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14/03/2004 - 09h18

Análise: O 11 de março e a eleição espanhola

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MARIA APARECIDA DE AQUINO
especial para a Folha Online

O 11 de março de 2004 será uma data a ser marcada no calendário contemporâneo. Não que venha a ter a mesma dimensão que o outro dia 11 com o qual boa parte dos analistas estabeleceu comparações. O 11 de setembro de 2001, com os atentados que se abateram sobre os Estados Unidos, abriu a "caixa de Pandora" e dos monstros que dela saíram, o mais recente é o que causa horror à Espanha, à comunidade européia e ao mundo.

Acompanhando a imprensa nacional e internacional, alguns aspectos merecem especial atenção. Diversos artigos citam uma frase que teria sido pronunciada por um senhor descrito como de "meia-idade" próximo à Estação de El Pozo de Madri.

Na manhã do dia 11 de março ali explodiram duas bombas em um trem, na Estação Atocha foram sete bombas em duas composições com pequena distância temporal e na Estação Santa Eugênia foi a vez de um vagão central ser atingido pela explosão de uma bomba. Indignado o senhor teria dito: "O que querem de nós?"

Chega a incomodar a exagerada preocupação em se localizar os mandantes dos atentados. O governo, representado pelo premiê José María Aznar, do Partido Popular (PP, de centro-direita), através de seu ministro do interior Angel Acebes, se apressou a condenar a conhecida organização separatista [e terrorista] "Pátria Basca e Liberdade", representada pela sigla ETA (Euskadi ta Askatasuna, em euskera, língua basca), o que acabou sendo seguido por boa parte da imprensa espanhola e pela própria população, na seqüência imediata aos ataques.

Mesmo no País Basco, em manifestação espontânea, centenas de pessoas saíram às ruas carregando cartazes onde se lia "ETA não!".

O candidato oposicionista que concorre contra Mariano Rajoy do PP, pelo Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) --este domingo é dia de eleições na Espanha--, José Luis Rodríguez Zapatero, numa apressada e emocionada manifestação se expressa, pedindo ao povo para comparecer às urnas, votar em qualquer candidato, mas dar uma resposta democrática ao ETA.

Comentando os fatos para diferentes veículos de comunicação a pergunta incessante era: quem cometeu os atentados? Se se exibiam dúvidas em relação à autoria do ETA, imediatamente a questão subseqüente era: então foi a Al Qaeda? O maniqueísmo da busca de explicações não permitia intermediários ou reflexões: se não foi o ETA, forçosamente foi a Al Qaeda.

Qualquer tentativa de maniqueísmo e de explicações simplistas ou de finalidades meramente eleitoreiras, sempre é derrubada e aí reside a maravilha da imprevisível experiência humana pelo desenrolar dos acontecimentos.

O mesmo Angel Acebes que parecia dotado de inexpugnável certeza, horas depois, precisou ir a público contar que a polícia havia encontrado um furgão roubado, contendo detonadores e uma fita de áudio com a gravação de versos do Alcorão.

Reafirmando que o ETA continuava sendo a principal suspeita, foi obrigado a declarar que outras pistas seriam consideradas.

O grupo Brigadas de Abu Hafs al Masri, vinculado à Al Qaeda e que já assumiu autoria de outros atentados (o de agosto em Bagdá à sede da ONU e o de novembro na Turquia à Sinagogas em Istambul), enviou uma carta ao jornal árabe Al Quds Al Arabi sediado em Londres. Nessa carta, assume os atentados de Madri e faz novas e assustadoras ameaças.

O "day after", apesar da convocação do governo para manifestações públicas de repúdio à violência cometida, exibe uma Espanha em que quase um quarto da população vai às ruas com mais espontaneísmo do que resposta à eventuais chamados oficiais.

Os milhões de espanhóis que enfrentam a chuva e o frio em todo o país, não mais ostentam cartazes contra a organização separatista. Pedem paz e gritam slogans como o internacionalmente conhecido: "O povo, unido, jamais será vencido!". O governo continua insistindo na toada da mais provável culpabilidade dos separatistas bascos.

