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12/08/2004 - 08h00

"Erramos em tudo", diz âncora da CNN sobre cobertura da guerra

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LUCIANA COELHO
da Folha de S. Paulo

A imprensa americana errou em sua cobertura da Guerra do Iraque e "falhou vergonhosamente" ao não conseguir reverter entre a população a crença generalizada de que o ex-ditador Saddam Hussein estaria ligado ao 11 de Setembro, mesmo depois de os próprios serviços de inteligência dos EUA dizerem o contrário.

O diagnóstico é de Jim Clancy, um dos principais âncoras da TV CNN. Do alto de uma carreira jornalística que ultrapassa 30 anos (23 na CNN), Clancy diz que a imprensa americana "engoliu" muito rápido o discurso de Ahmed Chalabi, o exilado iraquiano que, nos meses imediatamente anteriores e posteriores à guerra, serviu como a principal fonte do governo americano e da mídia do país, ansiosa à espera de alguém que atestasse que Saddam tinha armas de destruição em massa.

Até hoje, o suposto arsenal proibido não foi encontrado, e contra Chalabi pesa uma ordem de prisão por crimes financeiros.

Clancy falou à Folha em São Paulo, onde participou de um debate sobre jornalismo no Congresso anual da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura.

Folha - Que diferenças o sr. vê entre o período pós-Guerra do Golfo e agora?

Jim Clancy - A principal diferença é que agora as pessoas têm esperança. Só que neste exato momento, essa esperança está completamente ofuscada pela falta de segurança, pelo medo que eles têm de seu futuro imediato. Eles acham que, no longo prazo, as coisas serão melhores, mas neste momento eles estão passando muitas dificuldades. Eles podem ir a um internet café e navegar pela internet, uma coisa que não podiam fazer antes. Mas não podem deixar a filha fora de casa depois que anoitece, porque ela pode ser seqüestrada. Não por insurgentes, mas por criminosos comuns --não esqueça que Saddam Hussein soltou mais de 100 mil presos [antes de cair]. Há um problema imenso, enorme de segurança. As forças americanas não entendem a língua local, a cultura, e não conseguem cobrir esse vácuo [de segurança] que se abriu, porque paralelamente, por ordem do [ex-administrador americano do Iraque] Paul Bremer o Exército iraquiano foi desmantelado após a ocupação.

Folha - O sr. vê isso como um erro?

Clancy - Não importa como eu vejo, mas acho que há muita gente lá que vê como um erro. Por outro lado, o que foi levado em conta na época foi que a população não confiava nos militares iraquianos, que eles achavam que os militares iraquianos voltariam ao poder como uma força ditatorial, talvez diferente de Saddam Hussein em termos de rostos, mas não de estilo, e as pessoas continuariam intimidadas. Só a história vai poder mostrar qual seria a decisão correta. Não há dúvida que, no curto prazo, isso custou muitas vidas.

Folha - Seria injusto comparar o atual período com o período da ditadura, mas o fato é que a segurança se deteriorou muito para os iraquianos comuns...

Clancy - Com certeza. Sob a ditadura, estava tudo bem. Você tinha segurança. Você não podia dizer nada, mas tinha segurança. E provavelmente você não tinha esperança de ter uma relação com o resto do mundo, o isolamento era total. Acho que muito do ressentimento que a população iraquiana tem hoje tem a mesma base do que eles me disseram em 1991, antes da Guerra do Golfo: "Olha, se vocês querem derrubar Saddam Hussein, vocês são bem-vindos, façam. Mas não me torturem e achem que eu de repente vou perder 100 pontos do meu QI e ir para o meio da rua e tentar me rebelar contra ele agora, porque não só eu vou ser morto, minha família inteira vai ser morta. Eu não vou fazer isso". E eles agüentaram 12 anos de sanções, venderam tudo o que tinham, livros, pinturas, tapetes, tudo para colocar comida na mesa e roupas em seus filhos. Eles têm esse ressentimento. Doze anos de sanções para quê?

Folha - Como o sr. acha que o sentimento de se livrar de Saddam e de ser ocupado pelas forças americanas diferem, já que as duas coisas estão tão ligadas?

Clancy - Neste ano eu visitei um campus universitário em Bagdá e falei com uma turma que estava se formando. Fiz exatamente essa pergunta a uma das estudantes, e ela disse "eu odeio Saddam Hussein, odeio, e estou muito feliz que ele tenha caído. Mas eu odeio a ocupação. Eu sonhava em nos tornarmos um país livre e desenvolvido, como o Kuait, mas agora eu temo que fiquemos como a região palestina, onde há ocupação, onde há resistência".

