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28/12/2003 - 03h52

Cinema populariza as "línguas construídas"

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VITOR PAOLOZZI
da Folha de S.Paulo

Com a estréia nos cinemas da última parte da trilogia de "O Senhor dos Anéis", uma pequena parcela dos milhões de espectadores do filme vai prestar especial atenção nas cenas em que os atores não falam inglês: será uma rara oportunidade para testar como andam os seus conhecimentos práticos de síndarin. Síndarin?

Essa é uma das várias línguas que J.R.R. Tolkien (1892-1973) inventou ao longo de sua vida e usou nas páginas de suas obras. Para os fãs radicais, não basta fundar clubes, ler livros, comprar vídeos, pôsteres, discos e todos os subprodutos. O interesse é tal que muitos decidem aprender a escrever e falar as línguas de Tolkien.

Se estivesse vivo, o escritor sul-africano radicado na Inglaterra certamente ficaria muito contente. Ele chamava as línguas de seu "vício secreto". Em uma carta chegou a dizer que as aventuras de Frodo, Gandalf e Arwen eram secundárias: "A invenção das línguas é a fundação.

As "histórias" foram feitas mais para dar um mundo às línguas do que o contrário. Para mim, "O Senhor dos Anéis" é em grande parte um ensaio sobre "estética linguística'".

"Tolkien deve ter trabalhado nisso durante mais de 50 anos. Ele fez um trabalho extremamente bem feito. E não foi só uma língua que ele criou, foi uma família de línguas", diz o escritor e tradutor Ronald Kyrmse, 51, que acaba de lançar o livro "Explicando Tolkien" (ed. Martins Fontes).

"A gramática do quenya [a principal língua feita por Tolkien] é bastante complexa e muito diferente da das línguas humanas. Em vez usar preposições, usa terminações. Assim, navio é "cirya" [pronuncia-se kiria] e "no navio" é "ciryasse'", explica Kyrmse.

Como Tolkien, existem espalhados pelo mundo centenas de outros "viciados" em criar as chamadas "línguas construídas" (ou "línguas modelo" ou ainda "línguas artificiais"). O site LangMa ker.com lista quase 600 línguas construídas (com nomes como ca'olaeg, dwêxêg, europanto, hänäthlîêr, kwaadakw, sen:esepera e xuxuxi). O site (www.zompist.com/kit.html) oferece até um "kit de construção de línguas".

A curiosidade em torno das línguas élficas de Tolkien, porém, não se compara com o fenômeno envolvendo a série de TV e cinema "Jornada nas Estrelas". A língua falada pelos seres do planeta Klingon pela primeira vez no filme "Jornada nas Estrelas 3: À Procura de Spock" (1984) se disseminou tanto que alguns trekkers e jornalistas mais entusiasmados proclamaram que hoje o klingon tem mais falantes do que o esperanto --a língua "sem fronteiras" criada no século 19 para servir de ponte à união dos povos.

Se não é verdade que o klingon tem mais adeptos do que o esperanto, nem por isso sua popularidade deixa de impressionar. O "Dicionário Klingon", escrito pelo linguista Mark Okrand --que criou a língua por encomenda dos estúdios Paramount-- vendeu mais de 250 mil cópias e foi editado em países como Itália, Alemanha e Brasil. Há outras obras de Okrand para quem quiser fazer uma imersão: "Klingon para o Viajante das Galáxias", "O Jeito Klingon", "Klingon Conversacional" e "Power Klingon" (as duas últimas são fitas para familiarizar o iniciante com a pronúncia).

O Instituto da Língua Klingon (www.kli.org), fundado há 12 anos, mantém site e uma ativa lista de discussão por e-mail com mais de 1.500 inscritos, de 50 países. Para ter uma idéia da seriedade com que os estudiosos de klingon tratam o assunto, basta dizer que já promoveram a tradução de duas obras de Shakespeare ("Muito Barulho por Nada" e "Hamlet"). Atualmente desenvolvem um projeto de verter a Bíblia.

O klingon é objeto de estudo em cursos de linguística. Um dos professores que usam a língua como ferramenta para despertar o interesse dos alunos é George Broadwell, da Universidade Estadual de Nova York em Albany: "É uma língua muito bem construída. Tem uma estrutura complexa, similar à estrutura de algumas línguas indígenas americanas".

Klingon é cultura, como dá a entender Broadwell: "Quase todas as características do klingon têm reminiscências de alguma língua humana. Mas Okrand deliberadamente escolheu algumas das características mais incomuns das línguas humanas para o klingon. Em uma sentença em klingon o objeto vem primeiro, seguido pelo verbo e aí o sujeito. É uma das construções mais raras das línguas do mundo. Aliás, umas das poucas línguas que usam essa ordem é a hixkaryana, de uma tribo indígena brasileira amazônica".

Okrand, 55, que tem Ph.D. em linguística e atualmente trabalha no Instituto Nacional de Legendas se espanta com a dimensão que sua criação tomou: "Achava que as pessoas se interessariam e aprenderiam poucas palavras. Jamais imaginei que decolaria dessa maneira".

"Já estive em lugares onde as pessoas só falavam klingon. Os membros do Instituto da Língua Klingon têm um encontro anual e quando se juntam vão a um restaurante e só falam em klingon." O que mais impressiona Okrand, porém, são aqueles capazes de fazer tradução simultânea. "Eles falam melhor do que eu."

Okrand também é o responsável pela língua falada em "Atlantis: O Reino Perdido" (2001), desenho da Disney. "Quando criei a língua klingon, pensava: "Os klingons não são seres humanos", portanto sua língua tinha que ser o menos humana possível, mas não a ponto de não poder ser pronunciada pelos atores. Não há som em klingon que não exista em alguma língua humana. Mas o agrupamento dos sons é único, os sons não aparecem todos em uma mesma fonte. Quando fiz o atlantean foi o contrário. Há uma fala em que Milo, o herói, diz que o atlantean é uma língua-raiz, a língua-mãe de todas as outras. Se, linguisticamente, isso pode ser contestado, eu tinha de fazer uma língua que permitisse ao personagem pelo menos ter essa teoria."

Segundo Lawrence Schoen, 44, fundador do Instituto Klingon, o número de pessoas que falam a língua é pequeno, mas não pára de crescer. "A quantidade de pessoas fluentes é bem pequena. Cerca de 20 ou menos. O número de pessoas que sabe algumas frases, é bem maior, chega aos milhares."

Num mundo em que já existem mais de 5.000 línguas haveria a necessidade de se inventar outras? Não seria melhor estudar uma língua já existente? Para Schoen, o klingon deve ser visto como um hobby que ajuda a despertar o interesse pelo estudo de línguas. Se o interesse pelo klingon continuar a crescer, não demorará para chegar o dia em que a Terra terá os primeiros falantes "nativos".

Schoen conhece dois casos de pais que começaram a alfabetizar seus filhos em inglês e em klingon. As duas experiências foram interrompidas por "dificuldades práticas", mas não é de se duvidar que não faltarão outras para levar até o fim a velha máxima klingon: "mamevQo". maSuvtaH. ma'ov" (nós não vamos parar, nós continuamos a luta, nós competimos).
 

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