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21/07/2002 - 02h35

União africana precisa impedir fome de 13 milhões de pessoas

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MARILENE FELINTO
da Folha de S. Paulo, em Moçambique e na África de Sul

"Emprego e salário mensal de Mt 1,5 milhão [cerca de R$ 173 em metical, moeda de Moçambique]", é isso que o agricultor Paulo Titosse Nhamtumbo, 28, espera da União Africana (UA), a mais nova versão do sonho de unidade do continente negro, lançada oficialmente em Durban (África do Sul) há duas semanas, e que ele confunde com o próprio governo de seu país.

Morador da zona rural do distrito da Moamba, a 70 km da capital Maputo, Titosse Nhamtumbo disse à Folha que quer um emprego para não precisar atravessar clandestinamente a fronteira para a África do Sul, em busca de trabalho, e ser devorado pelos leões do Kruger Park, como aconteceu com vários amigos seus. "Viver só da machamba [roça" não é possível", acrescentou, contando que ganha Mt 750 mil por mês (cerca de R$ 87).

O Kruger National Park é uma área de preservação de vida selvagem na África do Sul, que faz fronteira com Moçambique na Província de Gaza, no sudoeste desse país. Nos últimos anos, milhares de moçambicanos cruzaram ilegalmente as fronteiras para a "terra do rand" (moeda sul-africana), em busca de trabalho nas minas de ouro e diamante e de melhores condições de vida.

Um dos desafios que a União Africana se impõe, a longo prazo, em seu projeto de integração continental, é exatamente a eliminação de fronteiras entre seus 53 países-membros, um passaporte e uma moeda comum a todos os africanos, como acontece na União Européia.

Enquanto o sonho não vira realidade, e do outro lado da fronteira cobiçada pelo agricultor moçambicano, a África do Sul luta para enfrentar seus próprios leões: declínio da indústria de mineração, epidemia de Aids (já são 4,6 milhões de infectados), tensão racial, taxas de criminalidade das mais altas e das piores distribuições de renda do mundo.

Quase uma década depois que a eleição de Nelson Mandela (1994) enterrou o apartheid (regime de segregação racial que dava privilégios à minoria branca e negava direitos aos negros), pouca coisa mudou de fato entre os 12% de brancos e os 77% de negros da população sul-africana. O país ocupa a 94ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU (Organização das Nações Unidas), numa lista de 162 países em que o melhor colocado é a Noruega e o pior, Serra Leoa.

Mas, quando brancos e negros sul-africanos são considerados isoladamente, o grupo dos primeiros coloca-se entre as 24 melhores posições do IDH, enquanto os negros descem para a 128ª. Isso significa dizer que, enquanto os brancos sul-africanos vivem como os suíços ou os alemães, os negros experimentam condições de vida semelhantes aos habitantes do Congo e do Paquistão.

No Brasil, que ocupa o 69º lugar no IDH da ONU, os negros vivem melhor do que os negros sul-africanos -estão em posição correspondente ao 101º lugar do IDH, enquanto os brancos brasileiros estão no 46º.

Em junho, num fim de tarde do rigoroso inverno de Johannesburgo (região norte do país), uma extensa nuvem de fumaça elevava-se de Soweto, o histórico gueto negro que fica a cerca de 20 minutos de carro da cidade, denunciando as precárias condições em que ainda vive a maioria negra da África do Sul. Naquela espécie de gigantesca favela de barracos de zinco e papelão, milhares de famílias fazem fogo para se aquecer.

Unir países que se encontram em estágios de desenvolvimento tão diferentes -como Moçambique (157º lugar no IDH) e África do Sul, por exemplo-, e tão castigados pela pobreza, é uma ginástica de difícil equação para a União Africana. Pelo menos duas das tarefas mais prementes no trajeto da UA são impedir que 13 milhões de pessoas passem fome já nos próximos meses na África subsaariana e que outras 55 milhões morram de Aids na região nos próximos 20 anos.

Especialistas em África são unânimes em avaliar que a atual epidemia de HIV/Aids ameaça de extermínio mais de uma geração de africanos.
Para o médico psiquiatra brasileiro Willians Valentini Júnior, consultor da Organização Mundial de Saúde (OMS) em projeto de política de saúde mental para Moçambique, o desafio na África é vencer os preconceitos da cultura contra a medicina científica.

