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10/02/2002 - 07h44

Julgamento de Milosevic expõe feridas

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MARCELO STAROBINAS
da Folha de S.Paulo, em Londres

Começa nesta terça-feira o julgamento do ex-ditador da Iugoslávia Slobodan Milosevic, 60, um processo que promete se tornar um marco na história do direito internacional.

Embora sejam abundantes as provas de massacres nos conflitos dos Bálcãs nos anos 90 -e Milosevic foi peça-chave em todos eles-, a promotora italiana Carla del Ponte tem pela frente a espinhosa tarefa de implicá-lo como mentor intelectual dos crimes.

Preso em Belgrado em abril do ano passado e extraditado para Haia, na Holanda, sede do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, Milosevic é o primeiro ex-chefe de Estado a sentar no banco dos réus de uma corte internacional. Desde os julgamentos de ex-líderes da Alemanha nazista em Nurenbergue, nos anos 40, a Europa não presencia um processo contra um político de tão alto escalão acusado por atos de tamanha gravidade.

A promotoria indiciou Milosevic e quatro de seus homens fortes -Milan Milutinovic (ex-presidente da Sérvia, uma das repúblicas que compõem a Iugoslávia), Nikola Sainovic (que foi vice-premiê iugoslavo), general Dragoljub Ojdanic (ex-comandante do Exército da Iugoslávia) e Vlajko Stojiljkovic (ex-ministro do Interior sérvio)- por, entre outras coisas, genocídio, crimes contra a humanidade e violações de leis e costumes de guerra. Dos cinco, apenas Milosevic está detido.

A acusação vai sustentar a seguinte tese: após o desmembramento da antiga Iugoslávia, em 1991, Milosevic e seus subordinados sonhavam em constituir uma "Grande Sérvia". Com esse objetivo, empenharam-se em orientar tropas e milícias sob o seu controle a varrer do mapa populações não sérvias inteiras (croatas, muçulmanos, albaneses) de regiões que lhes interessavam na Croácia, na Bósnia e em Kosovo.

O julgamento, que deve durar até dois anos com o depoimento de centenas de testemunhas, promete tocar em feridas ainda não cicatrizadas de centenas de milhares de pessoas que perderam seus familiares e suas casas e sofreram todo tipo de violência física.

Organizações internacionais defensoras dos direitos humanos observam que a condenação de Milosevic seria um poderoso recado a ditadores de todo o mundo, que não seriam mais capazes de cometer atrocidades em massa impunemente.

Esses grupos lamentam apenas o fato de que o ex-líder iugoslavo é a exceção, não a regra -dezenas de procurados por crimes de guerra continuam livres nos Bálcãs, entre eles os líderes dos sérvios da Bósnia Radovan Karadzik e Ratko Mladic.

"Esse julgamento é um grande passo adiante para a Justiça", disse em comunicado Richard Dicker, diretor do programa de Justiça internacional da organização Human Rights Watch. "Mas é igualmente notável o número de criminosos de guerra indiciados ainda não capturados."

Dois pesos e duas medidas

Críticos da realização do julgamento costumam concordar com os argumentos do próprio Slobodan Milosevic, que se diz vítima de uma vingança política orquestrada pelos países mais poderosos do mundo, sobretudo os EUA e seus aliados da Otan, que bombardearam a Iugoslávia em 1999.

Segundo essa linha de raciocínio, as grandes potências não estão engajadas em promover a moralidade nas relações internacionais, mas apenas os seus próprios interesses.

Prova disso, observam, é o uso de dois pesos e duas medidas: enquanto há uma corte especialmente criada para condenar os líderes sérvios, ninguém se encarrega de julgar os presidentes e generais americanos pela morte de civis inocentes no Iraque, no Afeganistão ou na própria Iugoslávia. O governo da Rússia também não é responsabilizado pelo banho de sangue promovido na Tchetchênia.

De todo modo, o tribunal para crimes na ex-Iugoslávia não costuma realizar condenações sumárias. Desde o seu estabelecimento, em 1993, após aprovação de resolução na ONU, cerca de 80 pessoas já foram indiciadas, e as que foram a julgamento tiveram o direito de se defender.

O empenho da Promotoria na busca de documentação e de testemunhas é por si só uma evidência de que o veredicto não foi definido de antemão. Segundo especialistas em direito internacional, Del Ponte tem um caso duro pela frente, principalmente na missão de condená-lo por genocídio. Terá de provar a existência de canais de comunicação e hierarquia de comando ligando Milosevic e os outros quatro acusados a chefes de grupos paramilitares na Bósnia e na Croácia que nem sempre atuavam em coordenação com Belgrado.

"Não é tão fácil provar que alguém tivesse controle sobre essas pessoas", disse à agência de notícias Reuters Avril Mcdonald, do Instituto Asser de direito internacional em Haia. "O fato de Milosevic ter sido o chefe de Estado não significa que ele possa ser automaticamente julgado culpado de alguma coisa."

A virtual ausência de documentos comprovando essas relações também enfraquece o caso da Promotoria, que dependerá sobretudo do depoimento de testemunhas de pessoas próximas a Milosevic. Del Ponte encontra aí um novo obstáculo: muitas dessas autoridades se negam a depor, por simpatizarem com o ex-ditador ou por temerem represálias.

Na opinião do analista político iugoslavo Nenad Stefanovic, a tese da "Grande Sérvia" também pode ser um percalço para a promotora. "Os representantes da Promotoria mencionam, por exemplo, que Milosevic tentava incluir Kosovo dentro de sua "Grande Sérvia". Essa talvez seja a perspectiva histórica da CNN, mas não tem base nos fatos", disse ele à Folha. "Kosovo, historicamente, geograficamente e politicamente, sempre pertenceu à Sérvia. Você não pode falar que Milosevic tentou constituir uma "Grande Sérvia" tentando controlar seu próprio território."

Apesar disso, o caso kosovar, que será o primeiro tema a ser abordado em Haia, é tido como o principal trunfo nas mãos da Promotoria. As violações aos direitos humanos cometidas no conflito do primeiro semestre de 1999 foram bem documentadas. Por se tratar de território sob controle direto das autoridades de Belgrado -diferentemente de Bósnia ou Croácia-, fica mais fácil reconhecer o papel do ex-ditador nas atrocidades.

Milosevic é acusado pelo assassinato de 500 albaneses identificados nominalmente em cidades como Racak e Izbica. Também terá de responder pela deportação de 740 mil albaneses da Província iugoslava.

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