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26/03/2004 - 13h31

Análise: A UE e o combate ao terrorismo internacional

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JULIE SCHMIED
especial para a Folha Online

O massacre urbano ocorrido em Madri (Espanha), em 11 de março (11-M), mostrou contornos inacreditáveis, evidenciando a vulnerabilidade européia frente à brutalidade de que tem capacidade o terrorismo internacional atual, e que se projeta para o futuro.

Paradoxalmente, o termo terrorismo teve origem na mesma Europa, no período do terror da Revolução Francesa que culminou com a queda de Robespierre, em 1794, no Comitê de Salvação Pública da Assembléia Constituinte. Incorruptível e instituidor do culto do "ser supremo", ele perseguia com sadismo aos a que se opunha, inclusive o próprio Marquês de Sade.

Na segunda metade do século 20, atuaram no cenário europeu diversas facções terroristas, embaladas politicamente pela Guerra Fria.

A Brigada Vermelha italiana, foi a responsável, em 1978, pelo estrondoso seqüestro e assassinato do presidente do partido Democrata Cristão Aldo Moro.

A Facção do Exército Vermelho na Alemanha, ou Baader-Meinhof (nomes dos seus fundadores), também tinha como propósito principal derrocar o regime político vigente --eram os proclamados "alquimistas da revolução".

Atualidade

Com o declínio do comunismo no plano mundial se notou das novas facções terroristas o abandono das bandeiras vermelhas ou classistas,pensando o terrorismo a se vestir de características nacionalista, étnicas e religiosas.

Um grupo dissidente do Exército Republicano Irlandês [guerrilha católica], o IRA autêntico, ainda se opõe hoje ao processo de paz na Irlanda do Norte e foi o responsável pelo atentado mais grave do conflito no Ulster.

Na Córsega, se conheceu a Frente de Liberação Nacional Corsa-União de Combatentes (FLNC-UC).

Na Itália se observa o reaparecimento, sob novas siglas, das Brigadas Vermelhas para a Construção do Partido Comunista Combatente, as BVPCC.

No país basco, região ao norte da Espanha, o terrorismo nacional separatista do ETA (Euskadi ta Askatasuna ou Pátria Basca e Liberdade) já foi responsável por cinco vezes mais vítimas fatais que o 11-M, em mais de 30 anos de atividade e 3.300 atentados (de 1968 a 2002).

A novidade e o destaque no 11-M estão: na sua origem em movimentos terroristas internacionais, de ação externa à Europa; e na conexão com o apoio prestado aos Estados Unidos à invasão do Iraque. Isto faz com que diversos Estados-membros da UE, que integraram a coalizão contra o regime de Saddam Hussein, componham a lista dos próximos prováveis alvos.

Conexão marroquina

O envolvimento no 11-M de elementos islâmicos marroquinos induz perplexidade. O Marrocos, ao contrário dos outros países do Magreb (grupo de países africanos situados ao norte do deserto do Saara), se julgava e classificava como imune e blindado ao avanço mundial do fundamentalismo islâmico.

Sua constituição reza (art. 23) que a pessoa do rei é inviolável, é sagrada; e sob este fundamento se combateu internamente o extremismo religioso, até com certa força e repressão.

No Marrocos, como no restante do mundo árabe, o movimento islâmico tem diversas tendências, indo desde os fanáticos grupos fundamentalistas radicais, que não titubeiam em empregar o terrorismo sem nenhum objetivo nobre, até os moderados, partidários da sua integração e participação no jogo político local.

No extremo radical, estão o atentado de Casablanca, de 16 de maio de 2003, e o 11-M, reivindicados pelas Brigadas Abu Hafs al Masri, grupo marroquino vinculado à rede terrorista islâmica da Al Qaeda.

Otan

A existência de elementos militares dos EUA na inteligência européia tem propiciado o apoio da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no combate ao terrorismo na Europa. Os meios de segurança dos EUA e os europeus têm mostrado êxitos ao desarticular algumas células terroristas e frustrar atentados planejados, mas que não garantem a certeza de impedir atentados futuros.

