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25/08/2002 - 05h30

Religião volta ao debate público nos EUA

FELICIA R. LEE
do The New York Times, na Folha de S. Paulo

Desde a recente decisão da Suprema Corte que autoriza o uso de verbas do ensino público para pagar mensalidades de escolas religiosas até uma objeção formulada em tribunal à frase "uma nação sob Deus", no juramento de fidelidade à pátria, passando por discussões sobre clonagem, pesquisas com células-tronco, eutanásia e engenharia genética, a religião vem retornando à arena pública de modo complexo e imprevisto.

O flerte entre o secular e o sagrado sempre provocou alarme entre os acadêmicos americanos, que costumam enxergar qualquer intrusão da religião na esfera política como perigosa.

No século passado, gigantes intelectuais como John Dewey e Sigmund Freud menosprezaram a religião, enxergando-a como algo infantil, e previram uma sociedade moderna cada vez mais secular. Para Dewey, a religião "foi petrificada numa escravidão de pensamento e sentimento, como superioridade intolerante da parte de poucos e peso intolerável para muitos".

Ultimamente, porém, um número crescente de cientistas sociais, filósofos, historiadores e outros acadêmicos vem procurando explicar a reentrada dinâmica da religião na esfera pública. Alguns a vêem com tanto prazer quanto aflição.

"Até 20 anos atrás, havia nos círculos acadêmicos e no mundo do jornalismo uma convenção segundo a qual não se falava em convicções religiosas", disse o filósofo Michael Novak, do conservador Instituto de Empresas Americanas. "Hoje, há mais liberdade. As pessoas fazem questão de falar de religião."

O padre católico Richard John Neuhaus, editor do periódico mensal "First Things", que trata de religião, cultura e vida pública, concorda que o ambiente mudou radicalmente. Em 1984, ele escreveu um livro queixando-se da exclusão da religião da vida pública.

"A idéia dominante, na época, era que estávamos rapidamente nos transformando numa sociedade secular e que as idéias de fundamento religioso não têm lugar na praça pública", disse Neuhaus.

Mas, para ele, esse não é mais o caso, e ele oferece como exemplo um relatório divulgado em julho pelo Conselho de Bioética do presidente.

"O relatório afirmou, de maneira muito direta e sem rodeios, que estamos lidando com questões de natureza francamente moral, e que, de agora em diante, é preciso levar em conta as perspectivas religiosas e filosóficas", disse Neuhaus. Ele acha que um gesto de abertura com a religião, como esse, não poderia ter sido feito há duas décadas.

Algumas pessoas se surpreendem com a mudança ocorrida entre os acadêmicos, muitas vezes defensores acirrados do secularismo. Nos últimos dez anos, têm sido empreendidos mais estudos sobre fenômenos religiosos e mais pesquisas ligadas à religião, disse Jean Bethke Elshtain, professora conservadora de ética na Universidade de Chicago.

"Muitos dos argumentos segundo os quais a voz religiosa não tem lugar nas discussões públicas foram contestados não apenas por quem possui convicções religiosas, mas por aqueles que dizem que, se queremos ouvir todas as vozes se expressando, como podemos querer que se calem as que adotam uma perspectiva religiosa?", disse Elshtain.

Para muitos, o avanço da ciência, com suas questões repletas de nuanças morais, é tão responsável pela volta da religião ao centro das atenções quanto são as discussões sempre atuais sobre a família. "Sempre haverá questões ligadas à vida pessoal e à realidade moral objetiva", disse o pesquisador Michael Cromarty, de Washington.

Novak explicou: "Como criamos nossos filhos? O que é um homem? O que é uma mulher? O que é a família? Essas são perguntas ligadas a creches, adoção e direitos dos gays. E elas têm raízes e ecos religiosos. Nós temos a tendência a discutir questões religiosas com frequência."

A volta das discussões religiosas não surpreende o professor de história e ciências humanas Wilfred M. McClay, da Universidade do Tennessee. "Até o século 20, precisávamos de proteção contra os excessos da religião", disse ele.

"Agora enxergamos a necessidade de um equilíbrio maior, contra o secularismo puro, que não possui base provável para afirmar a dignidade humana."

McClay é co-editor de "Religion Returns to the Public Square: Faith and Policy in America" (A Religião Volta ao Espaço Público: Fé e Política na América), livro a ser lançado em novembro em que se discutem o papel ampliado das instituições religiosas na educação e no bem-estar e questões como a relação do islã com os valores americanos, à sombra de 11 de setembro.

Seu co-editor, Hugh Heclo, professor da Universidade George Mason, observa que foi apenas no século 20 que a religião foi se tornando um assunto cada vez mais privado.

Antes disso, a premissa generalizada era de que existia uma conexão direta entre religião e política pública, especialmente no tocante a questões como a lei seca, o trabalho infantil, a escravidão e os direitos das mulheres.

Era um ambiente profundamente diferente daquele vigente em 1960, quando o católico John F. Kennedy candidatou-se à Presidência e foi obrigado a garantir ao público que respeitava a divisão entre igreja e Estado.

Em 1962, a Suprema Corte proibiu as orações obrigatórias nas escolas e, em 1963, a leitura da Bíblia em escolas públicas.

Hoje, segundo Heclo, o pêndulo atingiu o outro extremo. Mais do que em qualquer momento desde os anos 70, as pessoas estão abertas a ouvir opiniões religiosas sendo expressas por autoridades públicas e a ver a religião sendo promovida pelo governo.

"Não é o velho debate sobre valores da época das guerras culturais, mas algo como 'o que, a nosso ver, é a base para se decidir se uma coisa está certa ou errada?' Isso é inescapável, se você representa uma democracia em que as pessoas acreditam em Deus."

Muitos cientistas sociais e acadêmicos vêem como receio o aumento do papel da religião na vida pública. Não surpreende que o façam. "A religião vem se intrometendo em áreas muito preocupantes", disse Paul Kurtz, presidente do Center for Inquiry, um grupo secular humanista que se dedica a pesquisas.

Professor emérito de filosofia na Universidade Estadual de Nova York, Kurtz declarou: "A ingerência da religião na ciência, com a proibição da clonagem, envolve a censura da pesquisa científica em nome da moralidade religiosa. É a volta à época de Galileu."

*Tradução de Clara Allain
 

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