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21/12/2003 - 05h02

Réu, Saddam pode constranger os EUA

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JOÃO BATISTA NATALI
da Folha de S.Paulo

Os EUA poderão correr sérios riscos com o julgamento de Saddam Hussein. O ditador deposto é detentor de informações sobre a cumplicidade americana na produção de armas químicas e na eliminação de inimigos internos.

Seria abrir um armário cheio de esqueletos, argumenta Dilip Hiro, indiano radicado em Londres e autor, nas últimas três décadas, de 24 livros sobre o Oriente Médio e questões políticas no islamismo.

Ele está para lançar "Secrets and Lies" (segredos e mentiras) pela editora americana The Nation Books, ligada à ala mais liberal do Partido Democrata. À Folha de S.Paulo, Hiro diz que o processo contra o ex-ditador exporia redes internacionais de cumplicidade que deixariam os americanos numa situação incômoda. Eis os principais trechos da entrevista.

Folha - Há uma previsão sobre os procedimentos que orientarão o julgamento de Saddam?
Dilip Hiro - Certa vez Dick Cheney, o vice americano, disse que George W. Bush agia como um caubói porque mirava no peito do inimigo. Ele é um texano obstinado e frio. O julgamento será uma peça política importante no jogo da Casa Branca. O tribunal especial em que Saddam será julgado teve seu formato definido pelo Conselho de Governo Iraquiano alguns dias antes da captura do ex-ditador. As discussões internas duraram três meses. Um período no mínimo superior a esse será agora necessário para definir formas de instrução do processo, regras para a contratação de advogados estrangeiros, observadores e assim por diante.

Folha - Será, a seu ver, um grande "espetáculo"?
Hiro - No idioma urdu, que aprendi quando criança, há uma palavra curiosa, "tamaaha", que serve para designar qualquer forma de entretenimento. O Conselho de Governo Iraquiano precisará transformar necessariamente o julgamento de Saddam numa espécie de circo, numa "tamaaha", como forma de desviar a atenção da população da falta de segurança, do péssimo funcionamento do telefone, do estado deplorável das escolas e hospitais, do desemprego.

Há ainda a lei de talião como componente da cultura iraquiana, "olho por olho, dente por dente". Se Saddam provocou sofrimentos, é saudável vê-lo sofrer como réu.

Folha - O que pode ocorrer durante o julgamento?
Hiro - Saddam já é um réu humilhado pela difusão das imagens feitas logo depois de sua captura. Ele estava sonolento. Mas durante o julgamento ele estará acordado. Ele é um homem calculista, determinado, cruel ao extremo, brutal. No dia seguinte à captura, quando alguns integrantes do conselho de governo o visitaram, a nítida impressão que ele passou foi a de ser um homem sem remorsos. Ele jamais aceitaria o fato de ter feito algo errado. É então previsível que se defenda com unhas e dentes.

Folha - Que acusações sustentarão os argumentos da Promotoria?
Hiro - Com certeza ele será julgado por sua tirania, pelo uso de armas de destruição em massa e por vínculos com o terrorismo. A tirania é uma longa história. Saddam é poderoso desde que se tornou vice-presidente, em 1975, antes de se tornar presidente, em julho de 1979. Sua brutalidade máxima, no entanto, ocorreu durante a guerra com o Irã [1980-88]. Vejam que nesse período os EUA tinham como presidente Ronald Reagan, republicano como Bush. Foi um período em que não interessava aos EUA pintar Saddam como um violador de direitos humanos.

Folha - Mas, sobre armas de destruição em massa, ele usou armas químicas para exterminar curdos.
Hiro - Em 1988 ocorreu o genocídio contra uma cidade curda, matando de 3.200 a 5.000 pessoas. Ora, no ano seguinte a ajuda dos EUA ao Iraque foi multiplicada por dois. Saddam sabe disso melhor que ninguém. Ele teria, com o julgamento, uma maneira de recolocar temas delicados como este na agenda das discussões.

