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24/03/2002 - 04h15

Documentos revelam cotidiano da Al Qaeda

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DAVID ROHDE
C.J. CHIVERS


do "The New York Times"

Em 17 de agosto de 1995, Amir Maawia Siddiqi, filho do proprietário de uma livraria numa pequena cidade do Paquistão, fez seu juramento de fidelidade. "Eu, Amir Maawia Siddiqi, filho de Abdul Rahman Siddiqi, afirmo, na presença de Deus, que vou abater infiéis durante toda a minha vida", escreveu. "E, com as bênçãos de Deus, cometerei essas mortes com a supervisão e a orientação do Harkat ul-Ansar." Recebeu um codinome, Irmão Rashid, assinou o documento e concluiu: "Que Deus me dê forças para cumprir esse juramento."

Encontrado numa casa em Cabul usada por um grupo islâmico paquistanês, o juramento faz parte de uma longa trilha de papéis deixada para trás por combatentes do Taleban e da Al Qaeda -em fuga- em locais espalhados por todo o Afeganistão. Jornalistas do ""New York Times" recolheram mais de 5.000 páginas de documentos de casas usadas por militantes, depois abandonadas, e de campos de treinamento.

É uma coletânea rara e que revela muito sobre o cotidiano dos ""jihadis". Tomados um por um, os documentos não passam de fragmentos, coisas tão corriqueiras quanto listas de compras ou tão sinistras quanto anotações sobre o posicionamento correto de uma bomba oculta num caminhão. Vistos em conjunto, porém, proporcionam uma visão do lado de dentro da rede de grupos islâmicos radicais que Osama bin Laden ajudou a reunir no Afeganistão.

Os documentos mostram que os campos de treinamento, descritos pela administração de George W. Bush como fábricas de terroristas, eram voltados muito mais à formação de um exército para dar apoio ao Taleban, que travava uma longa guerra terrestre contra a Aliança do Norte.

Estimados 20 mil recrutas passaram por aproximadamente 12 campos de treinamento desde 1996, quando Bin Laden montou sua base de operações no Afeganistão, dizem funcionários americanos. A maioria recebeu treinamento básico de infantaria, que cobria o uso de diversas armas pequenas, além de armamentos antiaéreos e antiblindados e, em alguns casos, conforme mostram os documentos, os procedimentos básicos usados em demolições.

Um grupo menor de recrutas era selecionado para ser submetido ao treinamento de elite, que, ao que parece, os preparava para conduzir ações terroristas no exterior. ""Observar embaixadas e instalações estrangeiras" era o tema de um dos cursos de espionagem da Al Qaeda. Outro ensinava a ""atirar numa personalidade pública e em seu guarda-costas desde uma moto".

Os documentos mostram, sobretudo, até que ponto Bin Laden avançara na concretização de seu objetivo central: unir militantes islâmicos, engajados em causas locais, num exército global voltado contra o Ocidente. A partir de meados dos anos 90, começaram a chegar ao Afeganistão recrutas vindos de mais de 20 países, tão diversos quanto Iraque e Malásia, Somália e Reino Unido.

Os jovens chegavam ao Afeganistão sob a égide de diversos grupos militantes distintos, cada um dos quais mantinha campos de treinamento próprios. Mas, uma vez no país, recebiam cursos semelhantes de doutrinação religiosa e de treinamento militar. Partes do mesmo manual terrorista em idioma árabe foram encontradas em casas ocupadas por três desses grupos: a Al Qaeda, o Movimento Islâmico do Uzbequistão e o grupo paquistanês Harkat ul-Ansar, que mudou seu nome para Harkat ul-Mujahadeen e foi vinculado ao assassinato do jornalista americano Daniel Pearl.

Debaixo desse mesmo ""guarda-chuva" se reunia um misto de línguas escritas e faladas. Mais de meia dúzia estão presentes nos documentos traduzidos pelo ""New York Times": árabe, urdu, tadjique, dari, pashtu, uzbeque e russo. Alguns poucos documentos estavam em inglês.

Essa comunidade de militantes avançou tanto que assumiu ares de uma burocracia. Havia formulários para registrar as munições adquiridas, os gastos, o pessoal e muito mais. Como acontece com gerentes em todo o mundo, os comandantes da Al Qaeda reclamavam de seus chefes. Em uma carta, um comandante se solidarizava com outro com relação à falta de apoio dado pelos chefes e procurava elevar o moral de seu amigo, lembrando: "A Jihad é, por definição, cercada de dificuldades".

Os jornalistas encontraram os documentos em porões empoeirados e em quintais repletos de lixo, de minas e de granadas ativas. Alguns estavam sujos de lama, outros, parcialmente queimados. Eles não chegam a apresentar um retrato completo da Al Qaeda. Deixam entender que a rede ambicionava ter acesso a armas nucleares, químicas e biológicas, mas não contêm nenhuma pista de que os grupos as possuíssem.

Os papéis constituem um misto eclético. Numa casa usada pelo Movimento Islâmico do Uzbequistão, uma publicação islâmica tecia críticas ao "fenômeno dos Beatles e dos hippies", que "causou grande perigo para a segurança da América e da Europa". Em Cabul, numa casa usada pela Al Qaeda, uma placa implorava: "Meu irmão mujahid, meu irmão visitante, por favor mantenha limpa a casa de hóspedes".

Guerreiros santos

Durante o final dos anos 90, um fluxo constante de jovens atravessou o estreito de Khyber, chegando aos poeirentos campos de treinamento operados pela Al Qaeda e por outros grupos radicais. Muitos deles levavam cartas de apresentação, como prova de que eram de confiança.

