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25/01/2004 - 05h47

Nova estrela da esquerda, prefeito de Bogotá cria "Fome Zero"

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FABIANO MAISONNAVE
da Folha de S. Paulo

Qualquer semelhança não é mera coincidência: de origem pobre, o ex-sindicalista Luis Eduardo "Lucho" Garzón, 53, se elegeu prefeito de Bogotá no ano passado por um partido de esquerda. Recém-empossado, uma de suas primeiras medidas foi anunciar o programa "Hambre Cero", inspirado no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Principal nome da oposição ao presidente colombiano, o direitista Álvaro Uribe, Lucho Garzón se tornou uma das estrelas da esquerda latino-americana ao chegar ao segundo cargo mais importante da Colômbia.

Leia, a seguir, a entrevista concedida à Folha em São Paulo, onde participa das comemorações dos 450 anos da cidade, em que o "Lula colombiano", como algumas vezes é chamado, fala sobre o Plano Colômbia, reeleição de Uribe, Chávez, Fidel, paramilitares, guerrilheiros e suas afinidades com o amigo brasileiro:

Folha - O sr. surpreendeu ao ganhar a Prefeitura de Bogotá. O que o sr. tem com Lula e a esquerda latino-americana?

Luis Eduardo Garzón - A década de 90 gerou uma reação do eleitorado e dos movimentos de opinião pública contra aqueles que assumiram governos estimulando um modelo de economia que deixou uma marginalidade social e econômica muito importante. Mas foi uma reação diversa. Há gente da esquerda que faz uma oposição "per se", permanente, e seu discurso está muito ligado a isso, que não é preciso trabalhar pelo governo nem pelo poder. Há outros que, denominando-se de esquerda, acreditam que a única maneira é pressionar mais. E há outros que pensamos que é necessário fazer uma agenda de governo junto com um projeto social de poder. Somos nós. Dito isso, Lula está certo nas agendas econômica e social, com a interlocução além das nossas fronteiras. O nosso sonho é um processo muito parecido com o do PT. O que Lula faz 20 anos depois da ditadura, nós fazemos em meio à guerra, o que é muito mais tenso e difícil.

De qualquer forma, fizemos avanços importantes nesta etapa. Somos o segundo cargo mais importante da Colômbia. Isso mostra a possibilidade de consolidar, mais do que um partido, uma força que tem uma possibilidade enorme de configurar uma força política importante.

Folha - Como foi a criação do programa "Hambre Cero"?

Garzón - O Muro de Berlim caiu em cima da esquerda, pois significava um socialismo que negava a liberdade individual. Sobre a direita, caiu o muro da pobreza. Nunca havia imaginado que a luta mais revolucionária era a de dar o que comer às pessoas. Nunca havia imaginado que essa agenda era a mais imediata. Os números são impressionantes. Em Bogotá, metade da população está na pobreza, e 17% desse total estão na indigência. E há lugares em que o nível de pobreza chega a 82%. A luta contra a fome se transformou num tema fundamental, mas estamos aprendendo com os brasileiros nisto: não queremos improvisar, fazer um programa populista nem assistencialista, mas sustentável a curto e a longo prazo.

Folha - Lula tem sido muito criticado por sua política econômica, considerada conservadora, e acaba de fazer uma reforma ministerial para incluir forças de centro-direita. O que resta à esquerda é fazer programas sociais, mas sem grandes perspectivas de mudanças econômicas ou de práticas políticas?

Garzón - Eu não gostaria de fazer um julgamento da política de Lula. Suponho que sua governabilidade se faz em razão de suas alianças e das agendas que tem. Mas sou um dos que crêem que temas como o da dívida externa serão a agenda fundamental dos próximos anos na América Latina. Nunca se imaginava que [o presidente da Argentina, Néstor] Kirchner tivesse de assumir com a atitude nem o discurso que teve de assumir. Mas isso corresponde à situação de fato: não há como pagar a dívida. No caso de Bogotá, tenho um bom equilíbrio financeiro deixado pelos meus antecessores. Hoje, a agenda tem pragmatismos odiosos, mas os quais a esquerda e os setores democráticos têm de entender. Há desgastes que são muito complicados. Além disso, não se governa para um setor da esquerda ou dos trabalhadores, mas para todo o país ou para toda a cidade.