Folha - É difícil comparar as duas coisas...

Clancy - Pois é, mas essas são as exatas palavras dela. É como ela vê a coisa. E eu acho que é um retrato bastante preciso de como os jovens no Iraque se sentem hoje. E não há esperança de conseguirem emprego, pois eles têm medo de trabalhar para os EUA, mesmo para a CNN, porque temem ser vistos como colaboradores da ocupação e serem mortos. Eles são ameaçados o tempo todo, seus familiares são ameaçados... Não se esqueça que eles enfrentaram três guerras e 12 anos de sanções, o que eles querem é que tudo isso acabe logo... Só que não acaba, não encontram uma solução.

Folha - E mesmo assim eles mantêm a esperança que o sr. mencionou?

Clancy - Uma esperança para o longo prazo, sim, ofuscada pelos temores imediatos por sua própria segurança. Afinal, eles não podem aproveitar a liberdade.

Folha - A população apóia a insurgência?

Clancy - Sim, acho que muitos iraquianos sentem que as forças de coalizão estão lá atirando em qualquer um felizes, que a insurgência ataca as tropas e as tropas atiram em qualquer um, e que seria melhor que as forças da coalizão deixassem o país. Mas, por outro lado, eles temem que o extremismo ganhe espaço no país. Eles querem que alguém resolva o problema, só. Os iraquianos são extremamente cultos, inteligentes, e eles são extremamente orgulhosos... A ocupação fere o orgulho deles, como feriria o meu...

Folha - Para quem estava fora dos EUA, a impressão que ficou sobre o começo do conflito era a de que toda a imprensa americana estava apoiando a guerra. Foi impressionante assistir a tamanha parcialidade, por mais que se tratasse uma guerra americana e de certa forma a parcialidade fosse esperada. Essa preocupação que o sr. mostra com o que as pessoas em Bagdá estavam pensando praticamente não apareceu por meses na imprensa americana. E depois, nas últimas semanas, tivemos uma série de mea-culpas, de veículos reputados, como o "New York Times", tendo de se desculpar por ter usado sem questionamento fontes que se provaram erradas. Como o sr. vê isso?

Clancy - Certo. Eu falei com gente que eu achava que deveria saber explicar isso e eles não sabiam... como o Hans Blix, o chefe dos inspetores de armas da ONU. Um jornalista, ele contou, estava perguntando outro dia onde foi que nós erramos... bom, a surpresa é que nós erramos em tudo. Estava tudo errado. Eu falei com o Blix sobre isso, e perguntei, se ele [Saddam] não tinha as armas de destruição em massa, por que ele não deixou você inspecionar todos os locais? Por que ele não cooperou, por que ficou fazendo esse jogo? Blix acha que Saddam já não tinha credibilidade e não queria que seus vizinhos soubessem que ele não tinha as armas, porque isso o faria vulnerável, sobretudo em relação ao Irã. Isso é uma explicação. Mas a imprensa, você definiu bem, engoliu de uma vez as mentiras de Ahmed Chalabi.

Folha - E tão rápido...

Clancy - Pois é. Na CNN, chegamos a verificar algumas das histórias que ele contou, mas aí não tínhamos acesso para confrontar o que ele dizia com outras fontes e saber se era verdade. Ele parecia uma fonte confiável de informações, até que um jornal chamado acho que "NightReader" analisou que Ahmed Chalabi plantou na mídia para dizer que Saddam tinha armas de destruição em massa. Algumas [informações] eram tão elaboradas... Você tinha esse homem, um engenheiro, que vinha com gráficos e documentos e plantas de prédios dizendo que as armas estavam escondidas ali, às vezes em hospitais... E isso chegou a discursos do presidente americano, como se fossem evidências irrefutáveis. Só que aí chegam os inspetores de armas no Iraque e o que encontram? Nada. É aí que o alarme deveria ter soado, mas a ONU resolveu manter-se calada. Se a imprensa deveria ter feito mais? Eu queria ter sido o sujeito que levantaria e diria que ele [Chalabi] estava mentindo, que Saddam não tinha armas de destruição em massa. Mas eu não sabia.

Folha - Realmente era difícil saber naquele momento que ele estava mentindo, mas o que se questiona é se a imprensa fez perguntas suficientes.

