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11/09/2002 - 04h49

Mundo árabe está em guerra com EUA

NELSON ASCHER
Articulista da Folha de S.Paulo

Faz um ano agora que, através de seus representantes autoproclamados, mas nunca realmente desautorizados ou repudiados, o mundo árabe-islâmico iniciou uma guerra contra os EUA. Isso aconteceu sem declaração oficial ou provocação prévia: foram os americanos, aliás, que resistiram anos a fio a todo tipo de provocação. O primeiro ato do que não é exagero chamar de Terceira Guerra Mundial consistiu numa chacina, tão sádica quanto militarmente inútil, de civis inocentes. A razão profunda do desvario que levou agressores oriundos de uma região que já estava em crise e decadência séculos antes da independência do país agredido a imaginarem que tinham uma chance em um zilhão de vencer será tema de discussão por muito tempo.

Simplificando uma situação complexa, pode-se dizer que têm sido quatro os atores desse drama: o islã, os EUA, a Europa e, para variar, os judeus. Defini-los precisamente é uma missão impossível e tampouco há correlação óbvia entre a importância político-militar e a simbólica de qualquer um deles. Até o momento, porém, cada qual teve seu papel.

O traço comum a todas as abordagens que buscaram "compreender" ou relativizar os atentados foi a concentração quase que exclusiva nos EUA: sua política internacional, seus interesses, unilateralismo, arrogância, imperialismo, crimes históricos, o apoio a Israel, seu racismo e truculência, Hiroshima, Vietnã, o massacre dos índios, a escravidão, Hollywood, hambúrgueres, Madonna e Michael Jackson. Essas análises já estavam prontas em 10/9: os autores apenas atualizaram seu "lide" e as (re)publicaram em 12/9. O pressuposto americanocêntrico delas é o de que são apenas os EUA que importam: só eles são agentes ativos num mundo passivo. No entanto, não fosse a ação de muçulmanos fundamentalistas ("reação" segundo seus simpatizantes), nada disso estaria sendo discutido, não nos presentes termos.

Há mais de 1 bilhão de muçulmanos no mundo, mas são os árabes que, representando menos de 1/3 dessa comunidade confessional, formam historicamente seu núcleo. Nem todos os árabes são muçulmanos, e há em seus países significativas minorias não-árabes (ambos os grupos sendo normalmente discriminados). Quanto à hostilidade antiocidental, embora possa ser menor entre os muçulmanos moderados da Indonésia, da Índia ou da Malásia (mais numerosos do que os árabes) ou maior em países como o Irã e o Paquistão, é a dos árabes muçulmanos que de fato pesa nessa história.

Os EUA são o alvo preferencial da hostilidade, mas não o único. Ela se dirige a todo o Ocidente "judaico-cristão-laico-ateu", bem como a qualquer população, ocidental ou não (inclusive árabe ou muçulmana), que rejeite ou tenha se desviado do islã. O conflito que ora se desenrola é concomitantemente político e religioso, pois, no mundo islâmico, não há distinção entre religião e política. Os atentados, perpetrados em nome do islã, foram concebidos e realizados por "jihadistas" —isto é, militantes religiosos— de origem árabe (15 dentre os 19, bem como seu líder supremo, eram sauditas) e, se o endosso não foi unânime entre seus correligionários e compatriotas (algo difícil de verificar numa região avessa à democracia), é ingênuo imaginar que tenha sido marginal.

As interpretações históricas que pressupõem agentes racionais explicam mal esta conflagração. O fundamentalismo islâmico ou, para quem preferir, o islamofascismo, não é produto de pobreza, subdesenvolvimento ou imperialismo. O fracasso econômico e político do mundo árabe-islâmico é que tem raízes numa ordem social irreformável e na cultura que lhe subjaz. Essa raízes, sublinhe-se, não são raciais, etnolinguísticas, nem estão nos genes: são culturais, sociais, históricas, religiosas, políticas. Podem, consequentemente, ser mudadas, mas não antes de uma profunda revolução. Se os fanáticos de 11/9 tinham uma mensagem, era a seguinte: "Nós não mudaremos jamais, mudem vocês, cães infiéis, ou morram!".