No dia 13 de março, novas manifestações. Desta vez em frente à sede do PP. Exigem do governo que não lhes conte mais mentiras e querem a verdade sobre a autoria dos atentados até domingo, relacionando diretamente com a sua [do povo] decisão sobre as eleições. A escolha [situação/oposição] estaria dependendo do conhecimento dos verdadeiros "culpados".

Explica-se. O premiê Aznar conduziu uma luta encarniçada contra o ETA, colocando o partido Batasuna (considerado braço político da organização) na ilegalidade e, em atuação conjunta com o governo francês, conseguindo prender as suas principais lideranças. Esta luta foi considerada bem sucedida, na medida em que os atentados diminuíram sensivelmente, a ponto de, em 2003, terem sido atribuído a ela apenas três ataques.

A organização separatista basca foi criada em 1959, em meio ao odiado regime do generalíssimo Francisco Franco que reprimiu duramente o separatismo. Num primeiro momento, portanto, as simpatias da população espanhola estavam com a causa basca.

O primeiro atentado cometido ocorre em 1968. Em 1973, na sua mais bem-sucedida atuação, os separatistas, num atentado com carro-bomba, matam o primeiro-ministro Carrero Blanco que já havia sido designado por Franco como seu sucessor. Após o término do franquismo (Franco morre em 1975), em meio ao processo de transição democrática, foi concedida autonomia ao País Basco, embora não a desejada independência como propugnava a organização separatista.

Os atentados prosseguiram. Em 1987, um atentado contra um supermercado em Barcelona mata 21 pessoas. Reconhecendo ter vitimado civis e não alvos políticos, o ETA pede desculpas pelo que considerou um "engano". Esses e outros atos, a escalada da violência, a interrupção de uma trégua de 14 meses entre 1997 e 1999, a continuidade de atentados, desgastam definitivamente a imagem da organização clandestina junto à população. Daí a popularidade do governo Aznar com seu combate aos separatistas.

Embora tenham ocorrido acusações ao governo socialista de Felipe González (do PSOE) que teria criado um grupo antiterrorista que teria cometido ilegalmente assassinatos, seqüestros e torturas a conhecidos membros do ETA, hoje, o PSOE e seu candidato Zapatero aparecem identificados com uma postura tolerante em relação aos separatistas. Os socialistas governam a Catalunha e, para chegar ao poder, fizeram uma aliança com o ERC (Esquerda Republicana da Catalunha) que foi filmado pelos serviços de inteligência em reunião secreta com o ETA.

A organização separatista, por sua vez, anunciou uma trégua de ataques na Catalunha, o que foi denunciado pelo governo como algo que faria o ETA concentrar seus esforços em cometer atentados fora da Catalunha. Isso desgastou enormemente o PSOE e, até a ocorrência dos atentados de 11 de março, a vitória de Mariano Rajoy do PP era dada como certa.

A exigência de "verdade" por parte da população em relação ao governo Aznar e a vinculação com a decisão a ser tomada pelos eleitores neste domingo, relaciona-se com o seguinte dilema. Se não foi o ETA especialistas afirmam que o "modus operandi" destes atentados não caracteriza as atuações do grupo --ou seja, se foi a Al Qaeda ou um grupo vinculado a ela, estes ataques representam uma represália ao governo espanhol, aliado de primeira hora dos EUA na guerra contra o Iraque.

O governo [espanhol], quando assim agiu, o fez à revelia da população. A maioria dos espanhóis condenou a invasão do Iraque por parte dos EUA e Inglaterra com o apoio da Espanha.

Deste modo, para o panorama eleitoral, faz toda a diferença saber qual foi a autoria dos atentados.