A Grécia já solicitou à Otan sua proteção para os Jogos Olímpicos, contra a repetição de Munique, em 1972, quando integrantes da Organização de Liberação da Palestina (OLP) assassinaram integrantes da delegação olímpica israelense, ou mesma da Olimpíada de Atlanta, em 1996, palco de atentado a bomba.

Portugal também tem admitido que poderá pedir o apoio da Otan durante a realização, neste ano, da Eurocopa de futebol e da sua versão do Rock in Rio, contando com o apoio de aviões de vigilância aérea (AWACS) para o controle do espaço aéreo.

Conselho Europeu

Para fazer frente a esse complexo cenário, o Conselho Europeu se reúne, nestes dias 25 e 26 e sob a presidência semestral rotativa da Irlanda, para estabelecer consenso sobre o combate terrorismo e buscar coesão na sua forma de atuar sobre esse difícil tema, que começa a afetar as liberdades básicas dos cidadãos da UE.

A abordagem buscará a união dos Estados-membros, antigos e novos aderentes, para a aplicação do que já fora acordado em 2001, depois do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 nos EUA (11-S), constando de:

- a criação da ordem européia de detenção e entrega, a euro-ordem;
- o estabelecimento de penas mínimas harmonizadas para delitos de terrorismo;
- o reconhecimento mútuo de decisões judiciais relativas ao terrorismo;
- a execução de ordens de congelamento de contas e bens de terroristas;
- o estabelecimento do órgão de cooperação judicial, o Eurojust;
- o reforço da unidade antiterrorista da Europol, a polícia européia;
- a possibilidade de formar equipes conjuntas de investigação;
- a criação de grupos de trabalho "ad hoc" [usado para justificar o que nós achamos ser correto e excluir aquilo de que não gostamos] sobre terrorismo no conselho de ministros;
- o estabelecimento de agência para o controle das fronteiras exteriores.

Na prática: a euro-ordem ainda não foi incorporada às legislações da Itália, Alemanha, Holanda, Áustria e Grécia; a decisão-quadro sobre a formação de equipes conjuntas de investigação ainda não tem sido incorporada pela França, Holanda, Bélgica e Grécia; e falta a garantia da aplicação de todas essas medidas se aplica aos dez novos países membros.

Conselho

Os Ministros do Interior e de Justiça da UE têm, de forma unânime, respaldado a implantação às legislações nacionais de todas essas medidas e de outras mais que têm sido aprovadas nos últimos três anos, com o compromisso de buscar fazê-lo antes de finalizar o próximo mês de junho uma tarefa política e burocrática difícil.

A criada função do coordenador europeu deverá ser exercida por Gijs de Vries, um ex-secretário de Estado do Interior holandês. Este "supercomissário" da luta antiterrorista da UE, deverá ser uma figura sem poderes executivos, encarregado de identificar lacunas nos mecanismos de colaboração entre os países e de sugerir emendas à legislação comunitária, além de coordenar todas as atividades neste tema. Será subordinado ao alto representante para a Política Externa e de Segurança Comum da UE, hoje o espanhol Javier Solana, ex-secretário da Otan.

Entre outros acordos engendrados pelo Conselho de Ministros, estão: o reforço da Europol e a maior transmissão de informações entre os Estados-membros, ação sustentada enfaticamente pela Alemanha, Espanha e França; e a adoção de uma cláusula de solidariedade européia, no caso de ataque terrorista, com a possibilidade de apoio militar.

A idéia da criação de uma agência de inteligência comum, nos padrões de uma CIA (inteligência dos EUA) européia, chegou a ser proposta pela Áustria, mas rechaçada pela França, Alemanha, Reino Unido, Itália e Espanha, por não estar suficiente madura e envolta de perigos políticos potenciais.

Já o tópico da cláusula de solidariedade européia está sendo oportunamente incorporado ao projeto da Constituição européia.

A UE quer que o combate ao terrorismo seja obrigatório nas suas relações exteriores e, para isto, os seus ministros afinaram sobre novos tópicos contra o terrorismo que devam constar de todos os tratados que os seus membros assinem com países terceiros [a semelhança do que ocorre com os direitos humanos ou a cooperação em matéria de migração], embora se considere que a força de coerção desta fórmula seja relativamente limitada.

