Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
19/06/2002 - 04h54

Famílias disputam espólio de mortos no WTC

Publicidade

DAVID W. CHEN
do "The New York Times"

Por um período impressivamente longo, pareceu que todos conseguiram se dar bem.

Nas semanas e meses após os ataques terroristas, enquanto funerais e testes de DNA pingavam, muitas famílias de vítimas do 11 de setembro, estóicas e chocadas, tentaram viver em um universo livre de rancores. Disputas familiares foram suspensas. Parentes menos queridos foram abraçados com sorrisos. Perguntas sobre dinheiro, status e herança não foram feitas, ou simplesmente esquecidas.

Mas, agora, as famílias têm de enfrentar a tarefa de determinar quem tem direito a que nos espólios das vítimas, e conflitos —grandes e pequenos— estão começando a irromper, tornando ainda piores a tristeza, a dor e a raiva de famílias já gravemente feridas.

Em nenhuma outra instância essas fraturas familiares são mais evidentes do que no trabalho do Fundo de Indenização de Vítimas do governo federal, plano multibilionário cujo objetivo é conceder aos herdeiros das vítimas dinheiro suficiente para lhes dar segurança. Com milhões de dólares em jogo, dezenas de famílias já estão brigando em salas de estar e tribunais, ao vivo e no papel.

Questionamentos
Uma mãe está questionando a legitimidade do casamento de sua filha com um marido que se distanciara. Os filhos adultos do primeiro casamento de uma das vítimas estão questionando o status do segundo casamento da vítima, assim como o dos filhos da união. Uma parceira que não era casada mas dividia dois filhos pequenos e uma hipoteca com outra vítima está brigando com o filho adolescente dele, nascido de uma união anterior.

"É triste, mas é a natureza humana", disse Maura Lafan, uma advogada de Long Island que representa duas famílias de vítimas. "Primeiro, todo mundo estava tão chocado e horrorizado que outras coisas se tornaram menos importantes. Mas depois você percebe que todas essas coisinhas de família ainda existem. Não é tão simples quanto gostaríamos."

Enfrentar o difícil processo da partilha dos bens é raramente fácil para qualquer família. Mas, como esse processo em particular envolve o 11 de setembro, como há muito mais investigações por se tratar de um fundo governamental de estimados US$ 4 bilhões, como disputas de família têm de ser resolvidas antes de os prêmios serem determinados, é natural, dizem advogados e famílias, que as pessoas se sintam ainda mais estressadas.

Certamente, muitas famílias estão lutando para chegar a algum tipo de trégua quando necessário, seja entre pais e irmãos ou entre familiares por relacionamentos passados que, de repente, estão entrando em cena de novo para pedir indenização. Mas poucos esperam alguma solução em um futuro próximo.

Concorrentes
De 500 representantes de vítimas que já se registraram no fundo, cerca de 40 já têm familiares registrando representações concorrentes. O prêmio estimado deve ser de US$ 1,5 milhão por vítima.

Virginia Pacheco e Annie Guerrero são um exemplo.

Virginia, moradora do Brooklyn, registrou um pedido para ser a representante responsável por gerenciar a indenização do prêmio de seu filho, Roland, que morreu nos ataques. Annie era a namorada dele e mãe de seu filho e registrou um pedido concorrente.

"Ela era como uma irmã para mim", disse Dinah Pacheco, a filha de Virginia, sobre Annie. "Mas, depois de 11 de setembro, não sei o que aconteceu. É como se ela fosse outra pessoa."

As próprias normas do fundo de indenização, dizem muitas famílias, parecem promover a discórdia.

Se a vítima não tiver feito um testamento, a família precisa nomear um representante - geralmente o cônjuge, filho ou pai da vítima, nessa ordem de preferência - sob os auspícios de um juiz. O representante precisa então elaborar um plano de partilha do prêmio.

Depois, o representante deve notificar todos os parentes e, segundo as normas, "quaisquer outras pessoas que se pode razoavelmente esperar que declarem interesse no prêmio ou que tenham base para uma ação relacionada à morte da pessoa".

"Recebemos muitos telefonemas de pessoas tentando resolver quem deve ser o representante, como resolver disputas", disse Kenneth Feinberg, que administra o fundo. "É impossível saber pelo que eles estão passando, mas tenho verdadeira empatia com eles, pelo que eles têm de lidar."

As variações parecem infinitas, assim como as possibilidades de mal-entendidos. Vítimas que eram solteiras e não tinham namorados; cônjuges de fato, mas não legalmente casados, que não são reconhecidos pela lei de Nova York; estrangeiros que tinham famílias em dois países; famílias que não conseguem entrar em acordo discutem se devem se registrar no fundo do governo ou processar as companhias aéreas; e várias outras circunstâncias.

De repente, para alguns, o prazo para se registrar no fundo —dezembro de 2003— não parece tão distante.

Um parente de uma vítima disse que foi forçado a se registrar só para bloquear o registro de outro membro da família —apesar de afirmar que não tinha nenhuma intenção de fazê-lo inicialmente porque considerava o fundo "dinheiro sangrento".

Outros disseram que nem sabiam que um familiar havia se registrado até serem informados por um repórter.

Uma viúva afirmou que, quando ela descobriu acidentalmente que um parente havia se registrado primeiro como representante, ela teve de juntar extratos bancários, cheques para pagar o aluguel e outros registros relativos ao período de um ano para demonstrar que a vítima não estava sustentando a família dos representantes rivais e, portanto, eles estavam desqualificados para ser beneficiários.

Ela disse que acabou vencendo a disputa, mas seu rancor não diminuiu.

"O dinheiro faz emergir coisas estranhas nas pessoas", afirmou. "Eu tive de dizer a Feinberg que eles não tinham direito à indenização, e agora eles não falam mais comigo. É muito triste."

Feinberg diz ser sensível às dificuldades. Em uma reunião no último fim de semana em Jersey City (Nova Jersey), ele disse a parentes de vítimas que queria reduzir as discórdias familiares, mas seus comentários não sensibilizaram todos.

"O que eles têm a ver com o que acontece com meus filhos?", perguntou Elizabeth Mattson, cujo marido, Robert, que trabalhava no Fiduciary Bank, morreu. "Você disse que não queria se envolver em disputas de família. Isso cria uma disputa", disse ela a Feinberg.

Poucos minutos depois, outra pessoa perguntou: "Como você evita registros fraudulentos, ou notificações inadequadas?" A resposta, afirmou Feinberg, foi: a ameaça de perjúrio.

"Vocês também podem consultar a lista de registrados no site do fundo, que é www.usdoj.gov/victimcompensation", acrescentou Feinberg.

Algumas pessoas estão recorrendo a amigos, padres ou outros para mediar as disputas. A Trial Lawyers Care, que oferece aconselhamento jurídico gratuito a famílias de vítimas do 11 de setembro, já tem cerca de 12 casos nos quais está representando lados rivais de uma mesma família para "injetar um grupo de mentes neutras, bastante objetivas, no processo", disse William Mauk, diretor do grupo.

Ainda assim, algumas famílias dizem temer que o histórico de brigas seja demasiado para permitir um final feliz para todos.

Leia mais sobre a guerra contra o terrorismo
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página