Apesar disso, o governo americano evitou dizer que seu inimigo era o fundamentalismo muçulmano, o islamismo político ou o nacionalismo árabe, chamando cautelosamente a confrontação de "guerra contra o terror". George Bush incluiu em seu "eixo do mal", além de um país árabe, o Iraque, um país islâmico não-árabe, o Irã, e um terceiro que não é nem um nem outro, a Coréia do Norte. Esta fórmula, na qual muitos não viram mais do que "simplismo" maniqueísta, evidencia a intenção, diplomaticamente calculada, de não hostilizar cerca de 1/5 da humanidade.

Se bem que não nos encontremos, portanto, numa "guerra contra o terror", nem por isso é irrelevante a questão do terrorismo. Primeiro, porque ataques suicidas e difíceis de serem associados com certeza absoluta a um grupo ou país abolem, por um lado, o princípio da dissuasão ("deterrence") que, durante a Guerra Fria, salvou a humanidade da aniquilação "mutuamente assegurada", tornando, por outro, inevitáveis as guerras preventivas ("preemption"). Segundo, revelam claramente as metas irracionais dos islamofascistas.

O terrorismo islâmico e seu padrinho, o terror nacionalista palestino, diferenciam-se de todos os outros movimentos semelhantes por recorrerem sistemática e preferencialmente ao assassinato em massa e indiscriminado de não-combatentes. À luz de seus objetivos declarados, como livrar-se de alguma ocupação, alcançar a libertação nacional etc., tal método de combate é absurdamente contraproducente, o que se pode ver, por exemplo, no fracasso da presente intifada. Como não se trata, porém, de uma luta contra Exércitos e governos, mas sim contra populações inteiras (racial ou religiosamente definidas e destinadas ao extermínio), o que acontece é que meios e fins acabam se confundindo numa espécie de culto da morte (a própria e a alheia) que, nas palavras de Hans Magnus Enzensberger, equivale à globalização do sacrifício humano.

Quem não acredite no irracionalismo de base desse fenômeno, que verifique a relação custo/benefício envolvida. Malgrado os esforços dos que tentaram inflacioná-lo, o número de civis mortos na campanha do Afeganistão não parece ter passado de mil. Dos combatentes mortos, contudo, pouco se falou. As raras sugestões que apareceram permitem pensar em 10 mil e 15 mil baixas do Taleban e/ou da Al Qaeda. Vale a pena deter-se nessas cifras. Os islamitas não apenas aceitaram, em troca de cada um dos 3.000 civis militarmente insignificantes (0,001% de um pool de quase 300 milhões de americanos) que tiveram o prazer de matar, o sacrifício de quatro ou cinco de seus combatentes (que, em conjunto, deviam representar uma parcela nada desprezível do total) e a perda de seu maior ativo imobiliário, o próprio Afeganistão, como não param, desde então, de comemorar sua vitória!

Quanto aos EUA, sob qualquer ângulo que se examine, eles são de fato um problema imenso, gigantesco. Sua população equivale a 5% da humanidade, mas é responsável por quase 1/3 do que se produz no mundo. O dinamismo e a saúde de sua economia evidenciam-se num PIB per capita cerca de 30% superior ao dos europeus ocidentais. O país é o centro mundial da ciência, da inovação tecnológica e da cultura de massas. Além disso, a vitória relâmpago no Afeganistão trouxe à tona informações interessantes, como a de que os americanos, recorrendo a apenas 4% de seu PIB, investem nas Forças Armadas mais do que as outras dez principais potências militares em conjunto. Em outras palavras, opor-se a seu poderio militar convencional (ao não-convencional é ainda mais difícil) implicaria uma aliança improvável entre ingleses, iraquianos, chineses, russos, franceses, norte-coreanos, paquistaneses, indianos, egípcios e israelenses. Resumindo, os EUA podem tomar as decisões que desejarem e impô-las, sem oposição eficaz, ao restante do planeta. Se isso é bom ou ruim, tanto faz: é a realidade. E não vai mudar tão cedo.

