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31/03/2003 - 09h38

Guerra deve criar grupos terroristas no Iraque, diz especialista

FERNANDA IEMA PINTO
da Folha Online

O ataque dos Estados Unidos ao Iraque pode desencadear a formação de organizações terroristas iraquianas [não existentes até o momento] ainda durante o conflito. Isso deverá acentuar-se mais ainda no pós-guerra. A opinião é de Reginaldo Mattar Nasser, sociólogo e coordenador do curso de relações internacionais da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Em entrevista à Folha Online, Nasser disse que o fato de os EUA serem superiores em termos bélicos fez surgir uma nova estratégia por parte dos iraquianos _além do combate terrestre frontal.

A tática da guerrilha, historicamente adotada em situações de conflitos em que as forças combatentes são bastante desiguais, já vem aparecendo no cenário da guerra como uma das principais formas de resistência iraquiana.

O professor também diz acreditar que a eventual criação de ações terroristas [como as ocorridas durante o fim de semana], o uso da guerrilha como meio de combate e os erros nas estratégias de guerra norte-americanas podem tornar o conflito mais longo e ainda mais violento.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Folha Online - A guerra e o pós-guerra podem desencadear a formação de grupos terroristas no Iraque?

Reginaldo Mattar Nasser - Sim. Quando há uma desproporção muito grande do uso militar, dos meios bélicos, recorre-se a outros métodos. E um deles, que tem-se mostrado atraente para uma parte da população árabe e muçulmana no Oriente Médio, é o terrorismo.

Até então, no conteúdo histórico, não há um grupo iraquiano (terrorista) constituído, mas é bem provável que esses grupos apareçam, dependendo da disposição da população, em virtude da impossibilidade de enfrentar o inimigo no campo de batalha.

Quanto mais o poder é assimétrico, mais são estimuladas as ações irregulares, os novos tipos de guerrilha e de terrorismo.

Na guerra de hoje já estamos assistindo os sinais disso, embora ainda não haja uma organização. Primeiro, em relação à tática de guerra dos EUA, que há uma semana estava dando certo: no domingo (23), houve uma reversão, com a inauguração, por parte da força iraquiana, de uma "guerra de guerrilha".

Embora não confirmado pelas autoridades dos EUA, já foi relatado um caso de ataque suicida contra um tanque norte-americano. Neste fim de semana, duas novas situações reforçam a tendência do aparecimento dessas organizações terroristas: um carro-bomba matou quatro soldados norte-americanos e o anúncio, feito pelo governo iraquiano, de que o país possui cerca de 4.000 mártires (dispostos a morrer pelo governo de Saddam Hussein).

Folha Online - O surgimento desses grupos está atrelado à questão do fundamentalismo?

Nasser - Não. O fundamentalismo oferece uma motivação, mas não é o objetivo. Eu veria o fundamentalismo como um meio para chegar aos objetivos.

Pouca gente se deu o trabalho de analisar os poucos pronunciamentos de Osama bin Laden na televisão depois do ataque terrorista aos Estados Unidos de 11 de setembro de 2001. Como fim, ele não fala em fundamentalismo. Ele fala que todo o devoto do Islã tem de lutar pela sua terra sagrada. Ele diz que deixaria os EUA em paz depois de permitida a criação de um Estado palestino e depois de os EUA saírem da Arábia Saudita. Estes são dois objetivos políticos.

O combatente precisa de uma motivação. Entre elas, a do fundamentalismo é importante. A religião no Oriente Médio faz parte da vida das pessoas, a religião prescreve uma conduta.

Folha Online - Se realmente surgirem organizações terroristas no Iraque, elas poderiam fazer uma aliança com os outros grupos do Oriente Médio em uma luta contra os Estados Unidos?

Nasser - Há um inimigo maior: os Estados Unidos. Não está claro, mas pode ser que se estabeleça uma aliança entre os grupos, principalmente com a Al Qaeda, que tem um princípio mais internacional e que é contra os Estados Unidos.

Folha Online - E durante a guerra, existe a possibilidade de os grupos terroristas começarem a se manifestar?

Nasser - A possibilidade de que haja, durante o desenrolar da guerra, um aumento de terrorismo no Iraque é grande e a possibilidade de ataque aos EUA não pode ser descartada. É provável que a Al Qaeda esteja esperando a hora para isso. O terror age por uma questão psicológica, mesmo que não tenha um ataque como o de 11 de setembro, se, por exemplo, houver duas baixas, aparece o medo nos EUA.

Folha Online - Depois de os EUA não terem lançado sua ofensiva contra o Iraque de forma tão rápida como anunciado, ter ocorrido uma sequência de erros nas ações das forças anglo-americanas (como o "fogo amigo" e as quedas de helicópteros), a prisão de soldados da coalizão pelas forças iraquianas e a resistência do Iraque nos combates por terra podem dar uma nova "cara" para o conflito?