Acelerar a entrada em vigor dos novos documentos de identidade e de novos vistos para estrangeiros, que incluem informação sobre os dados biométricos do portador, foi a medida que mais facilmente alcançou a unanimidade.

O plano europeu contra o terrorismo deliberado pelo conselho de ministros também prevê: o reforço dos controles fronteiriços; o aumento da cooperação dos Estados-membros para impedir o financiamento ao terrorismo; e o estabelecimento de novos instrumentos para a harmonização das regras sobre a retenção dos dados por parte dos provedores de serviços de telefonia e Internet.
Conferência Intergovernamental (CIG)

A CIG será um dos pontos em que também centram as conversações do Conselho Europeu, neste dia 25 em Bruxelas. A presidência da UE esperará até a formação do novo governo espanhol, no mês de abril, para reconvocar a CIG, com o propósito de continuar os trabalhos sobre a redação da primeira Constituição européia.

À presidência de turno da UE, liderada pelo primeiro-ministro Irlandês Bertie Ahern, compete apresentar um informe das negociações mantidas com os Estados-membros desde o passado 1º de janeiro, após o fracasso das negociações sobre a Constituição, na cúpula de dezembro de 2003, realizada na Itália.

Na espera de mais firme vontade política, existe um sentimento comum de se poder chegar ao acordo ainda sob a presidência rotativa irlandesa e com isto ter a aprovação da Constituição européia antes das eleições parlamentares européias de 13 de junho.

Para acordar o texto constitucional europeu ainda haverá que serem superados vários obstáculos, desde: o estabelecimento de novo sistema de decisão no Conselho de Ministros [dupla maioria], passando pela composição do novo colegiado de Comissários europeus e a obrigatoriedade de adoção dos elementos da carta de direitos fundamentais do cidadão europeu.
Unanimidade

A UE não é uma federação como os EUA, nem uma mera organização de cooperação entre governos como a ONU (Organização das Nações Unidas). Os Estados-membros da UE continuam a ser nações soberanas e independentes

A essência da fundamentação do processo de integração regional que compõe hoje a UE está na delegação de alguns dos poderes de decisão de seus Estados-membros às Instituições que criaram. Essa constitui a forma de assegurar que os assuntos de interesse comum possam ser decididos democraticamente ao nível europeu, particularmente no que diz respeito às políticas comunitárias, de modo a ganharem força e influência no mundo, como não poderiam obter isoladamente.

O trato dos temas da Política Externa e de Segurança Comum pode ter sérias implicações para os Estados-membros e ter sensível efeito político sobre o exercício da soberania individual dos países. Daí a necessidade de se contar com a difícil unanimidade dos Estados-membros e o trato do tema ocorrer essencialmente sob o controle direto do Conselho Europeu.

O combate ao terrorismo deve ser prioritário para as sociedades democráticas, e disso os Estados-membros da UE estão conscientes.

A participação da UE na luta contra o terrorismo tem de se fundamentar em princípios claros como os: da cooperação e unidade política; da legalidade internacional (instrumento do estado de direito), seja no âmbito da UE, sob os princípios fundamentais da União, ou sob as disposições da Carta da ONU.

A complexidade do processo decisório que hoje já envolve 25 países da Europa, tratando de um tema tão difícil, multifacetado e até mesmo nebuloso como o combate ao terrorismo internacional, demonstra a necessidade de se contar sempre da unanimidade política.

Em áreas como a política externa e a segurança e defesa, os Estados-membros da UE mantêm um controle independente, onde não ocorre a congregação automática das soberanias nacionais; por isto, o Parlamento Europeu e a Comissão Européia têm papéis bastante limitados. Trabalhando de forma conjunta, o Conselho da UE (de Ministros) pode constituir o principal foro da cooperação intergovernamental.

Mais do que a unanimidade dos Chefes de Estado ou de governo, reunidos neste par de dias no Conselho Europeu, ou de toda a atuação das Instituições da UE se faz necessário, no trato do tema do combate ao terrorismo, o respaldo de uma unanimidade consciente e envolvente de todos os cidadãos europeus.

Julie Schmied é professora de relações internacionais e direito internacional da Universidade de Brasília (UnB)
 

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