Eis aqui uma das razões que explicam o fenômeno mais surpreendente do ano que passou: a mal disfarçada satisfação com que os meios intelectuais, jornalísticos e políticos da Europa, bem como uma boa fatia de sua opinião pública, reagiram aos atentados.

Convém lembrar que, enquanto na Guerra Fria os EUA investiram pesadamente em suas Forças Armadas, a Europa Ocidental, protegida da ameaça soviética pelo guarda-chuva nuclear americano, usou a verba assim liberada em políticas sociais. Há dois modos de interpretar essa opção das elites européias: ou elas, arrependidas de seu egoísmo ancestral, tornaram-se altruístas e generosas, ou agiram por interesse próprio e sob pressão. Durante séculos essas elites, sempre ameaçadas pelos vizinhos, precisaram assegurar a lealdade de seus súditos. Isso não se alterou depois da Segunda Guerra, quando, com a defesa paga pelo contribuinte americano, os governos europeus ocidentais aplicaram o excedente em políticas e projetos sociais que, além de ótimos e justos, ajudaram coincidentemente a apaziguar as massas e a cooptar a intelectualidade, tanto a própria quanto a do Terceiro Mundo. (Para algo tinham de servir todas as instituições, bolsas, subsídios e prêmios literários, a começar pelo Nobel.) Não é a toa que não há nenhum Noam Chomsky francês, alemão ou escandinavo criticando a política externa não dos EUA, mas de seus respectivos países.

Para o cidadão de um país subdesenvolvido, a Europa talvez pareça paradisíaca, mas, comparada à americana, sua classe média não é apenas substancialmente mais pobre, como, convivendo com criminalidade e insegurança crescentes, está também muito mais à mercê de administrações (nacionais ou da União Européia) que controla cada vez menos. O fato é que todas as grandes decisões de sua vida, da saúde à habitação, do transporte à educação, são tomadas por burocracias não eleitas. E os eurocratas de Bruxelas, construindo uma ordem que poderia ser chamada de neodespotismo esclarecido, vêm, além disso, multiplicando as instituições internacionais que não devem satisfação a nenhum eleitor ou contribuinte e incentivando o novo clero progressista das ONGs, cujos ativistas tampouco passam por processos eletivos. Assim, quem simpatize com/ou se beneficie do modelo europeu tem necessariamente de abominar o "capitalismo selvagem" e a democracia populista dos EUA.

Muitos comentadores do conflito atual insistem na tese de que a política dos europeus —pró-árabe e não de todo antipática aos fundamentalistas— decorre de algum tipo de medo ou pelo menos apreensão em face de suas próprias massas muçulmanas não assimiladas que já beiram em alguns países 10% da população. No entanto a situação dessas massas é mais precária do que se imagina, seus direitos não estão nem de longe irrevogavelmente garantidos e o know-how de como tratar populações indóceis não foi esquecido no continente. A política médio-oriental da União Européia e de seus principais membros decorre de considerações geopolíticas e estratégicas mais sérias.

Para um bloco que, como o europeu, pretenda contrabalançar o poderio dos EUA e contrapor sua própria ideologia à deles, os países árabes-islâmicos são aliados bem-vindos. Além de fornecedores tradicionais de um recurso escasso na Europa, ou seja, gente, são bons clientes de produtos e serviços que, da hotelaria às centrais nucleares, eles têm, devido ao petróleo, como pagar. Que grande parte de seu mercado seja cativa dos EUA não é motivo de júbilo na Europa. Os americanos fornecem a esses clientes serviços especiais como: proteger seus poços e suas dinastias reinantes de um Saddam Hussein ou dos aiatolás iranianos, manter abertas e seguras as rotas internacionais que levam os peregrinos a Meca e Medina, financiar e treinar burocracias e Exércitos na Jordânia ou no Egito. Em sinal de gratidão, os sauditas, por exemplo, compram mais aviões da Boeing que da Airbus. O que os EUA não podem fornecer, mas a União Européia sim, é apoio à obsessão favorita e duradoura do mundo árabe: a destruição de Israel. Não que esta seja para logo: de fato, quanto mais demore, melhor. E é inútil buscar motivações anti-semitas na elite européia: trata-se apenas de negócios.

