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07/04/2003 - 08h54

Artigo: Uma ofensiva do passado

RODOLFO KONDER
da Folha de S.Paulo

De alguma imprevisível esquina do tempo, surgem personagens e Exércitos trazidos das sombras para nos aterrorizar. Sua ferocidade vem de longe, envolve regimes antigos e impérios atuais, reúne o general Custer e o presidente Bush, lorde Nelson e Tony Blair, Saddam Hussein e Nabucodonosor, ditadores e fariseus.

Os inimigos da inteligência têm garras de tungstênio, olhos que enxergam além do horizonte e através da escuridão, um faro capaz de localizar os esconderijos mais recônditos e ouvidos que podem distinguir as árvores pelo murmúrio de suas folhas. Eles avançam e destroem. "They search and destroy." É a guerra.

Pelas frestas do confronto, reaparece Nabucodonosor 2º, tirano implacável que invadiu Jerusalém, deportou multidões, sitiou a cidade de Tiro durante 13 anos e ergueu muralhas quase intransponíveis entre os rios Tigre e Eufrates, numa região conhecida como Mesopotâmia ("entre rios"), alguns séculos antes de Cristo.

Mas sabemos que ditadores, Exércitos e impérios, como tudo que é sólido, também se desmancham no ar. Logo teremos novos cenários e personagens certamente mais interessantes. Ficarão, porém, os prejuízos, as perdas, as ausências. As pessoas já não serão as mesmas, porque as guerras nos recolocam diante do grande espelho da história, em que redescobrimos sempre a fera à espreita, ou o lagarto que se arrastou para fora dos pântanos, milênios atrás.

As mesmas explosões que rasgam o silêncio, a carne e a cronologia, junto aos velhos rios da Mesopotâmia, hoje barrentos e poluídos, trazem da Itália dos anos 40 um enfurecido "ducce", de farda e botas de cano longo. O fascismo chega à paisagem desolada, onde existiram magníficos jardins suspensos, para vomitar seus ódios e impor sua ordem.

Das colunas de fumaça que cobrem Bagdá, dos clarões e dos escombros emergem igualmente ditadores do antigo Leste Europeu -Gomulka, Jikov, Ceausesco e tantos outros-, descendo nas corredeiras de um autoritarismo que custou a vida de muitos e morreu de embolia política, com um suspiro. Vemos ali exércitos que já foram disciplinados e assustadores, mas, na pós-modernidade, lavam suas fardas puídas e descascam batatas nos fundos de quartéis decadentes.

Os espanhóis aderiram ao ataque. Não os 800 mil espanhóis que desfilaram pelas "ramblas" de Barcelona, em defesa da paz. Mas sim uma vertente minoritária da população, que ainda se inspira na Falange, os discípulos do ditador Francisco Franco, que comandou o golpe contra o governo constitucional, a partir de 1936, e liderou as tropas fascistas, com a ajuda inestimável da Alemanha nazista, até a vitória, na Guerra Civil Espanhola, em 1939. Depois, governou o país com mãos de aço, até morrer, em 1975, consumido pelo câncer e pela maldade.

No mesmo século 20, aliás, a selvageria de inúmeros outros choques armados eliminou milhões de pessoas. Somente na Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, morreram 50 milhões de seres humanos. Ainda estarrecidos diante dos massacres ocorridos então, da bestialidade revelada e dos campos de extermínio -Dachau, Treblinka, Birkenau, Sobibor e tantos outros-, decidimos que os homens precisavam se proteger dos próprios homens e redigimos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada na ONU em 1948. Qual foi o resultado?

Enfrentamos uma prolongada Guerra Fria, com incontáveis conflitos localizados. Os homens derrotaram os homens. Mais uma vez, a fera prevaleceu.

Nas tempestades de areia do nosso destino, nas cavernas mais profundas da nossa ancestralidade, nos subterrâneos da nossa aventura, escondem-se delatores e terroristas, carcereiros e torturadores, cassandras e patriotas, usurpadores e fanáticos, predadores e corruptos, sequestradores e sociopatas. As guerras são a hora da sua plena liberação. E os inimigos, cabe lembrar, não são os pobres, os negros, os judeus, os comunistas, os muçulmanos. Os inimigos somos nós mesmos.


Rodolfo Konder, 64, jornalista e escritor, é diretor cultural da UniFMU. Foi secretário da Cultura do município de São Paulo (1993-2000) e presidente da seção brasileira da Anistia Internacional (1989-90)


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