Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
06/10/2002 - 07h32

Esquerda da América Latina busca rumo de olho no Brasil

RODRIGO UCHÔA
ROGERIO WASSERMANN
da Folha de S.Paulo

Os principais líderes políticos de esquerda na América Latina são quase uníssonos ao declarar que uma eventual vitória de Lula no Brasil daria um novo fôlego a essa corrente política no continente. Muitos deles apostam até numa nova "solidariedade latino-americana" de governos de esquerda, tendo o Brasil como locomotiva.

Mas o que é a esquerda na América Latina? Esse frisson se justifica? Qual é o real papel do Brasil?

Questionados pela Folha, líderes empresariais e sindicais, analistas, políticos e jornalistas _do Brasil e de fora_ acabam por formar um quadro amplo da "nova esquerda latino-americana".

O primeiro ponto é a indicação do que poderíamos chamar de crise de identidade.

"Ideologicamente, o eleitorado da América Latina está hoje mais ao centro e à direita que há cinco anos. O que mudou foram os discursos dos líderes de esquerda, que acompanharam esse movimento", afirma a economista chilena Marta Lagos, coordenadora da Corporación Latinobarómetro, responsável por uma pesquisa anual na região.

Para ela, Lula é um exemplo claro dessa tendência: "Ele [Lula] tem um discurso menos esquerdista e não é reconhecido pela maioria do eleitorado como sendo de esquerda".

O americano Albert Fishlow, diretor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Columbia, de Nova York, reforça: "Eu diria que a posição de Ricardo Lagos [presidente do Chile, do Partido Socialista, mas cujo governo mantém políticas liberais e é bem avaliado pelo mercado], quando foi eleito, em 2000, estava muito mais à esquerda do que as posições atuais de Lula".

Nessa linha, o professor de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Denis Rosenfield aponta uma certa "vergonha" da esquerda se assumir como tal. Para ele, "muitos dos grupos mais radicais hoje em dia "disfarçam" suas tendências revolucionárias, as "esquecem'".
Líderes históricos da esquerda discordam dos analistas.

"Não creio que os partidos de direita e os de esquerda estejam buscando as mesmas políticas nem tendo os mesmos objetivos. Para dar um exemplo, vamos ao caso específico do México, onde a direita, hoje no poder, pretende privilegiar uns poucos e segue concentrando a riqueza, sem se preocupar com o aumento da miséria", afirma o mexicano Cuahutémoc Cárdenas, três vezes candidato a presidente de seu país e o principal líder da esquerda de lá.

As linhas gerais do discurso de Cárdenas contra a miséria podem ser identificadas nas plataformas políticas que levaram, por exemplo, Fernando de La Rúa e Alejandro Toledo ao poder na Argentina e no Peru, respectivamente.

Os dois, porém, implementaram políticas que literalmente destroçaram seu apoio popular, levando à queda do argentino no ano passado e a um índice de rejeição do presidente peruano que bate os 75%.

Sem margem de manobra Outro ponto foi comum entre os entrevistados: todos falam da falta de margem de manobra dos governos, sejam eles de direita ou de esquerda. Cárdenas reconhece isso e diz que a situação se deve à economia globalizada, mas reforça sua crença nas diferenças entre esquerda e direita.

Questionado pela Folha sobre o futuro dos governos latino-americanos, o vice-ministro de Finanças da Alemanha, Caio Koch-Weser, disse que "há realidades financeiras essenciais que todo governo tem de enfrentar".

Koch-Weser, alemão nascido no Brasil, acrescenta que essa realidade se impõe à América Latina em geral, mas afirma ver com otimismo que as linhas de crédito dos organismos internacionais continuam fluindo para a região. "Os US$ 30 bilhões do FMI ao Brasil são o exemplo mais forte."

O analista Luis Vicente León, diretor do instituto de pesquisas venezuelano Datanálisis, não é tão otimista. Ele afirma que um avanço da esquerda na América Latina terá de conviver com a escassez de investimentos externos.

"Com a Argentina passando por uma grave crise e a Venezuela passando por uma turbulência política, não há dúvida de que uma vitória de Lula tornaria os investimentos externos ainda mais raros. O capital não gosta de correr riscos", acrescenta León.

Papel do Brasil
Mesmo com o giro político para o centro levantado por Marta Lagos, a possibilidade de uma Presidência do PT exerce um poder quase magnético sobre os movimentos à esquerda no continente.

"O triunfo de Lula terá um efeito importante nas forças que buscam a mudança no continente, somando-se ao processo bolivariano de Hugo Chávez, ao futuro triunfo da Frente Ampla no Uruguai, ao crescimento das forças sociais na Bolívia e na Argentina e às propostas das forças que apóiam Lucio Gutiérrez no Equador", afirma Miguel Lluco, coordenador nacional do movimento equatoriano indígena Pachakuti.

Evo Morales, líder dos cocaleiros da Bolívia e segundo colocado na última eleição presidencial, compara-se a Lula e diz torcer pelo petista. Seu partido, o MAS (Movimento ao Socialismo), já procurou o PT, em São Paulo, para se aconselhar.

Isso tudo não significa que já haja uma verdadeira conexão da esquerda latino-americana. Membros da direção petista avaliam que ainda há um excesso de "ingenuidade" e uma falta de coesão nesses movimentos, o que adia contatos "mais frutíferos".

Esse tipo de discurso "ingênuo" parece ter sido abandonado pelo PT, como podem levar a crer as recentes declarações de Lula se desvinculando de extremistas, como a guerrilha de orientação marxista Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).

"Não convém a Lula manter relações com a insurgência colombiana, que com suas ações de terror já perderam toda a credibilidade política interna e externa", avalia o colombiano Otty Patiño, ex-líder da guerrilha M-19 que se integrou à vida pública após um processo de paz no início dos anos 90. "Não é concebível que alguém no governo mantenha relações com esses grupos", diz.

Há que se lembrar que, no ano passado, membros do PT chegaram a abrir um comitê de apoio às Farc no interior de São Paulo.

"O PT é tomado por contradições não-resolvidas. Porém, se conseguir lidar com essas contradições e se o discurso atual de Lula for verdadeiro, um eventual governo do partido pode dar uma enorme contribuição ao Brasil e à América Latina", diz Rosenfield.

O professor concorda, por outro lado, que os antigos discursos de esquerda característicos dos anos 60 ainda têm um lugar importante no imaginário latino-americano e que isso é difícil de superar. Um exemplo: o líder sandinista nicaraguense, Daniel Ortega, enviou uma carta desejando sorte a Lula. A retórica fala por si: "Invocamos o espírito dos heróis e mártires da América Latina e do Caribe e a esperança e os sonhos dos povos do mundo para que se faça realidade essa vitória".
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página