Listas encontradas em casas espalhadas pelo Afeganistão mostram que os homens vinham de países do mundo islâmico e de fora dele: Paquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Quirguistão, Síria, Egito, Marrocos, Argélia, Jordânia, Turquia, Iraque, Kuait, Arábia Saudita, Iêmen, Líbia, Sudão, Somália, Bósnia, Bangladesh, China, Filipinas, Rússia, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos.

A força militar importada transformou casas de classe média em Cabul, Mazar-e-Sharif, Candahar e outras cidades em quartéis-generais e casas de hóspedes, repletas de recrutas. Bases militares em desuso e campos agrícolas abandonados no Afeganistão foram transformados em campos de treinamento. O Afeganistão foi a encarnação da visão de Bin Laden de um jihad global. Líderes radicais e soldados rasos se reuniram no país, formaram redes, compartilharam táticas, manuais e idéias. As casas e os acampamentos abandonados estavam repletos de folhetos, livros, fitas de vídeo e CDs, todos repetindo o incansável chamado às armas.

Documentos obtidos em Rishkhor, onde treinaram afegãos, paquistaneses e árabes, somados aos registros, cadernos e manuais encontrados em outras partes do Afeganistão, mostram que os recrutas recebiam o tipo de treinamento básico e regulamentar que é dado a soldados da infantaria em boa parte do mundo, acrescido de infusões constantes de fervor islâmico.

Como qualquer Exército -mas utilizando seu jargão religioso e político próprio-, a rede doutrinava seus adeptos constantemente, preocupada em fortalecer seu espírito de conjunto. Em uma casa da Al Qaeda foi encontrado um resumo curto dos ""Objetivos e Metas da Jihad".

"1. Estabelecer o reino de Deus na Terra.
2. Alcançar o martírio na causa de Deus.
3. Purificar as fileiras do islã de elementos de depravação."

Outros cadernos retratavam um tipo de treinamento inteiramente diferente: em espionagem e no uso de explosivos.

Um manual de ensino do uso de explosivos, encontrado na casa do Harkat, dava instruções detalhadas sobre como fabricar e manejar uma série de substâncias: nitroglicerina, dinamite, nitrato de amônia etc. Uma seção final tratava dos "mais importantes venenos e gases venenosos", que "podem ser extraídos de diversas maneiras e, se Deus quiser, vamos rever essas maneiras mais adiante". O documento traça uma lista das toxinas -incluindo a ricina, o botulismo e o cianureto- e descreve como produzi-las e usá-las.

Burocracia e papelada

Por trás da rede espalhada de campos de treinamento havia uma burocracia extensa. E, como todas as burocracias, ela produzia papéis: formulários de despesas, cadernos com anotações financeiras, inventários de peças de computadores, listas de casas alugadas. A ""22ª Divisão do Jihad -Frente de Cabul" tinha seus formulários próprios para rastrear soldados e despesas, com o nome de seu comandante, ""Abdul Wakil, da Somália", impresso no canto inferior esquerdo. O ""Depósito de Munições da Al Qaeda" mantinha um inventário de armas e munições.

Os comandantes eram exortados a monitorar as despesas. Numa carta mal-humorada datada de 19 de junho de 2001, um funcionário da Al Qaeda de nome Abdel Hadi el Ansary escreveu a um colega: ""O próprio xeque Abu Abdalla, em pessoa, enfatizou, pela segunda vez, a necessidade absoluta de enviarmos as tabelas de despesas orçamentárias".

Mesmo as despesas mais corriqueiras eram anotadas. ""Pão, legumes, óleo de cozinha, remédios", dizia uma lista de despesas. ""Batatas, cebolas, chá, arroz", dizia outra. Um documento registrava o salário de um assistente de cozinheiro: US$ 20 mensais.

Havia até mesmo listas de mártires. Uma lista computadorizada encontrada na casa do Harkat trazia a ""hora da morte" de cada homem, ""local da morte", ""causa da morte" e ""onde foi enterrado".

Cadeia de comando

O sonho de Bin Laden tomou forma na árida planície de Shamali, ao norte de Cabul, marcada por anos a fio de guerras em trincheiras. Centenas de jovens muçulmanos vindos de todo o mundo para receber doutrinação e treinamento no Afeganistão foram enviadas ao front para lutar ao lado do Taleban, na arrastada guerra contra a Aliança do Norte.

Defender o domínio do Taleban sobre o Afeganistão era a missão primeira do jihad, e soldados da Aliança do Norte falavam com espanto e respeito da disposição manifestada por árabes, paquistaneses e outros voluntários de morrer pela causa.

Num longo despacho escrito aos fiéis muçulmanos e encontrado numa casa usada pela Al Qaeda em Cabul, Bin Laden os exortava a reconhecer o mulá Omar, líder do Taleban, como ""o líder dos fiéis". Para muitos combatentes, entretanto, a fonte maior de inspiração era o próprio Bin Laden.

Numa carta manuscrita em árabe enviada desde as trincheiras ao norte de Cabul, um comandante chamado Omar al Adani descreveu o sonho que ""um dos irmãos" tivera. ""Eu estava em meu quarto e vi o profeta Maomé", escreveu. ""Ele olhou para sua esquerda e viu o rei Fahd, da Arábia Saudita, e disse: "Esses não são meus, e eu não sou deles". Ele andou e, então, encontrou o xeque Osama e seus mártires [Bin Laden e seus seguidores] e disse: "Esses são meus, e eu sou deles"."

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