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02/06/2002 - 08h43

Salman Rushdie fala sobre a iminente guerra na Caxemira

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"O lugar mais perigoso do mundo"


SALMAN RUSHDIE

A crise atual na Caxemira parece um replay da última, provocando no espectador uma sensação de déjà vu. Três anos atrás, um governo de coalizão fraco na Índia, liderado pelo partido nacionalista hindu Bharatiya Janata (BJP), acabara de perder um voto de confiança no Parlamento indiano e aguardava, nervoso, uma eleição geral. Imediatamente, começou a bater os tambores de guerra em torno da Caxemira.

Agora outro governo de coalizão, ainda liderado pelo BJP e profundamente maculado pelo envolvimento de partidários do BJP no massacre de centenas de muçulmanos no Estado de Gujarat, pode estar prestes a perder mais uma eleição geral. E o governo está mais uma vez instigando uma guerra na Caxemira e pedindo à população que se una em torno de seus líderes.

Três anos atrás, no Paquistão, o governo igualmente fraco do premiê Nawaz Sharif tinha levado a economia nacional à falência e estava enfrentando acusações de corrupção fartamente documentadas. Também Sharif tinha muito a lucrar com a febre de guerra -alimentada pelos diversos grupos terroristas muçulmanos que operavam na Caxemira.

O general paquistanês da linha dura então responsável pela comunicação com esses grupos terroristas e o treinamento deles se chamava Pervez Musharraf (só para que fique bem claro quem realmente é Musharraf, hoje presidente do Paquistão, vale notar que alguns desses grupos quase certamente foram enviados pelo serviço de inteligência do Paquistão a campos de treinamento da Al Qaeda no Afeganistão).

Quando Nawaz Sharif cedeu diante da pressão dos EUA e prometeu refrear os terroristas, o general Musharraf ficou furioso. Alguns meses mais tarde, ele deu um golpe de Estado, derrubou Sharif e assumiu o poder.
Será que o resultado, desta vez, também será um replay do que aconteceu há três anos? Poderá o conflito ser contido de novo?

Desta vez é o presidente Musharraf quem está sendo pressionado pelos EUA para que reprima o terrorismo caxemiriano. Ele vem num jogo duplo, prendendo centenas de integrantes dos grupos que fomentou no passado, mas soltando a maioria deles, sem alarde, pouco depois. Vendo-se num impasse, pressionado por duas necessidades opostas -acalmar seu principal patrocinador internacional e agradar ao público doméstico-, Musharraf pode acabar por fazer o que mandam seus instintos políticos mais profundos: apoiar (abertamente ou por baixo do pano) os radicais islâmicos que, há mais de uma década, vêm semeando o terror no antes idílico vale da Caxemira.

Com suas referências a uma "batalha decisiva", o premiê indiano, Atal Behari Vajpayee, deixa claro que, para ele, a ação militar direta que resulte na reconquista de, se não todo, pelo menos uma parte do território caxemiriano que hoje se encontra sob o controle do Paquistão é a única maneira de impedir ataques como a chacina atroz ocorrida em maio, quando mulheres e crianças foram massacradas numa base do Exército indiano.

Vajpayee sabe que o governo indiano é pouco popular no vale e que muitos caxemirianos vêem o Exército indiano como um exército de ocupação. Mas ele também deve ter calculado que, na opinião da comunidade internacional e na de muitos caxemirianos assustados e que estão vivendo na miséria quase total, o prolongado patrocínio do terrorismo por parte do Paquistão prejudicou a legitimidade moral deste.

Se houvesse guerra entre a Índia e o Paquistão, ela chegaria a se tornar nuclear? Com o "timing" sugestivo de seus testes de mísseis, sua recusa em adotar a política de não ser a primeira a recorrer às armas nucleares e sua retórica agressiva, o Paquistão está tentando dar a impressão de que não hesitaria em lançar mão de seu arsenal nuclear.

A liderança militar indiana já disse que, se o país for atacado com bombas nucleares, responderá com força máxima e que, num conflito dessa natureza, a Índia sofreria danos pesados, mas sobreviveria, enquanto o Paquistão seria totalmente aniquilado.

Mas será que o Paquistão cogitaria seriamente amarrar uma arma nuclear à cintura, entrar no bazar lotado de pessoas que é a Índia e cometer o maior atentado suicida da história?

Musharraf não dá a impressão de ser candidato a mártir. Mas e se estivesse perdendo uma guerra convencional? Se a avassaladora superioridade numérica terrestre, aérea e marítima da Índia lhe garantisse a vitória e o Paquistão perdesse o tão prezado território da Caxemira, poderia a voz da razão ser esquecida?

Pior hipótese de todas: se a fúria paquistanesa diante de uma derrota para a Índia resultasse na derrubada de Musharraf pela linha dura islâmica, as ogivas nucleares do Paquistão cairiam nas mãos de pessoas para quem o martírio é uma meta superior à paz, pessoas que atribuem um valor maior à morte do que à vida.

O Paquistão está pedindo a intervenção da comunidade internacional, mas esse pedido deve ser ouvido com cautela. Há meio século o Paquistão vem procurando internacionalizar a disputa em torno da Caxemira, enquanto a Índia tem constantemente descrito esse esforço como ingerência em seus assuntos internos.

Os dois lados estão presos numa situação em que não conseguem escapar do discurso velho, das estratégias velhas e do velho jogo de "quem tem medo de quem?" que está sendo jogado em torno da linha de controle que divide a Caxemira. Como dois lutadores envelhecidos que se digladiam em cima de um penhasco, Índia e Paquistão estão atracados e rolando cada vez mais perto do precipício.

Mas o ódio antigo que os separa já não diz respeito apenas a eles. O risco de um enfrentamento nuclear, por menos provável que possa ser, faz da Caxemira o problema de todos. Neste momento, a Caxemira é o lugar mais perigoso do mundo. Esses combatentes velhos e patéticos precisam ser separados. E logo. Sim, isso provavelmente significa intervenção por parte do Ocidente, embora a Rússia pareça estar ansiosa para ajudar também, o que é útil.

Mas essa intervenção não deveria ser a que o Paquistão está querendo. O objetivo não é frear a suposta agressão indiana, mas deixar o mundo mais seguro para todos nós. A situação só poderá ser estabilizada se a Índia e o Paquistão forem forçados a dar um passo para trás, de preferência para fora das fronteiras históricas e não divididas da Caxemira.

Essa solução da questão da Caxemira terá de ser imposta desde fora às relutantes partes principais e vai exigir o envio de uma grande força de manutenção da paz para apoiar a Caxemira como região autônoma.

Mas quem no Ocidente quer isso? Não seria apenas um replay do velho desejo de poder colonialista-imperialista? E, afinal, quem vai pagar por toda essa manutenção da paz?

As respostas a essas perguntas são outras perguntas: qual é a alternativa? Você tem alguma idéia melhor? Ou será que deveríamos apenas guardar distância e fazer figa, cruzando nossos dedinhos pós-coloniais e não-imperialistas?

Será que teremos de ver nuvens em forma de cogumelo abrindo-se sobre Nova Déli e Islamabad para que concordemos em abrir mão de nossos preconceitos entranhados e tentar algo que seja capaz de realmente funcionar? Nas palavras imortais das Spice Girls, "será que este déjà vu não vai terminar nunca?"

  • Salman Rushdie, 54, escritor britânico de origem indiana, é autor de "Os Versos Satânicos".

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