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13/07/2003 - 09h08

EUA estão em declínio, diz pensador francês

SILVIA BITTENCOURT
free-lance para a Folha

Foi na década de 70 que o historiador e demógrafo francês Emmanuel Todd previu, no seu livro "A Queda Final", a decomposição do império soviético. Agora, quase 30 anos depois, é o império americano que aparece, na visão de Todd, com seus dias contados.

Com "Após o Império: Ensaio sobre a Decomposição do Sistema Americano", o historiador vem conquistando as listas dos livros mais vendidos em vários países europeus.

Segundo Todd, os EUA dependem, do ponto de vista econômico, cada vez mais do restante do mundo. O restante do mundo, por sua vez, não precisa mais dos EUA. Para esconder essa dependência econômica crescente, os EUA tentariam mostrar sua força, buscando conflitos militares com países menores. A luta contra o terrorismo internacional seria, então, um "mito" criado pelos EUA. E a Guerra do Iraque seria uma "encenação".

"Após o Império" foi lançado em 2002 pela editora Gallimard e logo se tornou um best-seller na França. Foi traduzido e lançado, neste ano, em 11 línguas. No Brasil, ele será editado pela Record.

Sobre o suposto declínio americano, Todd falou à Folha, por telefone, do Instituto Nacional de Estudos Demográficos, no qual trabalha, em Paris.

Folha - Os EUA saíram da guerra contra o Iraque com uma vitória soberana. Isso combina com sua teoria de que os EUA estão perdendo seu poder no mundo?
Emmanuel Todd -
O Iraque é um país subdesenvolvido, com cerca de 25 milhões de habitantes, saindo de mais de dez anos de um embargo econômico. Isso ilustra uma das teses do meu livro, segundo a qual essa guerra foi uma espécie de "micromilitarismo teatral". Ou seja, a América tem de atacar países insignificantes de algumas regiões do planeta, tentando mostrar que ela é necessária para o mundo.

Antes da guerra, já observamos uma certa desintegração do sistema diplomático americano. A Alemanha declarou-se contra a guerra, o que foi um dos eventos históricos mais importantes desse processo. Afinal, esperava-se uma certa submissão da Alemanha. Mas, com o "não" dos alemães, foi possível o "não" da França. O "não" da Turquia também foi importantíssimo, pois mostrou a maior proximidade do país com a Europa do que com os EUA.

A questão é: por que ficou fácil dizer 'não'? Porque os EUA não têm mais o mesmo poder econômico-financeiro do passado. O dinheiro está hoje na Europa, o que torna difícil para eles fazer ameaças. Agora, após a guerra, o que se vê é a inabilidade dos americanos em controlar o Iraque. Com menos poder econômico, ficará difícil manter o poder militar.

Folha - O sr. prevê um papel forte da Europa e da Rússia frente ao declínio americano. Mas a Europa, por exemplo, saiu completamente dividida da Guerra do Iraque. A União Européia não tem nem sequer uma política externa comum. Por que o sr. é tão otimista com o poder da Europa?
Todd -
A divisão da Europa na Guerra do Iraque apareceu como algo muito importante, como uma coisa terrível. Mas a América criou um mito em torno do Iraque, apresentando a guerra como uma coisa importantíssima. Mas eu acredito que ela tenha sido uma encenação, o que torna as discordâncias sobre a guerra algo muito superficial. Sou muito otimista com o futuro da Europa.

Enquanto a Alemanha era um país submisso, aceitando todas as decisões de Washington, não era possível haver uma Europa livre e emancipada. Nada é possível sem a Alemanha pela simples razão de que ela é a maior força industrial do continente e uma das maiores do mundo. Agora a Alemanha está livre. Com isso, a Europa também está livre. Houve desordem, uma periferia em discordância. Mas a população européia estava totalmente unida na questão do Iraque. Os governos da Alemanha e da França acabaram representando os europeus.

Folha - A ONU também saiu enfraquecida da guerra. Como sua autoridade pode ser restaurada?
Todd -
Não acho que a ONU tenha se enfraquecido. Se houvesse um grande problema com o Iraque, poderíamos pensar que a ONU tivesse fracassado. Mas, até agora, não se encontraram armas de destruição em massa no Iraque. Não dá para afirmar, então, que a ONU se mostrou incapaz de resolver um problema que na verdade nunca existiu. Mas, se a América se tornar o grande problema do mundo --o que é uma das teses centrais do meu livro--, a ONU terá de fazer algo.

Ela terá de impedir que os EUA atuem sozinhos. A ONU tem sua sede em Nova York, e acho, por exemplo, que possa ficar difícil para ela trabalhar lá, próxima dos serviços de informação americanos. A ONU deveria, por exemplo, ter coragem de ameaçar os EUA com a mudança de sua sede, talvez para a Europa, talvez para um país como a Suíça. Penso que a América ainda tem um medo enorme de se isolar, de ser jogada para a periferia do mundo.

Folha - O sr. já foi um grande crítico da União Européia, publicando até mesmo um livro contra a introdução da moeda comum, o euro. O que o fez mudar de idéia?
Todd -
Primeiramente, porque o euro começou a cair no mercado financeiro. Era uma moeda bonita, mas sem eficiência. Mas a principal razão foram os EUA. No início dos anos 90, logo após o colapso da União Soviética, eu confiava nos EUA, não via a necessidade de combater o poder americano. Mas foi o comportamento estranho e predador dos EUA que me fez ver a necessidade de a Europa se tornar uma nova potência.

