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30/01/2005 - 09h05

Eleição agrava perigo de guerra civil, diz assessor de Bush pai

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MÁRCIO SENNE DE MORAES
Da Folha de S.Paulo

EMBORA TENHAM DE OCORRER hoje porque seu adiamento significaria, aos olhos da insurgência e dos terroristas ativos no Iraque, um sinal de fraqueza da coalizão liderada pelos EUA, as eleições legislativas poderão agravar o perigo da "deflagração de uma guerra civil aberta" no país. A análise é de Brent Scowcroft, analista político e amigo da família Bush.

A análise é de Brent Scowcroft, general da reserva que foi assessor para Assuntos de Segurança Nacional dos presidentes republicanos Gerald Ford (1974-77) e George Bush (1989-93) e é um dos mais influentes consultores de política internacional dos EUA.

Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

Folha - O sr. disse que a situação de segurança no Iraque é tão crítica que as eleições poderiam agravar o problema. Mesmo assim, o sr. defende sua realização, não é?
Brent Scowcroft - Como a data das eleições foi estabelecida há algum tempo, seu adiamento deixaria o processo político numa situação muito confusa, e não há data ideal para a realização da votação a curto ou médio prazos, pois ainda haverá insegurança. Ademais, o adiamento do pleito fará que os insurgentes pensem que ganharam uma batalha contra as autoridades americanas e iraquianas. E eles provavelmente vão intensificar seus esforços.
Não sou, portanto, favorável ao adiamento das eleições, mas, logicamente, elas ocorrerão num ambiente muito desfavorável. Afinal, ao menos uma parcela dos iraquianos sunitas e dos insurgentes acredita que o Iraque vá transformar-se num Estado xiita e tenta impedir que isso se torne realidade. Cada vez mais, os ataques visam os sunitas que pretendem votar e os líderes xiitas.
Com isso, as eleições podem agravar o perigo da deflagração de uma guerra civil aberta. Não tenho certeza de que isso vá ocorrer, porém a votação não poderá constituir um grande passo na direção da melhora da situação, visto que os sunitas não serão devidamente representados e os xiitas ganharão um poder muito grande. Isso complicará as coisas.
Creio, conseqüentemente, que os iraquianos tenham de fazer algum ajuste após a apuração dos votos. Afinal, a Constituição iraquiana não poderá ser concebida sem a participação da comunidade árabe-sunita. Trata-se de uma situação bastante complicada.

Folha - Qual é o conteúdo e o sentido políticos de uma votação ameaçada pela violência e pelo boicote dos árabes sunitas?
Scowcroft - A insegurança mina o conteúdo político das eleições. O problema é que a alternativa seria adiar a votação, e, como disse antes, o adiamento faria que a coalizão liderada pelos EUA perdesse o controle da situação. Isso serviria para incentivar os insurgentes a continuar as suas ações, além de não resolver o problema sobre a escolha da nova data.
A melhor resposta à crise passa pela realização das melhores eleições possíveis dentro desse quadro de violência. Como os xiitas provavelmente vão ganhar, será preciso abrir caminho para a participação dos sunitas na concepção da Constituição e na formação do governo. Se isso ocorrer, o desfecho eleitoral será positivo. Se os líderes árabes-sunitas se recusarem a participar do processo político ou os xiitas não quiserem permitir que isso ocorra, todavia, a crise se tornará mais complexa.

Folha - Mesmo assim, o sr. crê que as eleições sejam legítimas?
Scowcroft - Uma vez que a data da votação está marcada, temos pouca margem de manobra no que tange a um eventual adiamento, embora saibamos que os árabes sunitas talvez não compareçam majoritariamente às urnas. Afinal, adiar o pleito seria um sinal de fraqueza aos olhos da insurgência e dos terroristas.