Nunca é demais enfatizar que o conflito palestino-israelense é importante não em si, mas em sua dimensão simbólica, psicológica, imaginária. Israel ressurgiu no século 20, mas os problemas do Oriente Médio islâmico datam pelo menos do século 13, época das invasões mongólicas. Nenhum marroquino, egípcio, sírio, iraquiano, saudita etc. (e, com exceção de seus líderes, nenhum palestino tampouco) viverá melhor se Israel desaparecer. (Opção que, de resto, não existe, pois há somente dois cenários possíveis no mundo real: a vitória israelense ou a devastação completa da vizinhança.) Nem o fundamentalismo islâmico decorre da disputa entre árabes e judeus, nem Bin Laden atacou Nova York e Washington devido a alguns metros quadrados da Cisjordânia, já que, quando planejou os atentados, o "processo de paz " estava no apogeu. Israel não é um problema real dos árabes ou dos muçulmanos. Mas os judeus tampouco eram um problema real na cristandade medieval ou na Alemanha nazista. A obsessão com eles é que o era, como segue sendo entre os árabes. Como tal, ela é o sintoma mais óbvio de uma cultura política doentia e demente.

O que tudo o que foi exposto, afinal, quer dizer é que a pausa histórica que principiou em 1989 com a queda do Muro de Berlim está oficialmente terminada e não há mais como ignorar os profundos problemas estruturais da ordem ou desordem internacional.

Depois da Primeira Guerra, os europeus começaram a edificar, sobre as ruínas dos impérios multinacionais recém-dissolvidos (Otomano, Czarista, Austro-Húngaro), uma ordem cuja unidade básica era o Estado-nação. Esse processo consolidou-se no resto do mundo, depois da Segunda Guerra, com a descolonização. Inventaram-se, então, segundo o modelo europeu ocidental, dezenas de países que tinham bandeira, hino nacional, Exército e, às vezes, até mesmo Parlamento. Só não tinham viabilidade, pois não eram de verdade, o que não impediu que sua criação fosse coroada (a rigor, precedida) pela ficção suprema da Organização das Nações Unidas.

Em algumas regiões os danos ainda estão sob controle, outras, porém, tornaram-se zonas de desastre. O mundo árabe está entre essas últimas e, desde 11/9, passou a representar uma ameaça ao único país capaz não só de derrotá-lo militarmente sem dificuldades, mas também cada vez mais disposto a reorganizá-lo, se não por outro motivo, pelo menos para torná-lo menos ameaçador. Do ponto de vista dos EUA o mundo árabe só existe hoje em dia devido à combinação de fundamentalismo islâmico e reservas petrolíferas. Não fosse isso, e ele poderia ser deixado de lado como, aliás, teria sido, em outras circunstâncias, o Afeganistão.

Graças aos islamofascistas, no entanto, essa reorganização tornou-se uma prioridade e deve começar em breve, se é que já não começou, no Iraque. De todas as reviravoltas contemporâneas, porém, a mais significativa para o futuro é a abertura do fosso entre a Europa e os EUA: a explicitação não só de seus interesses divergentes como da incompatibilidade, que só tende a crescer, entre seus modelos. Diante de tal fosso, toda conversa acerca de comunidade internacional, Justiça internacional, multilateralismo etc. tornou-se ociosa e obsoleta. Está de volta, se é que um dia havia ido embora, o caos internacional.

Sir William Walker (Marlon Brando) é, no filme "Queimada" (1969), de Gillo Pontecorvo, o agente provocador do governo inglês que, no século 19, chega a uma colônia portuguesa do Caribe com a missão de instigar os escravos desta à revolta. Uma década depois, como cidadão particular, ele volta a Queimada, contratado por seus novos governantes para esmagar outra revolta dos mesmos escravos. É então que, numa reunião com seus patrões, ele observa que dez anos são às vezes o bastante para que se revelem as contradições de toda uma era. A modernidade, como se sabe, implica uma aceleração desenfreada do ritmo da história. Assim, para que um ano atrás, em plena era do jato, se cumprisse o mesmo papel, um lapso de menos de duas horas foi o suficiente.

Leia mais no especial 11 de setembro
 

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