Folha - Os EUA deixaram então de ser um exemplo de democracia para se tornarem uma ameaça?
Todd -
Por muito tempo, a América foi um país independente, com uma economia poderosa, útil para o mundo. Isso foi importante na luta contra sistemas totalitários, como o nazismo. Agora vivemos uma nova situação, na qual os EUA são dependentes do mundo. Fica fácil medir isso, observando o crescimento do déficit comercial dos EUA, hoje em torno de US$ 500 bilhões.

Ele torna os americanos dependentes de financiamento externo. O "Velho Mundo", principalmente a Europa, precisou da América, não se pode negar. Mas, aos poucos, não precisa mais. A Europa Ocidental é muito próspera, estável. A Rússia deixou de ser uma ameaça para se tornar uma parceira. A mídia, na cobertura da Guerra do Iraque, nos fez pensar que a América é o centro do mundo. Mas a verdade é que, do ponto de vista geopolítico, os EUA podem ser terríveis para o mundo.

Os líderes americanos devem pensar: "O que fazer se nos tornamos dependentes do ponto de vista econômico, se não somos mais necessários no mundo?".

Folha - O sr. diz que vários países islâmicos estão passando por um processo demográfico e educacional que, necessariamente, os levará, no futuro, para a democracia. Isso significa que uma boa parte do mundo poderia tornar-se democrática sem intervenção de fora. Não é uma visão otimista demais?
Todd -
Não falo tanto em democracia, mas em sistemas representativos. A tese já vem de [Francis] Fukuyama, autor de "O Fim da História". Particularmente, creio que esteja havendo muito progresso em vários países. Em períodos transitórios, as taxas de analfabetismo sobem, assim como as taxas de natalidade, e acontecem as crises, que fazem parte do processo de transformação de populações tradicionais. É quando ocorrem, por exemplo, revoluções. Depois disso, se vê uma fase de estabilização, na qual emergem formas políticas pluralistas.

O Irã é um exemplo óbvio. O país passou por uma revolução que, apesar de religiosa, não impediu a modernização. Durante o regime do aiatolá Khomeini, parou de cair a taxa de natalidade, que hoje é de 2,1 crianças por mulher, a mesma registrada nos EUA. É evidente que o regime está mudando aos poucos. Há uma esquerda e uma direita, reformistas e conservadores. Isso não significa que o país conte com um regime democrático perfeito. Mas acredito que, sem intervenção externa, o Irã se torne um dos primeiros países democráticos do mundo islâmico. É difícil para os EUA admitir esse processo de democratização. Para eles, isso significaria o fim da necessidade de defender o mundo militarmente.

Folha - O sr. considera o terrorismo internacional um "mito" ou um "fenômeno transitório". Mas grupos terroristas continuam matando e também agem em territórios ocidentais. Como o Ocidente deve lidar com o terrorismo?
Todd -
Não digo que o terrorismo não existe. Mas que ele está concentrado principalmente em países islâmicos e que isso tem a ver com aquelas crises transitórias, as fases de transformação que já mencionei.

Eu diria até que a única ameaça que vem do mundo islâmico é o terrorismo, pois lá não há nenhum Estado forte do ponto de vista militar. Nos últimos meses, ficou evidente a inabilidade do terrorismo islâmico em atuar fora de seus países.

Houve os ataques de 11 de setembro de 2001, que foram terríveis, mas, desde então, não ocorreu nada no Ocidente. Houve terrorismo em Marrocos, na Tunísia, na Indonésia, no Paquistão. Isso prova para as autoridade ocidentais que é suficiente trabalhar com a polícia, com os serviços de informação etc. Não se trata de uma ameaça global, não há necessidade de armas pesadas.

Folha - O que os americanos devem fazer para evitar este suposto declínio?
Todd -
Trabalhar. Eles devem se concentrar na indústria, na produção. Hoje eles consomem sem produzir. A Europa teve várias experiências de declínio, por exemplo, depois das grandes guerras. A Europa tem uma longa história e sobreviveu a muitas guerras.

Mas a América é um país jovem, sem experiências. Nem sabemos --e aqui falo como historiador-- se o país conta com uma sociedade estável. Não sabemos, então, se os americanos terão habilidade suficiente para resolver um problema dessa grandeza. A América deve aceitar os novos desafios, que não são de ordem militar, mas econômica.

Folha - Alguns críticos americanos citam seu livro como um exemplo do antiamericanismo na Europa, particularmente na França. Como o sr. responderia a eles?
Todd -
É um absurdo classificar-me dessa forma, pois, até alguns anos atrás, eu era um grande admirador dos EUA. Talvez até por isso eu tenha menosprezado a questão européia. Venho de uma família judaica, que se refugiou nos EUA durante a guerra. Minha formação em história concluí em Cambridge, na Inglaterra. A família Todd é conhecida em Paris por sua proximidade com os anglo-saxões e com a América. Mas não gosto de falar de questões pessoais. O importante é a argumentação que está no livro.

Folha - O sr. faz, em seu livro, algumas menções à América Latina e ao Brasil. Como o sr. vê o futuro da América Latina ante esse suposto declínio americano?
Todd -
Não sou um especialista, vou falar de forma geral. Estou impressionado com a evolução da região. Por exemplo, com a queda das taxas de analfabetismo. Alguns países estão se homogeneizando, saindo de uma transição democrática. Sou muito otimista. Creio que isso possa levar a uma independência maior dos EUA. O Brasil é um caso particular, muito pela questão linguística. Vejo-o como a grande força da região.
 

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