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12/09/2004 - 11h21

Ocidente ignora drama tchetcheno, dizem analistas

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MÁRCIO SENNE DE MORAES
da Folha de S.Paulo

A dificuldade da comunidade internacional em criticar abertamente as atrocidades cometidas por forças russas contra civis e guerrilheiros tchetchenos e em pressionar Moscou a admitir negociar uma solução política para a questão tem levado organizações de defesa dos direitos humanos a exigir uma real tomada de posição dos líderes ocidentais. Por ora, porém, os esforços são vãos.

"Condenamos veementemente o terrorismo tchetcheno. É ignóbil usar civis, sobretudo crianças, como moeda de troca. Contudo é notório que as tropas russas continuam a cometer violações aos direitos humanos impunemente, já que o governo não julga os suspeitos russos.

Tortura generalizada, incluindo casos de estupro, assassinatos extrajudiciais, desaparecimento de suspeitos e maus-tratos se tornaram rotina na região", explicou à Folha Diederik Lohman, especialista em Tchetchênia da Human Rights Watch.

"O pior é que esse fenômeno está se alastrando pela vizinha Inguchétia. Mesmo assim, a comunidade internacional hesita em condenar claramente as ações russas, pois seus interesses diretos não estão em jogo. Além disso, a Rússia tem poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, o que, na prática, torna inviável uma condenação formal à ação russa no órgão. Assim, só resta o fator humanitário", acrescentou.

Mas o fator humanitário não compele as potências a tomar uma atitude drástica. "Quando questões econômicas e de segurança, além dos direitos humanos, demandam uma resposta enérgica, como ocorreu quando o Iraque invadiu o Kuait [1990], o Ocidente age", avaliou Andrew Bennett, especialista em questões russas e professor da Universidade de Georgetown (EUA).

"Na república independentista da Tchetchênia, o conflito ainda não afeta os interesses fundamentais dos países ocidentais nem ameaça disseminar-se por todo o Cáucaso. A preocupação torna-se, portanto, só humanitária. Para a comunidade internacional, entretanto, as relações com Moscou e os vultosos negócios envolvendo a Rússia são prioritários."

"Embora Colin Powell [secretário de Estado] tenha sinalizado, após a tragédia da escola de Beslan, que os EUA apoiariam uma solução negociada, o presidente [George W.] Bush já disse várias vezes que apóia seu colega russo, Vladimir Putin, que foi o arquiteto da segunda ofensiva russa na Tchetchênia [1999], porque tem outras prioridades em relação a Moscou, principalmente no que se refere à guerra ao terror, à contenção dos preços do petróleo e à construção do sistema de defesa antimísseis", analisou Bennett.

Com efeito, desde o 11 de Setembro, Putin busca associar sua cruzada contra os guerrilheiros tchetchenos à guerra ao terrorismo global protagonizada por Washington, sustentando que a rede Al Qaeda apóia as ações dos terroristas islâmicos tchetchenos.

Ademais, a recente alta do petróleo tornou a posição de Putin ainda mais confortável --Rússia e a Arábia Saudita são as maiores produtoras mundiais de petróleo e podem ajudar o governo dos EUA a conter a subida do preço.

De acordo com Mark Kramer, diretor do Projeto de Estudos sobre a Guerra Fria da Universidade Harvard (EUA), a principal razão da passividade dos Estados mais influentes, como os EUA, é a "constatação irrefutável" de que a Rússia ainda dispõe de milhares de armas nucleares e de um dos Exércitos mais fortes do planeta, embora minado pelos dez anos de confrontos na Tchetchênia.

Na última década, cerca de 15 mil militares russos morreram no Cáucaso por conta do conflito na república secessionista. Durante os dez anos em que a Rússia enfrentou os mujahidin [guerrilheiros islâmicos] no Afeganistão [1979-89], por volta de 12 mil soldados russos morreram.

"Na lógica geopolítica atual, em que o combate ao terrorismo se transformou no centro das atenções, a Tchetchênia pertence à Rússia e constitui um problema "interno", como Kosovo é parte da Sérvia e não vai se separar dela. Embora as violações cometidas pelos russos na Tchetchênia sejam mais graves e freqüentes que as praticadas pelos sérvios em Kosovo [1999], o Ocidente não cogita pressionar Moscou militarmente. A diferença é simples: a Rússia tem armas nucleares, a ex-Iugoslávia não as tinha", disse Kramer.

O americano James Critchlow, especialista em Rússia, e o russo Vladimir Kramnik, da Universidade Pública de São Petersburgo, por sua vez, crêem que as condições geográficas da Tchetchênia impeçam uma ação concreta internacional.

"A região é muito remota e torna uma verdadeira intervenção militar proveniente do exterior muito difícil. A pressão psicológica ainda é a melhor opção", apontou Kramnik.

Por enquanto, contudo, nem isso tem sido feito. Putin, que utilizou como pretexto uma série de atentados a bomba em território russo e a invasão do Daguestão por rebeldes tchetchenos para invadir a república secessionista em 1999, mantém-se inflexível no que concerne a admitir negociar com os guerrilheiros tchetchenos.

"O Ocidente tem de separar os terroristas, como Shamil Basayev, dos tchetchenos que têm legitimidade política e, portanto, podem negociar com os russos, como o ex-presidente Aslan Maskhadov. Será preciso encontrar interlocutores entre os tchetchenos. Caso contrário, a "islamização" da causa tchetchena se tornará ainda mais clara, o que terá resultados trágicos", salientou Bennett.

De fato, quando do primeiro conflito recente (1994-96), a causa tchetchena tinha tintas nacionalistas. Mas isso vem mudando nos últimos anos. "Desde 1999, os rebeldes tchetchenos vêm sofrendo forte influência de militantes e de terroristas islâmicos. Tradicionalmente, os tchetchenos são muçulmanos moderados. Mas a necessidade de obter, entre outras coisas, novos canais de financiamento levou os guerrilheiros a se associarem a terroristas islâmicos", afirmou Lohman.

Com isso, a Rússia recusa-se a negociar, tratando todos os tchetchenos como terroristas e colocando pessoas sem legitimidade no poder na república separatista para consolidar seu controle sobre ela. Assim, o Ocidente deve pressionar Putin a encontrar parceiros para negociar, pois Maskhadov não é visto por Moscou como um interlocutor palatável.

Ademais, o argumento de que a independência ou uma maior autonomia da Tchetchênia poderia provocar um efeito dominó na região é refutado pela maioria dos especialistas. "A Tchetchênia é um caso excepcional.

Os moradores do vizinho Daguestão não têm interesse em buscar a independência e preferem que os russos os protejam de militantes islâmicos tchetchenos ou de outras áreas", indicou Kramer.

"Outras repúblicas já conseguiram solucionar a questão da autonomia pacificamente. O Tatarstão [centro-oeste do país], também de maioria muçulmana, é um ótimo exemplo, visto que prosperou desde o colapso da URSS, em 1991", apontou Critchlow.

Em cinco anos de combates, cerca de 50 mil tchetchenos (de uma população original de 1,2 milhão), a maioria entre a população civil, morreram. Segundo organizações de defesa dos direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, os países mais poderosos têm de agir para pôr fim às atrocidades. Os rebeldes, aliás, também não estão isentos de culpa. O trágico desfecho do seqüestro na escola de Beslan, na Ossétia do Norte, ilustra bem essa constatação.

Kramer vai mais longe e defende a criação de um tribunal internacional para julgar crimes cometidos por ambas as partes na Tchetchênia, embora saiba que, no contexto atual das relações internacionais, isso seja inviável.

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