Folha - O sr. se encontrou ontem [sexta-feira] com Lula. Sobre o que conversaram?

Garzón - Não pudemos conversar muito, não nos aprofundamos em nenhuma questão. Mas já conversei com Lula várias vezes. E creio que temos uma mesma preocupação: o que é uma agenda política de esquerda hoje? Creio que o mais revolucionário para um esquerdista hoje é saber governar. Essa é a agenda comum de Lula e Lucho Garzón.

Folha - O sr. é da oposição, mas conseguiu se eleger apesar da alta popularidade Uribe, que chega a 80%, segundo pesquisas de opinião. Como isso foi possível?

Garzón - A Colômbia é um país que gosta pouco de tendências autoritárias de direita ou de esquerda. A Colômbia rechaçou o golpe de Estado, é um dos poucos países da América Latina a rechaçar isso. Hoje, o país, se por um lado deu um cheque em branco ao presidente Uribe na luta contra a guerrilha, o certo é que, ao mesmo tempo, está preocupado com soluções de força vindas da direita. Essa eleição golpeou também um pouco o messianismo. Por mais que a opinião pública goste do presidente, também enviou recado de que ele não tem plena liberdade para fazer o que quer.

Nós fizemos uma campanha renovada. Sempre estivemos trabalhando mais a idéia, a reflexão do que o lado pessoal. Isso nos premiou. Estamos numa época em que as pessoas não querem uma luta entre o bem e o mal. O eleitorado busca quem propõe melhor, quem gera mais confiança e liderança para resolver os problemas.

Folha - Este é o último ano que Uribe tem para mudar a Constituição e instituir a reeleição. O sr. acredita que ele buscará isso?

Garzón - Tem havido uma espécie de silêncio compulsivo, que, sem sair defendendo a reeleição, alguém faz uma declaração sobre isso. Recentemente, a embaixadora na Espanha e ex-candidata presidencial [Noemí Sanín] disse que a reeleição é boa. Eu poderia a reeleição porque sou prefeito há 20 dias, e essa proposta inclui os prefeitos das principais cidades. Mas não pareceria bem defender a reeleição quando se está no poder. Tem algo de autoritário. Penso que a reeleição é positiva, mas fora do interesse próprio. Eu penso que, para o cenário de 2010 para presidente e 2012 para prefeito se poderia pensar em reeleição. A reeleição quando, ao estilo [do ex-presidente peruano, Alberto] Fujimori, se promove a própria reeleição.

Folha - O sr. pretende se candidatar a presidente em 2006?

Garzón - Não, vou cumprir meu mandato até 2008. Um dia na Colômbia são dez anos na Suíça. A política muda com uma rapidez impressionante, as análises de conjuntura resistem durante uma hora. Fazer cálculos para 2010, que são as outras eleições presidenciais, é muito difícil e relativo. Por agora, tomei a decisão de fortalecer meu governo, de fazer o melhor possível para que se saia bem.

Folha - Recentemente, o Congresso colombiano aprovou um estatuto antiterror, que dá mais poderes ao Exército e gerou críticas de ONGs de direitos humanos e da União Européia. Qual é a sua posição?

Garzón - Creio que a democracia é defendida com mais democracia. Não se alcança a democracia restringindo-a. Mas, aprovada, como prefeito, tenho de aplicar a lei antiterrorista.

Folha - Outro ponto polêmico de Uribe é a desmobilização dos paramilitares até 2005. Como sr. analisa uma proposta de anistia aos paramilitares?

Garzón - O perdão e o esquecimento têm de ser analisados com muita tranquilidade. Não suponho facilmente que essa geração se esqueça de situações tão dramáticas. Acredito que a história da humanidade tem mostrado que é necessário fazer reparações, sobretudo a Segunda Guerra Mundial. Alguns me dirão: "o que fazer então com o que a guerrilha fez?". Isso também tem de estar nesse processo.

