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03/03/2002 - 06h22

Votação decide hoje se Suíça entra na ONU

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MARCOS GUTERMAN
da Folha de S.Paulo, na Suíça

A Suíça expõe hoje nas urnas sua crise de identidade. Os eleitores vão decidir se aceitam a adesão do país à ONU, pondo oficialmente fim à sua histórica posição de neutralidade.

A campanha do referendo mobilizou um país que tradicionalmente supera seus impasses por meio de outro orgulho nacional, a chamada democracia direta, em que os eleitores têm a oportunidade de opinar por meio de consultas como a de hoje.

(Mobilizou também porque a Suíça se encontra há muito tempo na confortável condição de poder colocar essas discussões no centro de sua agenda, em detrimento de questões mais "mundanas", como desemprego e pobreza. Em conversa com jornalistas estrangeiros, Willy Blondel, responsável pela administração da pequena cidade de Lutry, resumiu esse luxo ao comentar, com franqueza, quais eram os principais problemas locais: "Nenhum".)

Entre os diplomatas, políticos e personalidades com quem a Folha falou no país, há uma unanimidade: a entrada na ONU é imperiosa. "A Suíça não pode mais dar as costas ao resto do mundo", disse Cécile Bühlmann, deputada do Partido Verde.

Os defensores do "sim" argumentam que a neutralidade suíça não se justifica mais desde o final da Guerra Fria, época que, de fato, demandava um terreno não alinhado para abrigar os organismos internacionais.

A Suíça é sede de importantes tribunas, especialmente (e hoje paradoxalmente) a própria ONU, da qual somente os suíços, Taiwan e o Vaticano não são integrantes. Embora o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, tenha assegurado que a entidade permanecerá em Genebra mesmo que o "não" vença, os adesistas entendem que essa permanência será moralmente indefensável.

Além da questão moral, a presença da ONU significa substancial transferência de recursos dos países-membros a Genebra. Como já há uma forte candidata a receber a ONU _Bonn, substituída por Berlim como capital alemã, dispõe da estrutura administrativa necessária e está situada em um país bastante atuante na cena internacional_, a Suíça se sente ameaçada de perder a condição de centro diplomático.

Por fim, os adesistas consideram que se ausentar dos debates hoje significa compactuar com a desigualdade: somente o ingresso na ONU permitiria à Suíça manter-se na "vanguarda do espírito humanitário", conforme diz Bertrand Piccard, o herói suíço que deu a volta ao mundo em um balão, lembrando mais uma faceta do país apreciada pelos suíços, criadores da Cruz Vermelha.

No bloco dos contrários à adesão alinha-se sobretudo a direita nacionalista, liderada pelo SVP (Partido do Povo Suíço, na sigla em alemão). Segunda força no Parlamento, o SVP se nega inclusive a discutir o assunto com jornalistas estrangeiros. "Eles se recusariam a falar em inglês", provoca a deputada Bühlmann.

Essa repulsa baseia-se na convicção de que aderir à ONU significa o fim da estabilidade política e econômica de que goza a Suíça. De acordo com esse raciocínio, além da perda de identidade nacional, os suíços enfrentariam ingerência externa sobre a condução de sua agenda, ficando ao sabor dos imprevisíveis ventos políticos internacionais.

"Esse medo encontra ressonância principalmente nos Cantões [Estados] de língua alemã, mais conservadores", afirma Jean-Louis Bernier, diretor da Edipresse, grupo de comunicação que edita diversos jornais na Europa, entre os quais o suíço "Le Matin".

A vitória do "não", segundo Bernier, pode ocorrer justamente por causa dessa parte do eleitorado, majoritária no país e que não deixa de votar. De acordo com o sistema suíço, a adesão à ONU, para ser aprovada, necessita de dupla maioria dos votos: dos eleitores e dos Cantões.

A última pesquisa de intenção de voto indica que o "sim" dispõe de 54%, contra 37% para o "não". Os demais são indecisos. Para analistas políticos, os 54% são suficientes para forçar a maioria também entre os 26 Cantões. Em 1986, ano da última consulta sobre a adesão à ONU, ainda sob o cenário da Guerra Fria, não houve muitas dúvidas: 75% dos eleitores votaram "não".

Um diplomata suíço, representando um governo fortemente comprometido com a tese da adesão à ONU e da abertura à Europa unificada, comentou que a discussão sobre a neutralidade suíça ganhou impulso na década de 90, quando emergiram provas de que bancos do país, sempre amparados pelo sigilo, haviam recebido depósitos em ouro e bens roubados dos judeus pelos nazistas da Alemanha.

Essa "neutralidade ambígua", quando revelada, ampliou o mal-estar na Suíça em relação ao seu crescente isolamento. Afinal, o sigilo bancário, criado para proteger o capital de protestantes perseguidos pelos reis católicos na Europa do século 16, estava servindo para assegurar o fausto de regimes como os de Hitler, Somoza, Mobutu e Ceausescu.

Diante disso, o governo suíço deflagrou uma dupla ofensiva: de mobilização interna, pelo "sim" à ONU; e de relações públicas no exterior _há dois anos, criou uma agência, a Presence Switzerland, cujo objetivo, conforme declarado em sua carta de intenções, é "reforçar e coordenar a imagem da Suíça em outros países, com a missão de revelar um retrato autêntico" do país.

É então a redefinição da imagem nacional que está em jogo hoje nas urnas da Suíça. "Eu ficaria extremamente desapontado se o povo suíço votasse contra a adesão à ONU", declarou Kofi Annan em entrevista à TV local. "Pode a Suíça realmente ficar à margem da comunidade global?", questionou o secretário-geral da ONU, para em seguida afirmar que o "não" à adesão deixaria o mundo "moralmente, politicamente e socialmente confuso". Ou, como resumiu o diplomata suíço, seria um "vexame".
 

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