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05/09/2003 - 12h51

Artigo: As forças de paz da ONU e o resto do mundo

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JULIE SCHMIED
especial para a Folha Online

O lamento e o grito de socorro daqueles que padecem de guerras mal resolvidas exige soldados especiais.

Para acudir a esse chamado de desesperança, tropas, policiais-militares, funcionários administrativos, técnicos, voluntários e muitos outros tipos de "soldados da paz", de todos os cantos do mundo, têm sido convocados a ostentarem nos ombros as insígnias da ONU (Organização das Nações Unidas) e a "protegerem-se" sob capacetes azuis.

Esses são seguramente os símbolos mais conhecidos no mundo e estão presentes nas mais nobres batalhas empreendidas --as batalhas pela paz. O campo de combate em que mais têm sido necessários ultimamente é sem dúvida a África.

À sua retaguarda formam naturalmente os batalhões logísticos da distribuição de alimentos e medicamentos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), os hospitais de campanha dos abnegados Médicos Sem Fronteiras, os postos de controle guarnecidos pelo Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (HCUNR, das siglas em inglês) e diversos voluntários ou convocados civis locais.

Base

O quartel-general da logística da ONU está assentado em Brindisi, no sul da Itália, e diversas empresas do mundo são contratadas para prestar serviços terceirizados em apoio às movimentações.

As campanhas pela paz podem se desenvolver como: operações de imposição da paz, mantidas por países com mandato especial do Conselho de Segurança; operações de manutenção da paz, desenvolvidas sob o comando da ONU; ou de missões políticas e de construção da paz, de menor envolvimento militar e superior ação política da ONU.

Essas campanhas não são necessariamente de curta duração --raramente o são--, nem isentas de baixas. De início, os lados em conflito custam a entender ou a aceitar a missão que esses "soldados universais" têm a cumprir, mas aos poucos a razão tende a se impor.

Muitas já se desenvolvem há anos --as mais longas são: a UNTSO (Organização da ONU para a supervisão de Tréguas), que ocupa 370 civis e militares, desde 1948, e acumula 38 baixas; e a UNMOGIP (Grupo de Observação Militar da ONU na Índia e Paquistão), composto de 116 civis e militares, operacional desde 1949 e com nove baixas.

Baixas

Desde 1948 até hoje, cerca de 1.800 registros fatais já foram computados nas fileiras da ONU.

No levantamento de 31 de maio de 2003, a ONU registrava 89 países contribuindo com pessoal militar e policiais civis, para 14 operações de manutenção da paz (Índia, Paquistão, Chipre, Líbano, Kuait, Sahara Ocidental, Geórgia, Kosovo, Serra Leoa, Congo, Etiópia, Eritréia, Timor Leste e Costa do Marfim). Um total empregado naquele momento de cerca de 35 mil combatentes e alguns milhares de civis.

Em paralelo, nessa data, ocorriam 12 missões políticas e de construção da paz (Afeganistão, Burundi, República Centro-Africana, região dos Grandes Lagos na África, Guatemala, Guiné-Bissau, Libéria, Somália e Tadjiquistão), compostas basicamente de cerca de 340 civis internacionais, 25 militares e 770 civis contratados locais.

Os recursos financeiros despendidos no orçamento da ONU também não são desprezíveis. O orçamento do setor para o período de 1 de julho de 2002 a 1 de julho de 2003 foi de mais de US $ 2,6 bilhões; e o orçado para até 1 de julho de 2004 é de mais US $ 2,17 bilhões. Ao todo, desde 1948, computa-se já terem sido gastos, com as operações de paz da ONU, cerca de US $ 28,73 bilhões (todos os dados são da Seção de Paz e Segurança da ONU).

De todas essas operações e missões de paz, certamente a que mais completo êxito logrou foi a UNMISET (Missão da ONU em Apoio ao Timor Leste) operacional de maio de 2002, que cumpriu a sua missão com apenas 11 baixas.

Essa operação foi bastante acompanhada no Brasil, em razão da exemplar --e porque não legendária-- participação daquele que chegou a ser o alto comissário da ONU para Refugiados, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, e de contingentes das Forças Armadas brasileiras, integrados aos de muitos outros países.

Operações na África

As chamas das guerras há muito têm inflamado o sofrido continente africano. Nele a ONU desenvolve cinco operações de manutenção da paz e sete missões políticas e de construção da paz. Lá o histórico das lutas e da perda de vidas humanas chega a ser estarrecedor.

No Congo, desde 1998, estima-se em cerca de 3,3 milhões de mortos, produto da guerra civil e, recentemente, de confrontações tribais rivais. A Monuc (Missão da ONU na República Democrática do Congo) opera desde novembro de 1999 e congrega mais de 4.500 militares e cerca de mil civis. Afortunadamente, registra apenas 17 baixas, frente a um clima de quase holocausto civil.

