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17/08/2003 - 09h29

Blecaute faz aflorar individualismo em NY

OTÁVIO DIAS
da Folha de S.Paulo

O blecaute da última quinta-feira provocou um "pânico em câmera lenta" em Nova York e desmascarou a sensação de invulnerabilidade de seus habitantes diante das ameaças da natureza ou do subdesenvolvimento.
É o que diz o semiólogo americano Marshall Blonsky, autor do livro "American Mythologies" (mitologias americanas), publicado nos EUA em 1992.

"Nessa sociedade eletrônica e consumista, sentimos que somos invulneráveis. O blecaute desmascarou esse simulacro, mostrou que toda a parafernália que nos rodeia é puro lixo", afirmou Blonsky, 65, morador de Manhattan e professor de semiologia na New School University.

A pedido da Folha, Blonsky, um dos mais famosos semiólogos americanos, relatou sua própria experiência e analisou a reação dos cidadãos de Nova York durante o primeiro dia do blecaute. Leia a seguir os principais trechos de seu depoimento.

"MENTIRA" - "Dormi ontem [quinta-feira] até as quatro da tarde. Acordei exatamente no momento em que começava o blecaute. Tentei ligar para uns amigos, mas o telefone não funcionava. O ar-condicionado estava desligado, tentei ligar, não funcionou. Liguei o computador, nada. A TV, idem. Meu celular estava sem bateria. Então, concluí que a Al Qaeda havia atacado Nova York.

Em seguida, meus pais, que moram em Kansas City (Missouri), telefonaram. O telefone não fazia, mas recebia chamadas. Minha mãe encostou o aparelho na TV CNN e pude ouvir que a rede de energia elétrica, do Canadá a Nova York, havia caído. Em seguida, sempre pelo telefone, ouvi o prefeito Michael Bloomberg dizer que não havia indícios de que tinha sido um ataque terrorista. Mas eu tinha certeza de que fora. Pensei: "Isso é mentira"."

PEQUENAS COMUNIDADES - "Tive um instinto de sobrevivência e decidi descer os dez andares do meu prédio, mas esqueci a lanterna. Quando cheguei ao térreo, o lobby estava iluminado apenas por umas velas. Tive a sensação de estar em uma cerimônia religiosa.

Saí para a rua e percebi que pequenas comunidades estavam se formando em torno de funções variadas. Em frente ao prédio, um rapaz ligou o rádio do carro no volume máximo. As pessoas começaram a se reunir em torno do carro. O rapaz se tornou o mestre de cerimônias, o condutor de uma orquestra. E o rádio falava de enormes congestionamentos."

MERCANTILISMO - "Muita gente teve de descer dezenas de andares sem luz, sem saber o que estava acontecendo, imaginando ser um ataque terrorista. As pessoas tentavam comprar água, comida, mas os supermercados estavam fechados, acho que com medo de saques. Apenas os mercadinhos estavam abertos. Mas os donos gritavam: "Não aceitamos cartões de crédito", "não temos pilhas", "não temos velas", "não temos fósforos". Só deixavam entrar de três em três, eram muito rudes.

Eu tinha apenas US$ 40 (cerca de R$ 120) no bolso e pensei que precisava comprar um pouco de água, de comida, umas latinhas de cerveja. Comecei a sentir pânico porque não sabia quanto tempo aquela situação duraria e meu dinheiro não seria suficiente para passar o fim-de-semana. Uma das características de Nova York é a mercantilização da sociedade. Isso ficou muito claro quando o blecaute ocorreu."

FALHA SOCIAL - "Formaram-se pequenas comunidades, em torno de um rádio, numa fila para comprar gelo. Mas não acho que isso seja uma comunidade, porque há uma linearidade, uma fila, mas na frente da fila há mercantilistas gritando "não tem gelo". Pela minha observação e análise rápida, a comunidade falhou. Apesar de o prefeito ter apelado à comunidade, o que vi foi uma comunidade falsa, de mentira."

REFUGIADOS - "Muitos comerciantes trouxeram seus produtos para as calçadas. E começaram a se formar filas enormes. Senti-me mal, com vergonha de ficar na fila. Parecia uma fila de refugiados. De repente, me vi caindo do Primeiríssimo Mundo para uma sociedade do Quarto Mundo. Lembrei-me, sei lá, da Libéria."

PÂNICO EM CÂMERA LENTA - "Havia no ar uma sensação de "catástrofe em câmera lenta". O pânico não chegou de forma súbita, mas foi se aproximando e tomando conta da cidade e das pessoas como um fog, um gás, um miasma. Parecia que ia lentamente se interiorizando na vida das pessoas, que se transformavam, aos poucos, em sobreviventes."

MENSAGEM AO TERROR - "Achei, e continuo achando, que foi um ataque terrorista real. De qualquer maneira, pareceu-me um sinal ou uma mensagem a todos os fundamentalistas islâmicos e outros inimigos dos EUA -muitos deles, aliás, com bons motivos para nos odiar- de que isso pode ser feito de novo. Se pode acontecer "naturalmente", pode ocorrer de novo "culturalmente", por ação de profissionais do terror."

SOLIDÃO - "Andei uns 30 quarteirões, comprei água, comida. Ao final, tinha uns quatro pacotes na mão. Estava um calor danado, muito úmido, minha camisa estava completamente molhada. Ao chegar ao meu prédio, subi os dez andares. Exausto, no escuro, perdi a sensação de espaço, a orientação. Bati em algumas portas, ninguém atendeu. Finalmente, vi uma luz tênue iluminando o corredor. Vinha do apartamento de uma vizinha. Pedi que esperasse até eu chegar ao meu apartamento, mas ela bateu a porta na minha cara. Senti-me só e em pânico."

BAUDRILLARD - "Tenho uma televisão de 40 polegadas, um aparelho de som, DVD, três celulares, TV a cabo, fax, computador, internet. Vivo no meio de todas essas coisas, mais do que as controlo. O sociólogo francês Jean Baudrillard diz que nós, no Primeiro Mundo, achamos que estamos protegidos da natureza, das calamidades naturais, do subdesenvolvimento pela intensa atmosfera de ciência e de imagens na qual vivemos. Ele chama isso de "semiosfera".

Nessa sociedade eletrônica e consumista, sentimos que somos invulneráveis. O blecaute desmascarou esse simulacro, mostrou que essa parafernália é puro lixo. E, num momento como esse, quando você precisa das pessoas, elas batem a porta na sua cara."

ESQUECIMENTO - "Os nova-iorquinos, e os norte-americanos em geral, estão tão acostumados a seu conforto que tenho certeza de que, assim que a energia voltar, esquecerão, num minuto nova-iorquino, tudo o que aconteceu."
 

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