Entre a tarde e a noite do dia 13 de março, véspera da eleição, o governo fez mais duas revelações. Inicialmente, narra a prisão de marroquinos, indianos e espanhóis de origem indiana como suspeitos de estarem implicados nos atentados. Finalmente, diz possuir um vídeo em que a Al Qaeda assumiria oficialmente os ataques de 11 de março em Madri.

A equação parece deixar os eleitores com mais dados para se decidirem, finalmente, sobre em quem vão apostar para o futuro do país nos próximos anos.

É necessário, entretanto, que se retome a perplexidade e se avance na análise dos fatos.

Alguns analistas observam que, nos últimos anos, face à repressão desencadeada, o ETA teria sofrido transformações e ampliado suas relações com grupos sediados na Líbia, no Líbano, na França, na Irlanda. Os EUA acusam a vinculação do grupo marxista com a guerrilha colombiana Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).

Quando se pensa em grupos que não têm problemática local --o ETA e o IRA são locais na medida em que seus ataques têm uma vinculação a problemas internos de seus respectivos países-- não se pode limitar a extensão à Al Qaeda.

O grupo e Osama bin Laden ficaram mundialmente conhecidos a partir do 11 de setembro de 2001. Mas não são os únicos. Existe uma infinidade de grupos com atuação considerada "terrorista" e com escopo internacional. Outro simplismo, obviamente ideológico, é o de acreditar que o terrorismo é exclusivamente "fundamentalista islâmico".

A Al Qaeda tem uma vinculação ao islamismo. O mesmo não se pode dizer de outros grupos. Vale a frase que procurou desarticular a verdadeira perseguição movida ao Oriente no pós-11 de Setembro, orquestrada pelos EUA: "Nem todo árabe é muçulmano, nem todo muçulmano é fundamentalista, nem todo fundamentalista é terrorista".

A resposta que o mundo capitaneado pelos EUA procurou dar à agressão dos atentados de 11 de Setembro foi uma só, ao mesmo tempo, deliberadamente mal intencionada e simplista, do ponto de vista político: o uso da força.

Assim, caminhamos por duas guerras absolutamente cruéis e desnecessárias: contra o Afeganistão e contra o Iraque. O tempero sempre tem sido o da cortina de fumaça. Os EUA, dizendo querer encontrar Bin Laden e destruir a Al Qaeda invadiram o Afeganistão, derrubaram o Taleban [que controlava o Afeganistão até ser deposto por uma coalizão internacional, comandada pelos EUA, no final de 2001] que haviam auxiliado a colocar no poder e contribuíram para ampliar a miséria e o sofrimento de uma das pobres e sofridas nações do mundo.

Alegando armas de destruição em massa que colocariam em perigo o mundo e que se provou serem inexistentes, invadiram o Iraque gerando instabilidade política, morte, destruição, em alguns aspectos irrecuperável.

Voltemos à "caixa de Pandora". Os atentados na Espanha são monstros saídos de sua abertura indevida. Como evitar a proliferação dos monstros?

Há um consenso internacional na direção de entender que a estratégia da "guerra ao terrorismo" tão apregoada pelos "cavaleiros da triste figura" de nossos tempos George Walker Bush, Tony Blair e José María Aznar está absolutamente equivocada.

Como se pode combater o terrorismo de modo eficiente? Este terrorismo de caráter internacional exige uma ação coordenada internacionalmente. Portanto, ao invés de se enfraquecer os organismos internacionais, como a ONU (Organização das Nações Unidas) --o que a guerra contra o Iraque produziu fartamente--, deve-se, pelo contrário, fortalecê-los e democratizá-los.

Serviços de inteligência internacionais devem reunir seus esforços para descobrir os grupos, suas ramificações, sua atuação, antecipando e detendo novos ataques devastadores. Muito pouco se sabe dessas novas vinculações, desdobramentos e estreitamento de relações entre os inúmeros grupos. É preciso ampliar o conhecimento sobre eles.

Se o terrorismo deve ser condenado, e todos devemos fazê-lo, não se pode cometer o erro de desconhecer suas origens e reivindicações.

