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25/12/2002 - 04h05

Igreja analisa legado da assembléia revolucionária

PAULO DANIEL FARAH
da Folha de S.Paulo

No dia 11 de outubro de 1962, iniciava-se na basílica de São Pedro uma reunião extraordinária de bispos do mundo inteiro. O discurso inaugural do papa João 23 (1958-1963) no Concílio Vaticano 2º, com a participação de cerca de 2.500 padres conciliares, sinalizava a revolução que essa assembléia provocaria a partir de 1962, até o final de 1965:

"No exercício diário de nosso ministério pastoral _e para nosso pesar_ às vezes temos de escutar aqueles que, tomados pelo ardor, apresentam um julgamento ou discernimento limitado. Para esses, o mundo não passa de traição e ruína. Alegam que esta era é muito pior do que as anteriores e prosseguem a arenga como se não tivessem aprendido nada da história... Temos de discordar desses profetas do Juízo Final que estão sempre prevendo uma calamidade, como se o fim do mundo fosse iminente."

Quando foi eleito papa, em 1958, aos 76 anos, a maioria dos clérigos acreditava que Angelo Giuseppe Roncalli (nome de batismo de João 23) seria uma figura de transição, sem imaginar que ele instigaria um movimento reformista sem precedentes na igreja, em pelo menos quatro séculos, e que se tornaria um dos líderes mais populares de toda a história da Igreja Católica.

Outras línguas
Aquele concílio ecumênico, cujo efeito ainda não se absorveu por completo, aprovou a utilização de outras línguas além do latim na liturgia católica e permitiu que o celebrante da missa ficasse de frente para os fiéis, além de abrir caminho para uma reconciliação com outras religiões.

O Concílio Vaticano 2º (1962-1965) foi convocado em um mundo dividido, dominado pela Guerra Fria, pela descolonização e por uma crise de valores, e a maior parte dos padres conciliares compartilhava essas preocupações. Destacaram-se, entre outros, os cardeais Augustin Bea, Leo Jozef Suenens, Joseph Frings e Giovanni Batista Montini (papa Paulo 6º), os teólogos Karl Rahner, Yves Congar e Marie-Dominique Chenu, os bispos Vicente Enrique y Tarancón e Narcís Jubany e o monge beneditino Adalbert Franquesa, especialista em questões litúrgicas.

Alguns bispos e cardeais, como Alfredo Ottaviani (conhecido pela chamada "intervenção Ottaviani", contra a nova ordenação da missa), opuseram-se ao processo de renovação.

Ao preço de um cisma (o dos tradicionalistas de Marcel Lefebvre), a igreja soube romper com uma concepção fixista de sua tradição e restaurou parcialmente a noção de "povo de Deus", encoberta por um poder piramidal e dogmático em demasia.

Hostil ao "aggiornamento" _a adaptação da igreja à modernidade_, Lefebvre criticou a "neomodernidade" de Roma, "em ruptura com a tradição da igreja" e fundou um seminário tradicionalista na Suíça.

"Temos a convicção de que o rito novo da missa expressa uma nova fé, uma fé que não é a nossa, uma fé que não é a católica", disse Lefebvre. A missa não foi o único motivo dessa ruptura. A liberdade religiosa defendida pelo Concílio Vaticano 2º foi considerada por Lefebvre uma forma de colocar no mesmo plano a verdade e o erro. A aproximação ecumênica e inter-religiosa, para ele, só poderia ser feita negando sua própria fé. Lefebvre ordenou padres, apesar da proibição de Roma, e consagrou quatro bispos em 1988, o que lhe valeu uma excomunhão.

Atualmente, essa comunidade religiosa é formada por aproximadamente 250 padres e por cerca de 100 mil fieis.

O papa da concórdia
Mesmo antes do Concílio Vaticano 2º, o "papa bom" ("il papa buono") _como Roncalli viria a ser chamado_ já buscava a reconciliação dentro e fora da igreja. Por exemplo, utilizava o turco em boa parte da missa em Istambul quando era delegado apostólico para a Turquia (onde ajudou a salvar judeus da morte) e a Grécia. À época, foi "denunciado" ao Vaticano e se defendeu com o argumento de que "o Evangelho não admite monopólios nacionais e não está fossilizado".

Esse processo de modernização, a ênfase na justiça social e na inserção da igreja no mundo moderno e as atitudes inesperadas de conciliação que adotou lhe valeram um registro especial num "arquivo Roncalli" no Vaticano. Logo após sua eleição como papa, pediu para ver esse arquivo.

João 23 incentivou a atuação dos leigos, enfrentou a burocracia estéril do Vaticano e permitiu a visão de uma nova ordem de relações, inspirando não apenas católicos mas também ateus como Nikita Kruchov, que disse ao "Pravda" que João 23 prestava "um tributo à razão em seu desejo pela paz" ao intervir na crise dos mísseis de Cuba 40 anos atrás. "Não se trata de temer o julgamento de Deus, no qual, como ateu, não acredito, mas de acolher com alegria o apelo para negociar", disse.

Atualmente, parece natural que o papado deve ter um alcance internacional, devido à diversidade geográfica dos católicos e às frequentes viagens de João Paulo 2º. Mas, antes de João 23 geralmente os papas se confinavam no Vaticano ou em torno dele.

O papa João 23 morreu em 3 de junho de 1963, e o Concílio Vaticano 2º ainda exerce grande influência nas estruturas da Igreja Católica 40 anos após sua abertura e motiva debates acirrados sobre a revolução que causou.

Leia mais no especial João Paulo 2º
 

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