Folha - O sr. acredita que a democracia possa ser imposta a um país, como os EUA tentam fazer no Afeganistão e no Iraque?
Scowcroft - Sou cético acerca da possibilidade de a democracia ser imposta de forma exógena. Creio que a democracia seja o fim de um processo, não o começo. Diversas circunstâncias devem existir numa sociedade para que ela possa existir. Devo admitir que essas circunstâncias não existem hoje no Afeganistão nem no Iraque. Não posso dizer que a iniciativa de democratizá-los não funcionará no futuro. Todavia exemplos recentes, como o da Argélia, mostram que isso é difícil.
No início da década passada, os argelinos tiveram eleições livres e elegeram radicais islâmicos. O resultado foi uma guerra civil de 12 anos no país. Devemos reconhecer que a democracia é um processo complexo. No mundo ideal, ela nasce endogenamente. Não digo que o processo não pode receber ajuda externa, porém não acredito que a democracia possa ser criada de modo exógeno.

Folha - Que circunstâncias devem existir para que a democracia possa criar raízes numa sociedade?
Scowcroft - Há muitas. É preciso que haja uma sociedade civil bem estabelecida, tolerância, um sentido de nacionalismo, não de tribalismo, um sentido de que respeitar as regras é mais importante do que vencer o jogo etc. Ninguém rouba para vencer uma eleição, ninguém faz uma guerra porque a perdeu. Em muitas sociedades, trata-se de um conceito comum.

Folha - Há o risco de os EUA sofrerem uma espécie de "overstretching" (extensão excessiva), como disse Paul Kennedy em seu livro "Ascensão e Queda das Grandes Potências", por conta de seu forte envolvimento militar no exterior?
Scowcroft - Estamos engajados de modo muito pesado em várias frentes. Com isso, a situação seria muito difícil para nós se algo inesperado ocorresse e tivéssemos de agir militarmente. Não sei se podemos falar em "overstretching", mas é verdade que portamos um peso muito grande atualmente no que se refere a ações militares.
Suspeito, aliás, que portemos um peso bem maior do que pensávamos que portaríamos dois anos após a invasão do Iraque. Isso é um problema para nossas capacidades militares, visto que limita a margem de manobra, e para nossa habilidade em prestar atenção a outros focos de tensão.
O Iraque consome tanto nossas forças que acaba desviando a atenção das autoridades de outros temas importantes, como a Coréia do Norte ou o Irã.

Folha - Podemos crer nas notícias que dizem que os EUA estão se preparando para atacar o Irã?
Scowcroft - Li artigos sobre o assunto, mas tudo me parece significativamente exagerado. No entanto não posso realmente julgar.

Folha - Com base em toda a sua experiência militar e civil, o sr. acredita que isso seja plausível?
Scowcroft - Não!

Folha - O governo Bush cometeu um erro ao ir à guerra contra o Iraque do ex-ditador Saddam Hussein, pois hoje sabemos que ele não tinha armas de destruição em massa nem ligações com o terror?
Scowcroft - Trata-se de uma ótima questão. É uma pena que a história nunca revele suas alternativas. Não sabemos o que aconteceria se não tivéssemos travado essa guerra. Em 2002, escrevi que Saddam e o Iraque não deveriam ser vistos como prioridades para os EUA. Não penso que seja preciso dizer mais nada a esse respeito.

Folha - E quanto à reconstrução?
Scowcroft - Um dos principais problemas é que a atual administração subestimou o grau de hostilidade que encontraria no Iraque após a queda de Saddam. Com isso, não podemos avançar na reconstrução nem dar aos iraquianos um sentimento de que sua vida está melhorando. Os oleodutos e o sistema de eletricidade são constantemente atacados, e a reconstrução não avança. Isso tende a agravar a irritação da população, o que é desfavorável.

Folha - Condoleezza Rice, a nova secretária de Estado, declarou que os EUA serão diplomáticos e o multilateralistas. Isso é crível?
Scowcroft - Espero que sim. Isso é necessário porque a maioria dos problemas globais atuais, como o terror ou as drogas, ultrapassam as fronteiras nacionais e, portanto, requerem um tratamento multilateral. Sem cooperação, teremos graves problemas. Estaríamos numa situação melhor agora no Iraque se tivéssemos privilegiado o multilateralismo.

Folha - Que impacto a crise iraquiana terá sobre o terror global?
Scowcroft - Ele já teve um impacto sobre o terror global. Conseguimos minar as capacidades da Al Qaeda. Contudo o Iraque tomou o lugar do Afeganistão e se tornou o maior centro de treinamento de terroristas islâmicos.

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