Bin Laden foi tratado pela mídia internacional, orquestrada pelos EUA, como um "rebelde sem causa", um louco que gosta de matar sem razão aparente. Ora, isso não existe! Em uma de suas inúmeras fitas de vídeo reveladas, diz textualmente que continuaria com sua estratégia até que os infiéis fossem retirados dos territórios santos (leia-se, até a retirada das tropas norte-americanas da Arábia Saudita, onde ficam as cidades santas do islamismo de Meca e Medina e onde estão desde a primeira guerra contra o Iraque, no início da década de 90) e até que se resolvesse o problema do Oriente Médio (leia-se, encontrar-se uma solução para os palestinos na luta contra o Estado de Israel).

Portanto, existem "causas" para as ações que não são aleatórias. Pode-se não aceitar a estratégia, mas não se pode deixar de reconhecer a existência de razões para as lutas.

Se tivéssemos que reunir todos os conflitos, guerras, violências, exercidas contra os povos e procurássemos suas razões últimas, a resposta seria uma só: são fruto dos mais diversificados processos de dominação e exploração que os mais distintos países hegemônicos cometeram, em diferentes momentos, contra povos e nações mais fracas submetendo-as ao seu domínio, ao longo da história da humanidade.

A "caixa de Pandora" aberta pelo 11 de setembro de 2001 foi apenas entreaberta pelos atentados. Foi escancarada com a "guerra contra o terrorismo" e com a "doutrina" da guerra preventiva desenvolvida pelo "staff" dos "falcões do Pentágono" e seguida com fidelidade canina pela Inglaterra de Blair e pela Espanha de Aznar.

Retomemos o lamento do senhor espanhol de "meia idade": "O que querem de nós?"
Ora, não se admite ingenuidade no terreno da política! Poderíamos responder como na velha piada de Zorro (o "herói" branco) e Tonto (seu fiel escudeiro índio): "Nós, quem, cara-pálida?" Portugal e Espanha, no final do século 15, achavam-se tão importantes que ousaram dividir o mundo entre si: é o famoso Tratado de Tordesilhas de 1494.

A Espanha dominou a maior parte do Continente Americano durante três séculos. A brutalidade da conquista em relação aos habitantes nativos que possuíam uma riquíssima cultura, pode ser lida nas crônicas dos viajantes do período colonial e pode ser constatada nas imensas igrejas de países como o México. As enormes construções foram feitas deliberadamente para cobrir (destruindo) os templos dos povos indígenas. Cedo ou tarde a história exerce sua cobrança.

Chega a ser comovente a ingenuidade da exigência de "verdade" do governo espanhol por parte da população na rua que quer se decidir em quem votar no domingo. Independentemente de ter sido ETA, Al Qaeda ou qualquer outro grupo, fatos são incontestes.

O governo espanhol não dialogou com o ETA, na busca de um acordo que penalizasse menos a população espanhola. O governo espanhol defendeu o indefensável: uma guerra que vitimou uma população atrás de um argumento sabidamente mentiroso.

Se há saída para a humanidade, ela se localiza na admissão por parte dos países mais ricos que, para sobrevivermos como homens neste planeta, é necessário diminuir a distância que só tem feito aumentar entre riqueza e pobreza das nações.

Não se pode responder ao grito equivocado, mas desesperado, contra uma exploração secular, com mais exercício de domínio. Pelo contrário, existem causas que são justas do ponto de vista da melhoria de vida coletiva da humanidade.

Portanto, há que encontrar soluções conjuntas que conduzam a uma diminuição da miséria e, conseqüentemente, da violência. Os homens, ao contrário do que se pensa, quando agem em conjunto, o fazem com sabedoria. O 11 de março ainda está em tempo deve nos fazer refletir coletivamente. Esta é a única lição a se tirar deste episódio.

Maria Aparecida de Aquino é doutora e professora do Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo)
 

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