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21/04/2002 - 08h33

Economia é pivô da trajetória de Hugo Chávez

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MARCIO AITH
da Folha de S.Paulo, enviado especial a Caracas

A melhor maneira de compreender os recentes distúrbios políticos na Venezuela é visualizar Caracas, cidade situada num vale e rodeada por montanhas.

Diferentemente do Rio de Janeiro, suas montanhas não entrecortam o vale. Não há obstáculos escondendo bairros e comunidades. Não há nuances nem refúgios. Só há o vale e as montanhas. Vê-se tudo a todo momento.

Essa geografia isola e expõe as camadas sociais. Das zonas urbanizadas e caras no vale, onde mora cerca de metade dos 2,5 milhões de habitantes da cidade, enxerga-se permanentemente a presença das montanhas ao redor.

Dos morros, onde ficam os "ranchitos" (comunidades de favelas) e onde mora a outra metade da população, controla-se visualmente o que se passa no vale.

"A geografia de Caracas simboliza o que ocorreu no país entre os dias 11 e 14 de abril", disse à Folha a professora Janet Kelly, uma norte-americana que vive há 20 anos na cidade e é professora no Iesa (Instituto de Estudos Superiores de Administração). "A Venezuela não é o país mais desigual da América Latina, mas Caracas é certamente uma das cidades onde as diferenças são mais visíveis, e as frustrações, mais frequentes."

Entre os dias 11 e 12 passados, centenas de milhares de moradores do vale protestaram contra Chávez, até tirá-lo do poder (com a ajuda de grupos privados e militares); entre os dias 13 e 14, centenas de milhares de pessoas do morro o recolocaram no cargo (com a ajuda de militares e da comunidade internacional).

Nos últimos dias, convencionou-se dizer que os distúrbios de rua, o golpe e o contragolpe decorreram da polarização entre ricos e pobres e da utilização política dessa polarização por Hugo Chávez, um coronel da reserva que virou presidente explorando uma democracia direta da espécie "bolivariana".

Sem passar por partidos nem pela sociedade civil, Chávez convenceu os pobres da Venezuela a participar de uma revolução que os livraria da miséria da mesma forma que Simon Bolívar libertou a América da Espanha.

Uma visita à favela de Catia, uma das maiores da cidade, contraria e, ao mesmo tempo, confirma essa convenção. Nas últimas eleições, mais de 90% do bairro votou em Chávez, e o apoio ao presidente ainda é evidente, apesar de a atividade econômica ter caído desde 1999, quando começou seu governo.

Fotos de Chávez, de Che Guevara e de Fidel Castro são vendidas nas ruelas do bairro por 200 bolívares -ou US$ 0,20.

Foram os moradores do bairro que, segundo a polícia, lotaram as ruas ao redor do Palácio Miraflores para exigir a volta de Chávez. Mas as casas, embora modestas e sombrias, foram construídas com cimento e quase todas as famílias têm eletrodomésticos.

"Brasil e Venezuela têm extremos de pobreza distintos", disse à Folha Oscar Meza, diretor do Centro de Documentação e de Análise Social, um centro que compila estatísticas de pobreza e desemprego no país. "Não há em Caracas tantas pessoas maltrapilhas morando sob pontes, absolutamente abandonadas."

Há uma gigantesca confusão de estatísticas. Meza é autor de uma pesquisa segundo a qual 89% da população da Venezuela é pobre. A pesquisa divide a população em faixas de renda e confronta cada uma dessas rendas com as necessidades mínimas (comida, habitação e transporte) de uma família de cinco pessoas na qual duas trabalhem. Esse percentual é adotado como verdade absoluta pelos meios de comunicação e pelo governo Chávez.

No entanto outros índices da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), da ONU (Organização das Nações Unidas) e do Bird (Banco Mundial) mostram números menos drásticos e sugerem que a polarização no país tem outras raízes.

A Venezuela ocupa a 61ª posição na lista de 2001 do IDH, o Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, calculado com base na expectativa de vida, no nível educacional e na renda per capita (o Brasil está na 69ª posição). A preços constantes de mercado, o PIB per capita na Venezuela era de US$ 3.096, oitavo na relação dos países da América Latina.

A Venezuela também se destaca como um dos países com a menor concentração de renda na região, apesar de a indústria do petróleo ser historicamente conhecida por produzir sociedades concentradas. Segundo o índice de Gini (que mede a concentração de renda), a sociedade brasileira é mais desigual que a venezuelana.

Ele varia de 0 a 1 e indica se os rendimentos da população estão nas mãos de mais ou menos pessoas. Quanto mais perto de 1, mais concentrada é a renda. Em 1999, o índice da Venezuela era 0,498. O do Brasil, 0,640.

Se a Venezuela não é um país tão pobre quanto se imagina, por que, então, o discurso de Chávez é tão eficaz? "Porque o país empobreceu muito durante os últimos 20 anos e a população perdeu suas esperanças", disse a professora Kelly. "A economia venezuelana começou a decair em 1978, com o crescimento da população, a queda dos preços de petróleo e a queda dos investimentos públicos. Em 1998, ela retraiu para os padrões de 1968."

Segundo Kelly, as pessoas culparam a corrupção do sistema político e do setor privado pela decadência. Foi nesse ambiente que Chávez ingressou na política, acusando as elites.

"Chávez trouxe expectativas de uma vida melhor. Mas, depois de um tempo, o desemprego aumentou. Além disso, as classes médias começaram a se assustar com seu discurso agressivo. Isso levou aos acontecimentos do dia 11 passado e poderá trazer mais problemas."

Kelly e Meza crêem que, apesar de não ser tão desigual quanto a brasileira, a sociedade venezuelana seja mais dividida, como simbolizam o vale e os morros de Caracas. "Embora tenha prometido ser mais sereno, Chávez terá dificuldades para governar sem seu discurso maniqueísta", diz Meza.

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