Clancy - Foi um erro do governo presumir e dizer que Saddam Hussein tinha ligações com o 11 de Setembro. Ainda hoje um grande percentual de cidadãos americanos acredita que Saddam Hussein, de um modo ou de outro, tenha algo a ver com o 11 de Setembro. Isso é uma falha da imprensa. Uma falha vergonhosa. Eu repeti até perder o fôlego, mas nem todo mundo nos assiste.

Folha - O sr. acredita que as pessoas nos EUA um dia vão ter uma idéia mais clara do que é verdade ou não? De que Saddam Hussein podia ser ruim mas não estava ligado ao 11 de Setembro?

Clancy - Algumas sim, nem todas. Muitos nos acusam de termos ficado cegos, dizem que somos estúpidos de não conseguirmos ver como Saddam desenvolveu armas proibidas e deu a terroristas. E como eu vou desmentir uma alegação que não foi nem sequer provada? Você não pode desmentir uma coisa. Isso não vai acontecer. E há quem apóie o presidente George W. Bush... Eu os ouvi e perdi o contexto, porque não consigo ver isso como parte da guerra ao terrorismo. Estou preocupado porque a verdadeira guerra contra o terrorismo é travada no Afeganistão, e foi em grande parte ignorada, sobretudo em termos de recursos que os comandantes recebem. Você sai 10 km de Cabul e não tem segurança nenhuma.

Folha - O sr. acha que o mesmo acontecerá no Iraque?

Clancy - Acho que a mesma situação já existe nas estradas, por exemplo... Os iraquianos estão um pouco mais seguros [que os afegãos] para viajar, mas os ocidentais que estão no país, não.

Folha - Passados 16 meses da guerra a impressão é a de que ninguém sabe dizer ao certo o que está acontecendo no território iraquiano --ninguém, nenhum jornalista, analista, militar, nem a Casa Branca, nem o governo interino iraquiano...

Clancy - Eu posso te dizer com certeza, porque eu estava lá, que o esforço de reconstrução e o esforço para abastecer tropas e cidades estão seriamente prejudicados pelos ataques, pelos seqüestros... Há uma estratégia muito clara se desenvolvendo ali. O governo Bush está tentando promover sua agenda, e está usando força militar para fazê-la. E há iraquianos que se opõem a isso, seja porque os EUA estão fazendo à força, ou porque se opõem à democracia, ou porque estão sendo governados por pessoas que vêem como fantoches dos EUA ao invés de colocar em prática suas próprias idéias de democracia... que podem não ser iguais às dos EUA, mas são deles. Ao mesmo tempo, as pessoas odeiam a idéia de ocidentais entrando lá. E aí eles recorrem à coisa mais horrível que poderiam imaginar: decapitações. E filmam as decapitações e as usam para espalhar terror.

Folha - Como o sr. vê o fato de a Al Jazira (Qatar) e a Al Arabiya (Dubai) exibirem esses vídeos de decapitações, e serem acusadas de fazer propaganda terrorista pelo governo interino iraquiano?

Clancy - O governo iraquiano diz que alguns canais estão ao lado da insurgência, e, no caso da Al Jazira, que eles apoiavam Saddam Hussein --por isso fecharam a Al Jazira por 30 dias. Por outro lado, a Al Arabiya, que sempre foi contra Saddam, também exibe essas imagens. Na cabeça deles é notícia e eles têm de cobrir. Mas quando você vê o modo como os terroristas estão usando isso e a sofisticação com que eles estão tentando vender seus ideais... Isso define o terrorismo, espalhar sua mensagem com a maior força e abrangência possível, essa imagem de que se você cooperar com os EUA aquilo vai acontecer com você. Quem são as maiores vítimas dos carros-bomba no Iraque? Civis iraquianos. Policiais iraquianos. Há criminosos comuns cooperando com grupos políticos, porque eles têm medo da polícia iraquiana, que fala a mesma língua, conhece o país, pode encontrá-los. E há dinheiro para ser feito numa guerra... Há camadas demais envolvidas nisso, e o terrorismo é uma que temos que entender. No nível político, temos de ver que o governo Bush forçou países como a Espanha e a Polônia, onde a maioria da população se opunha à guerra, a apoiar a invasão. Esse apoio é extremamente frágil. Na Espanha, essa falta de apoio político os tornou muito vulneráveis. O governo Bush tem de entender que, se for fazer coisas assim e querer apoio, não dá só para pressionar politicamente o governo. Você precisa que a população apóie.

Folha - A situação agora, em termos de legitimidade de apoio, é totalmente diferente do que foi na Guerra do Golfo.

