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22/04/2003 - 03h41

Artigo: Por um diálogo entre o Ocidente e o Islã

DEMÉTRIO MAGNOLI
ELAINE SENISE BARBOSA
Especial para a Folha de S.Paulo

"O Ocidente dominou o mundo não pela superioridade das suas idéias, valores ou religião, mas pela sua superioridade na aplicação da violência organizada", escreveu Samuel Huntington. O autor do "Choque de Civilizações" completou: "Ocidentais frequentemente esquecem esse fato; não-ocidentais nunca esquecem".

Os neoconservadores americanos, que controlam a política externa de Washington, encaram a invasão do Iraque como um processo civilizatório. Os Estados Unidos estariam levando a democracia para o mundo árabe e, por meio do exemplo iraquiano, forçando a reforma do Islã. A "aplicação da violência organizada" funcionaria como veículo para a difusão das idéias e dos valores do Ocidente.

Esse discurso, reminescente do "fardo do homem branco" dos colonialistas do século 19, configura uma política neo-imperial. Sua falácia consiste na crença de que a democracia pode ser injetada do exterior. Ou de que a "violência organizada" das forças invasoras é capaz de substituir a história e fundar um mundo novo. Não é difícil prever que o resultado do empreendimento neo-imperial no Iraque será, pelo contrário, o de semear o terreno no qual o fundamentalismo islãmico recruta seguidores.

Mas o apelo do discurso neoconservador decorre do fato de que ele toca num nervo real e profundo, no traço que distingue o Ocidente do Islã: a democracia. O Ocidente produziu sociedades democráticas, fundadas na separação entre a política e a religião. O Islã, em contraste, conserva a submissão dos homens ao livro.

O fundamentalismo está na origem das três religiões monoteístas. Contudo a Reforma e o Iluminismo tornaram essa postura uma excepcionalidade nas sociedades ocidentais. A Reforma libertou o indivíduo da comunidade de fiéis ao estabelecer o princípio da livre interpretação dos textos sagrados. O Iluminismo libertou o contrato político da primazia da Igreja Católica ao estabelecer o princípio da soberania popular. O Islã não conheceu nada semelhante à Reforma ou ao Iluminismo.

O Corão e, na maioria dos casos, a Suna continuaram a modelar a lei política e civil, expressa na "sharia". No auge da cultura muçulmana, homens como Avicena (980-1037) e Ibn Khaldun (1332-1406), desenrolando o fio de uma tradição enraizada na cultura helenística, ameaçaram deflagrar as luzes muito antes dos europeus.

Mas esse desenvolvimento foi abortado pela crise do califado abácida e pela invasão dos mongóis.

A grande perturbação dos espíritos que fundou o Ocidente contemporâneo chegou ao Islã no final do século 19, quando uma geração de modernistas entregou-se à aventura de reformar as sociedades muçulmanas.

O intelectual egípcio Muhammad Abduh (1849-1905) queria "liberar o pensamento dos grilhões da imitação" e reconciliar a religião com a investigação científica. O sírio Rashid Rida (1865-1935) propunha a distinção entre as doutrinas religiosas imutáveis e as leis sociais, que deveriam se adaptar às circunstâncias.

A paixão pelas idéias do Ocidente acompanhou, como uma sombra, a expansão imperial européia sobre o islã. Na Índia, enquanto se instalava o poder britânico, o erudito muçulmano Sayyd Ahmad Khan (1817-98) tentava encaixar o Islã no liberalismo político. No Irã, os intelectuais Mulkhum Khan (1833-1908) e Aqa Khan Kirmani (1853-96) pretendiam substituir a "sharia" por um código civil secular. A obra "Admoestação à Nação", do xeque Muhammad Husain Naini, fez a defesa da revolução constitucional de 1906 e argumentou em favor de um governo de estilo ocidental. Aí se encontram as raízes do pensamento de Muhammad Kathami, o atual presidente iraniano, que desafia o poder do clero xiita.

A evolução do modernismo no interior do Islã, porém, foi cortada pelo advento do nacionalismo, que aparecia como instrumento para a luta contra as potências coloniais. A modernização passou a operar fora das estruturas de pensamento do Islã e contra elas. No pós-guerra, o pan-arabismo representou uma tentativa retardatária de modernizar as sociedades árabes e separar a política da religião. O fracasso dessas tentativas ou seja, a falência do egípcio Nasser no combate contra Israel e a dissolução das esperanças depositadas no partido Baath, ativaram os motores do fundamentalismo islãmico contemporâneo na Síria e no Iraque.

Nos tempos medievais, durante sua expansão, o Islã salvou da destruição a filosofia e a ciência helenísticas. Conservou e aprimorou os livros e saberes dos povos que subjugou. Foi mestre da Europa cristã quando ela começou a romper o imobilismo feudal, ensinando-lhe parte de sua própria história. Hoje, quando a política árabe e o mundo muçulmano são assaltados pelas tentações anacrônicas da teocracia e do jihad, o Ocidente enxerga o Islã pelas lentes do preconceito, como se fosse a sua antítese, e os "senhores da guerra" de Washington imaginam-se portadores de uma nova verdade revolucionária.

O estranhamento que separa o Ocidente do Islã é fruto de séculos de história. Os aviões que destruíram as torres gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, e a marcha das tropas americanas sobre Bagdá refletem tragicamente esse estranhamento e introduzem, na política mundial, o espectro do "choque de civilizações". O antídoto existe, mas depende de um diálogo entre o Ocidente e o Islã, centrado nos valores da Reforma e do Iluminismo. Entre árabes e muçulmanos, há incontáveis interessados nesse diálogo e há uma tradição modernista que resiste ao fundamentalismo. O obstáculo é o ruído ensurdecedor das bombas e a humilhação da ocupação.

Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana pela USP e editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional"; Elaine Senise Barbosa, historiadora, é autora de "A Encruzilhada das Civilizações: Católicos, Ortodoxos e Muçulmanos no Velho Mundo" (Moderna, 1997)
 

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