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08/04/2003 - 08h55

Artigo: Duas estratégias em confronto

CARLOS DE MEIRA MATTOS
especial para a Folha de S.Paulo

O pensamento estratégico de cúpula das elites dirigentes dos beligerantes nesta guerra do Iraque distingue-se por visões diametralmente opostas, quer quanto à concepção de vida humana, quer no tangente à visão operacional.

No tocante à concepção de vida, enquanto a estratégia da coalizão liderada pelos Estados Unidos, consoante sua tradição cristã e liberal de valorização humana, foi concebida com a preocupação maior de poupar vidas de combatentes, a estratégia iraquiana, fiel às inspirações do Alcorão, faz do homem um instrumento de luta pela fé, desapegado à vida, cuja morte, na disputa com os infiéis, merecerá a recompensa de Alá.

Essas duas concepções de vida orientaram as estratégias operacionais. No sentido de poupar ao máximo seus combatentes, a coalizão Estados Unidos-Inglaterra emprega sua desproporcional superioridade técnico-militar, procurando enfraquecer, ou mesmo romper, a resistência das forças iraquianas, por meio de bombardeios constantes e maciços sobre Bagdá e as principais cidades sob controle de Saddam Hussein e da invasão do território inimigo por forças terrestres equipadas com o que há de mais moderno.

Quanto à estratégia de Saddam Hussein, este, convencido de sua extrema inferioridade em meios militares, procura ganhar tempo (na esperança de ser socorrido por algum imprevisível acontecimento político-diplomático) e, ao mesmo tempo, causar o maior número possível de baixas de combatentes às forças contrárias (sabe que isso abala o prestígio político dos governantes contrários). Para tanto está explorando o fanatismo do sacrifício, da imolação de seus fiéis fundamentalistas islâmicos.

Ambas as concepções estratégicas se fundamentam em posições de grupos setoriais que buscam dar uma interpretação própria à doutrina oriunda do contexto histórico maior a que se filiam.

Os norte-americanos, invocando a ideologia democrático-liberal dos patriarcas da Independência, proclamada pelos convencionais da Pensilvânia; os iraquianos, seguindo o que pensam representar os ditames religiosos e políticos contidos no livro sagrado de Maomé. O Alcorão, interpretado por sunitas e xiitas, ambos na busca do pensamento de Alá, dividiu seus fiéis em fundamentalistas e moderados, estes últimos aceitando uma visão contemporânea das leis de Maomé.

O presidente Bush e seus principais assessores, os "falcões", inspiram-se no segmento filiado às idéias de Andrew Jackson, líder republicano (sétima Presidência, de 1829 a 1837) cujo pensamento político, segundo vários autores, é a sugestão "de um Estado forte capaz de defender seu interesse nacional sem compromisso exterior".

A chamada doutrina Jackson diferencia-se das doutrinas Jefferson, Hamilton e Wilson, todas inspiradoras de correntes políticas norte-americanas nascidas de uma mesma fonte maior, liberal e democrática.

São componentes do atual governo Dick Cheney (vice-presidente), Donald Rumsfeld (ministro da Defesa), a sra. Condoleezza Rice (assessora para Segurança Nacional), Robert Zoellick (assessor para o comércio), Elliot Abrams (assessor para o Oriente Médio), a sra. Paula Dobrinasky (subsecretária de Estado para Assuntos Globais), todos de grupo de intelectuais do Partido Republicano, jacksonianos, que desde 1992 vêm denunciando o perigo para os Estados Unidos da política agressiva de Saddam Hussein e defendendo o direito do ataque preventivo e a necessidade da derrubada de seu governo (segundo matéria publicada no jornal "The Washington Post").

Vamos agora apreciar as idéias do grupo fundamentalista radical, que inspira o terrorismo de Bin Laden e que, segundo acusações de Washington e Londres, orienta também a estratégia de Saddam. O filósofo do atual radicalismo islâmico foi o professor egípcio Snyyid Outb, condenado à morte em 1966 pelo presidente Nasser. Outb foi mestre do médico egípcio Ayman al Zahahir, hoje lugar-tenente e teórico de Bin Laden.

São consideradas extraídas do pensamento do dr. Ayman as idéias contidas no pronunciamento de Bin Laden, após os atentados dos aviões suicidas contra as torres do WTC e o Pentágono, quando, abertamente, em nome do radicalismo islâmico, declara guerra mortal aos Estados Unidos e seus aliados.

Vejamos um trecho desse pronunciamento:

"Estes acontecimentos (11 de setembro de 2001) dividiram o mundo em dois campos: o campo dos fiéis e o campo dos infiéis. A Guerra Santa é um dever de todos os muçulmanos. Não há desculpas, Deus (Alá) mandou lutar pela sua causa e pelo seu nome. O povo norte-americano e seus aliados não terão mais tranquilidade enquanto seu governo não retirar as suas forças das terras sagradas de Maomé e não deixar de apoiar os infiéis de Israel contra os palestinos".

A interpretação da concepção estratégica de cúpula que inspira os dois governos em confronto nesta guerra leva-nos a crer que, em que pesem outras razões conflitantes, estão em choque dois radicalismos facciosos, afastados das fontes puras de suas matrizes -a democracia e o islamismo. Talvez, por este motivo, não tenha sido possível uma solução negociada para o conflito.


Carlos de Meira Mattos, 89, doutor em ciência política, general reformado do Exército e veterano da Segunda Guerra Mundial, é conselheiro da Escola Superior de Guerra.

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