Em segundo lugar, é necessário fazer a reinserção, mas de todos os setores. Eu queria que não fosse apenas com o paramilitarismo mas também com a própria guerrilha. Espero que consigam, por que senão geraria uma terceira condição: para que reinsertar os paramilitares? Para fortalecer o Exército em razão da guerra contra os outros? Para fortalecer o esquema do Estado da guerra contra os outros? É para promover mais guerra ou para promover paz? A discussão depende desses três elementos.

Folha - Há muitas acusações de que Uribe tenha ligações com os paramilitares. O sr. acredita nisso?

Garzón - Não tenho provas. Acredito que, na Colômbia, não se pode estigmatizar um ao outro. Quando se é de esquerda, se diz que tem ligações com a guerrilha, e, quando se é de direita, que tem ligações com os paramilitares. Não me consta [essa ligação]. O presidente, apesar de ter uma agenda com a qual não compartilho, está atuando dentro dos limites constitucionais.

Folha - O Plano Colômbia já trouxe US$ 2,5 bilhões ao país, e neste ano devem chegar outros US$ 700 milhões. O que vai acontecer com o país após o fim dessa ajuda?

Garzón - Primeiro se elegeu a luta contra o narcotráfico. Se bem que diminuíram os cultivos em algumas regiões, como em Putumayo, se multiplicaram por dez em outros lugares, como Arauca, para não falar de Bolívia e Peru porque isso não me corresponde. Mas o efeito global, de erradicar de um lado e multiplicar de outro, está aí. O próprio governo está dizendo isso. Em segundo lugar, a ação contra os insurgentes está internacionalizando o conflito na área andina.

Em terceiro, não gerou nenhum desenvolvimento social. É como uma funerária apoiando um plano de direitos humanos. Há um pequeno ingrediente social, mas não para resolver, e sim fazer manifestações assistencialistas.

Folha - Mas a política de Uribe diminuiu o número de sequestros e homicídios, por exemplo. Isso não é positivo?

Garzón - A mim me parece positivo, mas é necessário verificar se é um recuo da guerrilha ou uma ofensiva do Estado. Acredito que o Estado tenha dado um golpe muito certeiro contra a guerrilha, mas, ao mesmo tempo, analistas políticos dizem que o que existe é um recuo da guerrilha. Eu não conheço em detalhes, mas é evidente que há um registro significativo, que não se pode ignorar, que é a redução dos sequestros e uma maior confiança da população para utilizar as rodovias.

Folha - O sr. esteve recentemente com Fidel Castro em Cuba e após a viagem disse, em entrevista, que ele parecia mal de saúde.

Garzón - Eu fui de férias a Cuba, e ele me procurou. Supostamente, isso me coloca no eixo do mal da América Latina: [o presidente venezuelano, Hugo] Chávez, Kirchner, Lula e [o líder oposicionista boliviano Evo] Morales. O que disse é que se trata de um homem de 78 anos, com algumas dificuldades em sua capacidade física. Já me colocaram declarando que ele é um doente terminal. Não é nem uma coisa nem outra. Um homem que faz um discurso de oito horas, como o que pude ver, não pode estar em estado terminal.

Folha - Chávez está vivendo novamente um processo conturbado em seu país, mas também tem passado por problemas diplomáticos na Colômbia, com alguns incidentes na fronteira. É um governo populista?

Garzón - Não se pode colocar a culpa dos problemas da Venezuela em Chávez, há uma história de corrupção extremamente complicada. E eu penso que há um elemento muito interessante desenvolvido por Chávez, que é inegável: é a inclusão de muita gente pela Constituição, que se tornou fundamental.

Três, é o que eu não compartilho com Chávez ou com nenhuma ditadura à esquerda ou à direita. Penso que alguns da esquerda e da direita têm de aprender é que, quando um ganha, é necessário reconhecer que do outro lado --ou do mesmo lado-- existem atores diferentes: empresários, sindicatos, igrejas. Isso significa reconhecer sempre uma interlocução. Setores fora do governo são institucionais. A mim me parece que falta muita conciliação ao governo Chávez. Assim como sou crítico do autoritarismo de direita, sou muito crítico do autoritarismo de esquerda.

 

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