Clancy - Com certeza. Mas tome cuidado... Você está aqui no Brasil e para você parece que os EUA não têm apoio e isso pode acabar mal para Bush. Só que no 11 de Setembro, os americanos foram atacados em seu território e milhares de americanos morreram. Os americanos, nesse momento, queriam ir para a guerra, e a maioria ainda acha que isso é parte da guerra ao terror. E o governo fica repetindo que essa é a linha de frente da guerra ao terror, mesmo que outras pessoas digam que é o Afeganistão e o Paquistão, onde estão prendendo gente que está de fato traçando planos.

Folha - O que o sr. espera da política externa de Bush caso ele se reeleja?

Clancy - O presidente Bush tem sido criticado por não ter apoio internacional ao entrar no Iraque. E ele sabe, como qualquer político em qualquer país sabe, que no fim das contas é a economia que decide uma eleição --a economia custou a reeleição do pai dele, que venceu a Guerra do Golfo. E o déficit é enorme, e os gastos militares só o aumentaram. Nossos filhos vão ter de pagar por essa conta. Convenhamos, as empresas americanas estão vencendo a maior parte dos contratos da reconstrução, então uma parte desse dinheiro volta para os EUA. Mas George W. Bush vai ter de mudar sua política. A grande pergunta sobre a política externa é quanto tempo os EUA ficarão no Iraque. Depois de entrarmos lá, não há muita escolha, porque se for um Estado falido, o Iraque vai se tornar um porto seguro para terroristas e uma ameaça para a segurança local. Independente de quem vença, tem de ter noção do custo financeiro e em vidas. John Kerry, se quiser vencer, tem de apresentar um plano claro do que fazer no Iraque, do que mudar, de quais são as alternativas. A melhor análise que eu ouvi de como lidar com a situação veio dos militares em campo, e é o que acontecerá no campo de batalha que vai determinar o futuro e o que eles terão de fazer.

Folha - O sr. espera uma ocupação longa?

Clancy - Uns cinco anos.

Folha - É muito mais do que qualquer um previa no começo.

Clancy - Sim, e lembre-se do que a universitária me disse: "Eu não gosto de ter meu país ocupado". Os iraquianos estão levando sua vida normalmente, ignorando bombas que explodem aqui e ali. Só que a qualquer momento eles podem ser atingidos e morrer.

Folha - As coisas realmente saíram de controle.

Clancy - Sabe, eu estava lá quando começaram os saques, e pensei que era um erro enorme ficar lá deixando eles saquearem. Era o mesmo que dizer que eles poderiam fazer o que quisessem. E alguns iraquianos realmente estão fazendo o que querem, e são as piores coisas possíveis. Acho que uma hora a polícia vai conseguir controlar isso. Não vai ser bonito, mas uma hora vai acontecer.

Folha - O sr. vê uma ameaça de guerra civil?

Clancy - Há a possibilidade, mas eu não vejo uma ameaça agora. Abu Musab al Zarqawi odeia os xiitas, veja esses ataques contra Najaf e Karbala. Ele estava tentando incitar uma guerra civil, segundo os americanos. E aí você tem Moqtada al Sadr, que não é inteligente, não é nem um clérigo realmente. Ele é louco.

Folha - Os iraquianos o seguiriam?

Clancy - Não, mas ele compra apoio. O pai dele foi um grande líder que construiu uma rede de entidades de caridade. Al Sadr é, segundo os militares americanos, um esquizofrênico paranóico que precisa ser assistido permanentemente. Aí os EUA fecharam o jornal dele... mas ninguém lia o tal jornal, era daqueles que publicam bebê de duas cabeças... Foi uma péssima estratégia.

Folha - E os outros clérigos xiitas? E Ali al Sistani?

Clancy - Al Sistani estava fora do país quando a coisa pegou fogo em Najaf. Sistani teve de pedir proteção às forças americanas. Ele seria seguido, ele é muito mais moderado. E os xiitas sabem que o país é deles, que na primeira eleição eles colocarão quem quiserem. Há muito mais xiitas do que qualquer coisa.

Folha - O Iraque poderia se tornar uma teocracia?

Clancy - Sempre há um risco. Os americanos não querem isso. Mas os iraquianos não querem um Estado religioso, eu não creio nisso. Acho que eles querem desenvolvimento e democracia. Eles querem que seu dinheiro melhore suas vidas, como qualquer um no mundo. Mas se eles perderem a fé nesse modelo democrático poderão se voltar para a religiosidade. É difícil dizer o que vai acontecer. Hoje há uma bagunça enorme.

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