"A cultura do uso do corpo na África é diferente da nossa. Há também o problema da diversidade linguística e do analfabetismo. É preciso construir estratégias de acesso a essas populações que ao mesmo tempo respeitem a cultura e ajude-os a vencer os preconceitos", Valentini explicou à Folha em Maputo.

Ele contou que o projeto de cooperação entre o governo de Moçambique e a OMS para implantação de uma política de saúde mental no país teve que obrigatoriamente incluir no treinamento a Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique, que reúne 6 mil curandeiros.

"São eles que os doentes primeiro procuram", concluiu. Somente 1% da população moçambicana tem o português como língua materna, embora 30% consigam se comunicar nessa língua. Neste mês o governo decretou que a alfabetização nas escolas públicas também será feita em outras seis línguas locais.

Segundo o último levantamento da Unaids (Programa das Nações Unidas para a Aids) sobre o número de mortes por Aids no mundo, 70% dos infectados por HIV no mundo estão na África (28,5 milhões de pessoas) e mais de 90% deles desconhecem sua condição.

Somente no ano passado, as mortes somaram 2,2 milhões no continente. Em toda a América Latina, o número de mortos por Aids no mesmo período não passou de 60 mil (dessas, 8.400 no Brasil).

Na África do Sul, o ex-presidente Nelson Mandela tem aparecido com frequência em comunicados de TV exortando a sociedade e os pais a conversar sobre sexo com os filhos. No distrito de Moamba, em Moçambique, ao ser questionado sobre o que sabia de HIV e Aids, o agricultor Paulo Nhamtumbo, pai de três filhos, cuja mulher é analfabeta e não fala português, disse nunca ter visto uma camisinha embora já tenha ouvido falar da Aids.

"Sou casado, mas não oficial, porque ainda não tive dinheiro para pagar o lobolo", explicou. "Lobolo" ou "lobola" é o nome que se dá ao dote que o noivo deve pagar ao pai da noiva para obter permissão para o casamento. No caso de Nhamtumbo, o lobolo custa Mt 2 milhões (cerca de R$ 233).

Na tentativa de romper o isolamento econômico da África, a União Africana aposta todas as suas fichas no Nepad (sigla em inglês para Nova Parceria para o Desenvolvimento da África), projeto criado por líderes políticos africanos com o objetivo de atrair investimento estrangeiro em troca do compromisso de manter a democracia, combater a corrupção, os desmandos políticos, as guerras e a instabilidade econômica.

Analistas políticos sul-africanos têm visto com entusiasmo as diferenças entre o Nepad e outros diversos planos de salvação da África que foram por água abaixo: "maior convergência macroeconômica existente hoje entre os Estados africanos" e o "peer review" ("revisão por pares"), mecanismo de avaliação que permite aos países-membros do Nepad monitorarem uns aos outros quanto ao cumprimento das metas estabelecidas pelo acordo, estabelecendo um sistema de prêmio em créditos para os bem-comportados ou isolamento de quem não cumprir sua parte.

Graça Machel, uma das vozes mais ativas do movimento de reconstrução de Moçambique no pós-guerra, viúva de Samora Machel (primeiro presidente moçambicano depois da Independência de Portugal, em 1975) e atual mulher do líder sul-africano Nelson Mandela, disse em entrevista à Folha (leia na página A13) em Maputo que falta o Nepad convencer os próprios africanos ricos a investirem no continente.

"Se calhar, nós já, neste momento, convencemos de alguma maneira o G-8 (grupo dos sete países mais ricos do mundo e Rússia) de que alguma coisa de positivo está a acontecer em África, mas não se fez em profundidade o mesmo trabalho em relação aos potenciais investidores africanos, eles próprios", afirmou Graça Machel.

"Há gente rica neste continente. Eles têm que aprender que é necessário investir em África e não nos Estados Unidos e na Europa só. Portanto, aqueles que têm mais devem mobilizar recursos para investir aqui e fazer o Nepad funcionar."

No último encontro do G-8 no final de junho, no Canadá, o Nepad foi recebido com mais retórica e menos dinheiro do que se esperava. O plano de ação para a África proposto pelo grupo ofereceu US$ 6 bilhões ao ano de ajuda, muito longe dos US$ 64 bilhões que a África pede para atingir e sustentar um crescimento de 7% ao ano.

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