Folha - Poderá também sobrar para os curdos?
Hiro - Com certeza. Durante a guerra com o Irã dois dos partidos curdos se aliaram aos iranianos. Para os iraquianos não-curdos a história pode ser vista como um ato de traição, de aliança com o inimigo. Os próprios curdos se apoderaram de uma parte do Curdistão, parcialmente recuperada por Saddam. Abrir a tampa do reservatório em que estão armazenadas histórias como essa é dar um tiro no pé do projeto de reconciliação do Iraque.

Saddam pode aproveitar o julgamento para dividir seus compatriotas ainda mais. Ele sabe que, para os curdos, a região de Mossul foi arrancada pelos britânicos à Turquia, nos anos 20, e anexada artificialmente ao Iraque porque a região tinha muito petróleo. E o que dizer de os sunitas, mesmo minoritários, governarem a maioria xiita desde 1638? Saddam é terrível. Ele fará de tudo para jogar uns contra os outro.

Folha - E nos demais países árabes, qual seria a percepção do julgamento do ex-ditador?
Hiro - Em alguns países, como o Kuait, Saddam é o vilão e continuará a sê-lo, em razão da invasão de 1990. Mas as coisas se complicam entre os demais árabes. Há os três governos próximos dos EUA --Jordânia, Arábia Saudita e Egito. Mas, mesmo nesses países, a mídia tem argumentado que agora, com a prisão de Saddam, os EUA completaram sua missão e devem deixar o Oriente Médio. E argumentam também que os americanos devem deixar que o Iraque julgue Saddam porque foi o país que sofreu nas mãos dele.

Folha - Mas há ainda a Síria, que Líbano, apóia historicamente o terror e é uma ditadura.
Hiro - É algo a meu ver interessante. A Síria é governada pelo Baath, que até 1966 era o mesmo partido do qual Saddam Hussein se serviu para subir ao poder e governar o Iraque. Apesar de divergências mortais de Saddam com o falecido presidente Assad, há uma forte afinidade entre as burocracias do Iraque e da Síria. Saddam tem horror ao atual presidente Assad, filho do anterior. Se tiver o julgamento como palanque, com certeza tentará prejudicá-lo.

Folha - Há também as relações da ditadura iraquiana com as empresas ocidentais, sobretudo nos anos 70, com petrodólares abundantes.
Hiro - Com certeza. Voltemos a 1988 --os EUA auxiliavam Saddam contra o Irã, com dinheiro e informações. Em troca, Saddam era generoso ao contratar empresas americanas. Creio que agora Saddam, como réu, estará assessorado por bons advogados. Citará episódios embaraçosos. Dirá que os americanos venderam matéria-prima para armas químicas. Que a França vendeu equipamentos para o programa nuclear.

Folha - Mas as ligações do Iraque com os EUA são conhecidas.
Hiro - O problema é que Saddam tem uma excelente memória, participou de tudo. O potencial explosivo de segredos que pode revelar ao tribunal não pode ser desprezado. Vejamos ainda com relação aos direitos humanos. O partido Baath chegou pela primeira vez ao poder em fevereiro de 1963. Kennedy era o presidente dos EUA. O Baath foi na época auxiliado pela CIA. A prioridade americana na época era destruir o Partido Comunista Iraquiano, o mais poderoso e antigo do mundo árabe. Em poucas semanas 5.000 comunistas foram presos e massacrados. Se abrirem o armário, vão achar esses esqueletos.

Folha - Donald Rumsfeld, hoje secretário da Defesa dos EUA, seria também vulnerável?
Hiro - Em dezembro de 1983, Rumsfeld foi recebido por Saddam porque a empresa para a qual Rumsfeld trabalhava, a Bechtel, queria construir o oleoduto do Iraque ao litoral jordaniano. Algumas semanas antes dessa audiência, o Iraque havia usado pela primeira vez armas químicas contra civis iranianos. Creio que Saddam aproveitaria o julgamento para evocar essas coisas.

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