.
Dirigir era trabalho de homem e ela perdeu o emprego. Tornou-se faxineira, até o Taleban assumir o poder e proibir o trabalho feminino.
Para sustentar a família ela começou a vender tudo o que tinha no apartamento, mas conta que passou fome muitas vezes.
Ela não tinha dinheiro para comprar o véu que o Taleban exigia que toda mulher usasse e tinha que pegar o da vizinha emprestado.
E conta que viúvas como ela que se arriscassem a esmolar nas ruas corriam o risco de ser espancadas.
Bomba
Eu notei, ao chegar, que a apenas algumas centenas de metros do apartamento dela havia uma cratera na rua, que podia ser vista do seu apartamento. Razia conta que o buraco foi aberto por uma bomba americana.
E diz que todos tinham medo quando os aviões B-52 sobrevoavam a cidade. Mas que tinham também esperanças de que o Taleban fosse ser derrubado.
Olhamos na janela e, para além da cratera, está o aeroporto que acabou de ser reaberto. Um avião russo de carga estava pousando em meio aos entulhos de duas décadas de guerra: aviões derrubados e prédios destruídos.
À esquerda, a fábrica na qual Razia trabalhava também está num estado lastimável: máquinas quebradas, entulho, portões enferrujados e paredes caindo.
Dá para perceber que Razia fica com o coração partido ao olhar para a fábrica, que hoje tem um décimo dos trabalhadores que costumava ter nos dias de glória.
Razia só tem um pedido hoje: ela quer trabalhar. E não há nada no mundo que ela queira mais do que voltar a controlar um guindaste e participar da reconstrução do Afeganistão.
Não sei se ela vai conseguir o que ambiciona. Mas, ao sair do apartamento, cruzo com meninas voltando da escola e fico imaginando se alguma delas vai seguir os passos de Razia no novo Afeganistão.
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