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18/08/2003 - 08h26

Problema da América Latina é impunidade, diz Esquivel

ELAINE COTTA
da Folha de S.Paulo, em Buenos Aires

A Argentina vive hoje uma nova fase, mas ainda sofre com o problema da impunidade, apesar de recentes medidas que visam apressar o julgamento de militares que violaram direitos humanos na última ditadura (1976-1983). A opinião é do arquiteto e escultor argentino Adolfo Pérez Esquivel, 72, Prêmio Nobel da Paz de 1980, para quem o problema não atinge somente o país vizinho.

Para ele, a impunidade é o grande gargalo do desenvolvimento da América Latina. Em entrevista à Folha na última sexta-feira, o presidente da associação Serviço de Paz e Justiça falou sobre a ofensiva do presidente argentino, Néstor Kirchner, para renovar as instituições do país, da prisão de dois ex-líderes montoneros --grupo guerrilheiro que fazia oposição à ditadura-- e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Folha - Como o sr. vê a retomada de processos contra os militares?
Adolfo Pérez Esquivel
- Eu acredito que houve mudanças de decisões políticas do novo governo, que, por fim, decidiu enfrentar uma situação que os outros não quiseram encarar.

Folha - O sr. vê isso como um avanço?
Esquivel
- Sim. Mas ainda temos dificuldades no Poder Judiciário, que está muito viciado e dependente do poder político. Estamos no meio de um processo que levará tempo. Já conseguimos que a Câmara dos Deputados declarasse a nulidade das leis de anistia. Agora, temos de esperar o Senado e a Corte Suprema de Justiça.

Folha - E o sr. acha que essas leis deixarão realmente de vigorar?
Esquivel
- Tudo depende da relação entre força política e pressão social. O Senado tem uma maioria menemista que pode atrasar as negociações, além do bloco radical [UCR - União Cívica Radical], que é contrário à nulidade. Estamos no meio de um processo aberto e inacabado.

Folha - Mas a validade legal da nulidade é questionada?
Esquivel
- Sim. Isso é um problema jurídico. Mas a Suprema Corte tem poder para acabar com elas. É isso que buscamos, uma forma de combater a impunidade. Não é possível reconstruir um processo democrático sobre a impunidade. É preciso recuperar as instituições para que o Estado funcione corretamente.

Folha - Então o principal problema é a impunidade?
Esquivel
- A impunidade não se restringe apenas ao caso dos militares que violaram os direitos humanos e ainda não pagaram por seus crimes. Existe a polícia do gatilho fácil, que mata e depois pergunta, e os políticos que saquearam o país, roubaram bilhões de pesos e que estão livres. É preciso acabar com a impunidade em todos os setores.

Folha - O sr. acredita que a Argentina terá de recorrer às extradições ou conseguirá julgar os militares no país?
Esquivel
- Se as leis não forem extintas, haverá extradições. A mim interessaria que os julgamentos fossem aqui. Isso ajudaria a revitalizar a Justiça argentina. Mas, se não for possível, que sejam pelas extradições.

Folha - Alguns setores da esquerda dizem que a prisão dos ex-líderes montoneros na semana passada foi uma forma de amenizar os ânimos das Forças Armadas...
Esquivel
- É preciso ter cuidado com o que se chamou durante muitos anos, na Argentina, de "política dos dois demônios". Há quem defenda que o que aconteceu durante a ditadura foi uma guerra entre governo e guerrilheiros. Isso é errado. São delitos de graus muito diferentes. Os ex-montoneros que cometeram crimes devem ser julgados, claro. Mas esses crimes nada têm a ver com o terrorismo de Estado aplicado no país. Quem viola direitos humanos é o Estado. E o que aconteceu na Argentina não foi uma guerra. Foi uma repressão sistemática em todos os setores da sociedade. As guerrilhas deveriam ter sido contidas por mecanismos legais.

Folha - Mas as prisões acalmaram os militares...
Esquivel
- Sim. Pode ser uma forma de apaziguar os ânimos, buscar equilíbrio. Alguns querem defender os ex-guerrilheiros. O que temos de fazer é priorizar a justiça. Se há prova de que são culpados, que sejam punidos. O que queremos, mais uma vez, é acabar com a impunidade. Mas há uma diferença entre a ação do Estado contra direitos humanos e a ação de um grupo de delinquentes. São responsabilidades diferentes que a Justiça terá de determinar.

Folha - Alguma vez o sr. perdeu a esperança?
Esquivel
- Sempre tive esperança. Caso contrário não estaria trabalhando por isso até hoje. É uma luta antiga. Todos os dias me canso. Mas temos de prosseguir. Por exemplo, não foi casual o problema que Kirchner teve com o helicóptero recentemente.

Folha - O sr. acha que pode ter sido uma tentativa de sabotagem?
Esquivel
- Temos de enfrentar essa realidade sem ter medo. Existem setores que continuam reivindicando a ditadura militar. São mafiosos, assassinos. Não estamos lidando com gente que tenha valores, ética e responsabilidade. Eles mataram 30 mil pessoas na ditadura, torturaram, estupraram, sequestraram crianças e seguem com a mesma mentalidade. Temos de enfrentar máfias. Não podemos nos intimidar com o medo. Orgulha-nos ter um presidente como Kirchner, que enfrenta essa situação.

Folha - Qual seria o avanço mais importante para o país?
Esquivel
- Estamos num processo de transformação social, política, cultural e econômica. Se esse governo conseguir restabelecer a credibilidade e a funcionalidade das instituições do Estado, já será uma grande revolução. Temos de ter cuidado para que os governantes da América Latina não sejam domesticados pelo mercado.

Folha - E que avaliação o sr. faz do governo Lula?
Esquivel
- Cito aqui o meu amigo Frei Betto: "Lula chegou ao governo, mas não ao poder". Muitas vezes, governo é uma coisa, e poder, outra. O sistema é perverso para os governantes, e isso vale para o Lula, que avançou com a proposta de integração da América Latina e ao olhar para a situação social. Mas tem uma herança maldita. O Brasil é hoje um elefante numa cristaleira. É preciso mover-se com cuidado. Se, dentro de um ano, Lula não mudar nada, aí sim poderemos dizer que já está domesticado.
 

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