Em Serra Leoa registra-se outro caso de "êxito", ao se lograr desarmar as partes da guerra civil, que deixou dezenas de milhares de mortos e cerca de 2 milhões de "deslocados", gerando imenso trabalho para o Alto Comissariado da ONU para Refugiados e muitas organizações de reconstrução - muitas delas ONG (organizações não-governamentais). A UNAMSIL (Missão da ONU em Serra Leoa) chegou a congregar mais de 16 mil militares (13 mil atualmente), ao custo de 109 baixas.

Na fronteira entre a Etiópia e a Eritréia é mantida, desde o ano de 2.000, a UNMEE (Missão da ONU para a Etiópia e Eritréia), com mais de 4.000 militares para manter a posição de paz lograda em conflitos pesados de fronteira, com dezenas de milhares de perdas humanas e mais de 850 mil civis "deslocados". O conflito eclodiu entre 1998 e 2000, mas a questão capital atual é a fome endêmica.

Libéria

Na Libéria, a presença da ONU compreende principalmente o pessoal do Alto Comissariado para Refugiados, trabalhando em postos nas proximidades das fronteiras com a Guiné e a Costa do Marfim (Toe Town).

As operações de imposição da paz na Libéria estão a cargo de forças congregadas pela ECOWAS (Comunidade Econômica dos Países do Oeste Africano), majoritariamente da Nigéria, e, em paralelo, os militares dos EUA desenvolvem a sua "Operação Expresso Brilhante".

De forma criticada por especialistas mundiais, as forças norte-americanas, após o desembarque inicial em Monróvia, capital da Libéria, decidiu retirar-se para bordo dos navios de assalto-anfíbio, deixando um contingente de cem fuzileiros-navais resguardando a sua embaixada. Passaram a concentrar a operação desde bordo, basicamente em missões com helicópteros e meios anfíbios, não se mesclando com forças de nações africanas, posicionadas em terra.

Os registros de convulsão civil na África não se limitam às aqui citadas. Entre os anos de 1975 e 2002, a Angola viveu uma longa guerra civil que ceifou a vida de 400 mil pessoas e teve grande parte do território inutilizado pelas minas-terrestres.

Na Somália, 50 mil pessoas morreram entre 1988 e 1994 em razão de guerra civil e uma severa seca que assolou a região. Nesse episódio os EUA sofreram uma derrota política, ao decidir retrair suas tropas, após um sangrento combate nas ruas de Mogasdício.

Atrocidades e violações dos direitos humanos ocorrem a todo momento, de forma silenciosa, no continente africano.

A ONU hoje

Muitos podem ser os erros e defeitos administrativos apontados nas ações da ONU na perseguição da paz. Sua burocracia pode ser dita como pesada e os custos da sua operação podem ser considerados elevados. Pode ser levantado que indivíduos, grupos e até países se beneficiam com os serviços e compras por ela contratadas.

A ocupação de seus cargos é criticada como sendo produto de apadrinhamento, a transformando em um grande cabide de empregos - normalmente críticas levianas. Até se observam comentários maldosos de inépcia na sua ação.

O ponto principal é que ela é a Organização máxima pela paz no planeta, e a história recente mostra que ação unilateral de qualquer potência está fadada a ser desastrosa. Grande parte da ação da ONU é dirigida pelo seu Conselho de Segurança, dirigido pela ação do veto das cinco grandes potências nucleares - os chamados P5 (EUA, Reino Unido, França, Rússia e China).

O tema que se vive hoje no Conselho de Segurança é a moção dos EUA a que a ONU amplie a sua participação militar na pacificação interna do Iraque. Tal ação estaria fundamentada no modelo de reconstrução da paz desenvolvido pela ONU no Timor Leste, e incluiria o chamamento por forças de muitos outros países membros.

Incluiria também a participação nos custos da construção da paz no Iraque, mas não a passagem do comando da campanha para a ONU, nem o acompanhamento do destino das riquezas do país ou a responsabilidade total pela implantação do poder local.

O enfoque central reflete o impasse político que vive os EUA no Iraque. A questão envolve a opinião daqueles países que se opuseram ao desenvolvimento na guerra, particularmente a França e a Alemanha - e até mesmo o Brasil.

O ponto de honra está em até que ponto seria justo reduzir a prioridade da ONU na busca pela paz e reconstrução dos países da África, em favor de outros interesses.

As posições políticas atuais estão todas colocadas no seio da Organização, e o momento não poderia ser mais oportuno ao debate para que se reformule o desgastado modelo de decisão e composição do Conselho de Segurança da ONU.

Aqueles que vestiram os capacetes azuis [alguns brasileiros já o fizeram] sabem o valor da sua ação, e conseguem perceber aonde eles são necessários e o quanto é válida a sua mobilização em prol da paz.

Compete aos países aplicar a sua madureza política internacional, e ter a sensibilidade de ver aonde e como melhor cabe a sua participação no cenário mundial --particularmente no contexto da ONU.

Julie Schmied é professora de relações internacionais e direito internacional da Universidade de Brasília (UnB)
 

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