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10/04/2003 - 07h27

Artigo: A força do nacionalismo

DEMÉTRIO MAGNOLI
Especial para a Folha de S.Paulo

Nos próximos dias, o Iraque se tornará um protetorado militar americano. O regime de protetorado estará disfarçado pelo arremedo de um governo títere iraquiano e, talvez, pela partilha de tarefas administrativas e humanitárias com a ONU. O poder de fato, todos sabem, ficará nas mãos de Washington.

Os neoconservadores que controlam a política externa da administração Bush prometem um Iraque democrático, que serviria de exemplo para uma "revolução democrática" no mundo árabe.

Acreditam na gratidão do povo iraquiano para com a hiperpotência que traz a democracia na ponta dos fuzis. Parecem pensar que o Iraque conheceu apenas o tribalismo e a ditadura de Saddam Hussein, nunca o nacionalismo. É um modo linear e simplista de interpretar a história do Iraque.

Na Antiguidade, a Mesopotâmia foi o berço das cidades-Estado sumérias, onde floresceram as civilizações acadiana, babilônia e assíria. Sofreu invasões persas e romanas. Mas sua identidade étnica, linguística e religiosa foi moldada pela invasão árabe do século 7º. Bagdá, fundada pela dinastia abácida para substituir Damasco como sede do califado, tornou-se o centro do mundo árabe-muçulmano que se estendia do Magreb ao Afeganistão.

No século 9º, no Iraque, irrompeu a querela de sucessão que originou a dissidência xiita. Sob o califado abácida, o árabe tornou-se uma língua geral dos fiéis do islã, difundindo-se pela África do Norte e grande parte do Oriente Médio. Uma cultura compartilhada assinalou o apogeu do mundo árabe, que contrastava com o atraso, a selvageria européia.

O Império Otomano estabeleceu o seu poder sobre o mundo árabe nos séculos 16 e 17. Bagdá caiu em mãos otomanas em 1534, foi perdida logo depois e reconquistada em 1638.

A estrutura imperial, a maior que se conhecera desde a queda de Roma, conseguiu estabilidade duradoura respeitando a pluralidade de culturas e os privilégios das elites nas diferentes partes do império. Sua lenta decadência, no século 19, abriu caminho para as potências européias, que colonizaram o norte da África.

A 1ª Guerra assinalou o colapso otomano e a fragmentação geopolítica do Oriente Médio. A França estabeleceu mandatos na Síria e no Líbano. O Reino Unido, que tinha declarado protetorado sobre o Egito, tornou-se potência mandatária na Palestina, na Transjordânia e no Iraque.

A Arábia Saudita unificou-se, mas os britânicos, determinados a controlar as fontes e rotas do petróleo, impediram a unidade da península e retalharam a orla do golfo Pérsico em protetorados. Essa é a origem do Kuait, do Qatar, de Barein e dos Emirados Árabes Unidos.

O poder britânico no Iraque sofreu a contestação de uma revolta tribal, com tinturas nacionalistas, em 1920. Londres acomodou as tensões concedendo o autogoverno, sob controle britânico, e coroando Faiçal 1º rei do Iraque. O pai de Faiçal, Husayn, liderara a revolta árabe contra o sultão otomano durante a guerra mundial, lutando ao lado do célebre agente britânico T.E. Lawrence.

Husayn confiou nas palavras do "Lawrence da Arábia", que queria "fazer uma nova nação" e, depois da guerra, liderou uma revolta nacionalista na Síria. Os franceses sufocaram a revolta, contando com a indiferença dos britânicos. A coroação de Faiçal foi o prêmio de consolação de Londres, que desenvolvia uma sinuosa política de sedução das elites árabes.

O nacionalismo monárquico gerou uma independência formal, em 32, e se esgotou no pós-guerra, sob o impacto da emergência do Baath (Ressurreição). O partido surgiu na Síria, como expressão de um pensamento modernizante e laico, amparado nas classes urbanas educadas.
Seu principal teórico, o cristão Michel Aflaq, sustentava a existência de uma única nação árabe, herdeira da tradição cultural do islã, com a convivência de diversas confissões religiosas. Essa nação deveria ter o direito de constituir um Estado unificado.

O baathismo original, mesclado com os elementos da reforma social e do socialismo, difundiu-se pelos países vizinhos. No Iraque, o baathismo inspirou a revolução militar de 1958, que derrubou Faiçal 2º e instalou a República.

O nacionalismo baathista distingue-se do nacionalismo monárquico. O último fazia a nação repousar no direito da dinastia; o primeiro, na unidade do povo. Por isso, nos anos 60 e 70, o poder baathista entrou em conflito com o nacionalismo curdo. Ao mesmo tempo, o Estado forte modernizava o país, promovendo a educação pública, a igualdade política das mulheres, a nacionalização da indústria petrolífera, a dragagem dos pântanos e a irrigação.

Saddam Hussein chefiou o núcleo baathista das coalizões militares que governaram o Iraque na década de 70. Em 79, num golpe palaciano, assumiu a Presidência. Durante a Guerra Irã-Iraque (80-88), estruturou uma ditadura feroz, baseada na fusão do Baath com o aparelho de Estado.

A Guarda Republicana, as milícias paramilitares e os órgãos de segurança interna formaram a espinha dorsal de um regime assentado sobre o clã do presidente, que se origina na cidade de Tikrit.

Ele não deve ser confundido com uma ditadura militar de camarilha, "à la boliviana". É um ramo sangrento do tronco baathista, que sustenta a árvore do nacionalismo iraquiano. O ramo caiu, mas a árvore tem raízes mais profundas do que crêem os neoconservadores de Washington.

Demétrio Magnoli, 44, é editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional"
 

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