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11/09/2004 - 06h10

Análise: Dilemas da contemporaneidade

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MARIA APARECIDA DE AQUINO
especial para a Folha Online

Quando olhamos retrospectivamente para eventos marcantes, seja no plano pessoal ou no âmbito do coletivo, nossa tendência inicial reside em tentar reviver o sentimento desenvolvido no momento de seu transcurso.

Procuramos desvendar o que sentimos exatamente quando em contato com a boa ou má nova e gostamos de pensar o que estávamos fazendo quando determinado fato aconteceu.

Hoje, transcorridos três anos do 11 de setembro de 2001, temos clareza de algo perceptível no momento e que o tempo decorrido só fez certificar: estávamos frente a um acontecimento que iria modificar a face da história contemporânea.

Fazendo a "cobertura" da queda das torres do World Trade Center, em Nova York, praticamente no momento em que elas ocorriam, sentimos uma emoção que deve ser comparável aos que cobriram o front da Segunda Guerra Mundial (1939-1945): a certeza de que depois daqueles eventos o mundo não mais seria o mesmo.

Infelizmente, nesse curto tempo transcorrido, o chamado para a cobertura não se fez esperar e nos vimos frente a questões igualmente impactantes, mas, de algum modo, ligadas ao evento fundador: o 11 de setembro de 2001.

A seqüência de tragédias foi encadeada a partir de 7 de outubro de 2001, com a Guerra no Afeganistão. Depois veio o 20 de março de 2003, com a Guerra no Iraque, no último 11 de março, a explosão na Espanha e no dia 3 de setembro, o seqüestro na escola da Ossétia do Norte, república russa.

O que este encadeamento sangrento aponta? Os "donos do mundo", que há algum tempo vinham construindo um novo inimigo visível, após a ruptura do mundo bipolar a que nos acostumáramos durante a chamada "Guerra Fria", finalmente, conseguiram formalizar um inimigo que, novamente, teria o condão de galvanizar espíritos em todo o mundo.

Não se tratava mais da luta do "mundo livre" capitalista contra o avanço comunista e, sim, agora, unindo capitalistas e comunistas, da luta de todos contra o "terrorismo internacional".

Agora, mais do que nunca, temos a fantástica possibilidade de ver juntos [o que seria impensável anteriormente] George Walker Bush [presidente dos EUA] e Vladimir Putin,[presidente da Rússia] envolvidos na mesma cruzada insana: a caça aos "terroristas" mundo afora. E, do mesmo modo, suas lutas envolvem interesses não declarados e, naturalmente, atingem, tal e qual a característica central do "terrorismo", vítimas inocentes das quais se nutrem.

Acompanhamos uma guerra no Afeganistão realizada, pelo menos assim o dizem os discursos oficiais, para destruir a rede terrorista Al Qaeda e capturar seu líder, Osama bin Laden. Finda (?) a guerra com o Taleban destronado, o Afeganistão estava mais destruído e a população afegã mais pobre e sofrida.

A cada novo atentado fala-se do envolvimento da Al Qaeda --ora, ela não teria sido destruída?-- e lembra-se do nome de Bin Laden desaparecido em meio a tantos serviços secretos atuantes e de primeira linha --para que mesmo teria sido feita a guerra?.

Prosseguimos, observando uma Guerra no Iraque que, segundo o presidente Bush, teria terminado em 1º de maio de 2003. Numa operação ilusionista, tentou-se convencer o mundo que Sadam Hussein constituir-se-ia num perigo para o planeta, com suas --tão desaparecidas quanto Bin Laden-- "armas de destruição em massa".

Ninguém se preocupou em justificar muito a relação dos fatos do 11 de Setembro com a Guerra no Iraque. Este "esquecimento" fez parte da operação ilusionista. Confusamente, confundiu-se a causa de Bin Laden e sua Al Qaeda com Sadam Hussein governante do Iraque.

O Iraque, finalmente "livre" de Sadam Hussein, para o observador de fora, parece cada vez mais pobre, lutando com maiores dificuldades, com seu território bombardeado por armas pesadas --seriam de destruição em massa?-- do Exército "libertador" norte-americano. Até onde se sabe, ainda não estão restabelecidos os serviços essenciais e parece-nos muito próxima a possibilidade aterradora de uma guerra civil envolvendo as diferenças étnicas dos povos ali situados.

O governante russo que negou apoio ao colega norte-americano quando de sua "aventura iraquiana", parecendo em alguns momentos ter a figura de um estadista, agora reage com a mesma fúria "bushiana", prometendo caçar "terroristas" por todo o mundo, uma vez que o seqüestro da escola de Beslan, na Ossétia do Norte, tem a temida coloração tchetchena do separatismo, mortal para a Rússa que ainda se pensa como "império" soviético.

Os historiadores se debatem, constantemente, sobre a questão da história do presente, da validade de análises contemporâneas. Atrás desse debate existe a velha crença na "objetividade" científica. Ou seja, em palavras mais simples a questão é: teria o historiador, contemporâneo aos fatos, e, portanto, no calor das paixões por eles despertas, validade em suas análises, ou seria necessário, para uma maior confiabilidade, um distanciamento temporal para que, livre das paixões, pudesse, finalmente, opinar com sabedoria?

Os eventos contemporâneos, mais do que nunca, derrubam essas preocupações.

Não há 'objetividade" possível. Somos sempre movidos por paixões. A história, como "filha do tempo" [termo retirado da frase proferida em Galileu, Galilei --peça teatral escrita por Bertolt Brecht: "A verdade é filha do tempo, não da autoridade"] se escreve, sempre, com os pés no presente e um olhar sobre eventos passados --há poucos ou muitos anos.

Estamos em tempos em que os jogos de cena encontram-se, apesar do ilusionismo, claramente delineados. A quem Bush ou Putin enganam? Somente a quem quer ser enganado. Suas artimanhas sequer têm a elegância de um blefe como nos jogos de pôquer. O seu jogo escancarado assusta pela ousadia. Como jogadores, mostram a mão demais. Isso deve nos preocupar. Este é o diferencial destes tristes tempos.

Estes "donos do poder" têm a audácia de formalizar o que outros esconderam nas nuances de sua diplomacia política.

Para a análise dos historiadores que se debatem com os dilemas da contemporaneidade não falta, portanto, clarividência. O jogo é desmascarado. Resta saber até quando será permitido a esses "audazes jogadores" prosseguir no seu louco intento de construir um mundo [pela destruição] alimentando-se do novo inimigo visível de ocasião: o "terrorismo internacional".

Maria Aparecida de Aquino é doutora e professora do Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo)

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