Nasser - A guerra já está tendo uma outra cara. Os EUA estão priorizando mais movimento e menos ocupação. A primeira idéia seria tomar as cidades rumo a Bagdá (capital iraquiana). Eles acreditavam que chegar a Bagdá decidiria a guerra. Eles ainda tinham a esperança de que depois de decapitada a cúpula iraquiana a guerra acabaria. Então, teve o primeiro ataque para pegar Saddam, na sexta-feira (21), quando a coalizão anglo-americana lançou o ataque chamado "Choque e Pavor", que concentrou os bombardeios nos palácios presidenciais e nos prédios ministeriais iraquianos.

Depois foram para a segunda estratégia: chegar a Bagdá -mas os objetivos dos EUA deram certo só até o último fim de semana. No entanto, e eu acredito que isso é uma armadilha de Saddam, à medida que várias unidades das força anglo-americanas se aproximavam (como as de ataque, de suporte, de suprimentos etc), a idéia do líder iraquiano era "cortar" a comunicação entre essas equipes, como se ele pensasse: eu deixei entrar, mas vou combater. Não é por acaso que os americanos capturados e feitos prisioneiros de guerra pelas forças iraquianas fazem parte da linha de abastecimento. Paralelo a isso, Saddam aumentou a resistência nas cidades iraquianas através da guerrilha.

Folha Online - Quais são as consequências desta falha na estratégia norte-americana?

Nasser - A primeira consequência já aconteceu na quarta-feira (26), quando um mercado com civis foi atingido pelo bombardeio. O raciocínio é o seguinte: Se o Exército norte-americano não pode ter baixa, ele deve diminuir o combate terrestre. Se é menor o combate terrestre, é maior o ataque aéreo em intensidade e frequência -o que aumenta o número vítimas civis. Agora, os ataques em bairros residenciais não serão casuais, serão frequentes.

No geral, houve um problema de avaliação política e não militar por parte dos Estados Unidos. O que ninguém imaginava era o apoio da população iraquiana a Saddam. Os norte-americanos acreditavam que com medidas para desestruturar o poder do líder iraquiano, o povo perceberia o momento de fraqueza do governo, apoiaria as tropas da coalizão e apressaria a queda de Saddam. Isso foi um erro fantástico de cálculo dos Estados Unidos.

Folha Online - O que justifica o apoio popular dos iraquianos a Saddam?

Nasser - Saddam mudou da guerra de 1991 para agora. Ele tinha problema com as tribos, os beduínos, que, hoje, se aproximaram dele. Saddam havia ensaiado um tipo de reforma agrária e voltou atrás. Ele amenizou as oposições com os xiitas. Com isso ele tem mais apoio popular. Basra, por exemplo, é 90% xiita. Onde estão os xiitas contra Saddam?

Mesmo na guerra Irã-Iraque, os xiitas ficaram do lado do Iraque. As pessoas esquecem que os xiitas são iraquianos, antes de xiitas, eles são iraquianos.

O governo dos EUA gasta milhões de dólares em armas e não gasta com pesquisa acadêmica, política, social e antropológica para entender tudo isso. Eu acho que os EUA estão muito bem armados, como nunca tiveram, mas em termos políticos e doutrinários, eles estão perdidos.

Folha Online - A partir disso, a guerra pode se estender?

Nasser - A tendência é a guerra se estender e ficar mais violenta e mais difícil. A guerra não tem retorno, não tem como os Estados Unidos voltarem atrás. A questão do Iraque não é uma questão pontual, é a idéia de que um novo princípio vai estar em gestão na ordem internacional. O investimento é grande, pois se falhar o Iraque, falhou o projeto.

Folha Online - Com as táticas de guerrilha e possíveis aparecimentos de grupos terroristas durante a guerra, o Iraque pode virar o jogo?

Nasser - Não. Se eventualmente o Saddam e a cúpula iraquiana forem atingidos, o Iraque fica um país acéfalo. Eles, os iraquianos, podem continuar resistindo, mas fica mais fácil para os Estados Unidos dominarem o país. Se cair o Saddam, é complicado.

Folha Online - No pós-guerra, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, disse que quer a ONU (Organização das Nações Unidas) na reconstrução do Iraque. O presidente dos Estados Unidos, George W.Bush, diz que não quer a presença da organização no primeiro momento do pós-guerra. Isso pode gerar um conflito entre as forças da coalizão?

Nasser - Isso é um problema, mas eu acho que eles vão tentar resolver. Eu pensei e acho que eles vão repartir o bolo quando e se vencerem a guerra: a parte civil ficará com uma liderança civil iraquiana, a ONU cuidará da parte humanitária e a parte militar será dos Estados Unidos e do Reino Unido.

Folha Online - E o petróleo?

Nasser - O petróleo é questão militar. O petróleo, que é questão de segurança, será a parte dos Estados Unidos. Então, tudo o que envolve petróleo ficaria sob o regime militar porque deve ser administrado pelo Exército.

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