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24/04/2005 - 09h03

Para Boff, Bento 16 pode trazer "obscurantismo generalizado"

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ANTÔNIO GOIS
da Folha de S. Paulo, no Rio

Obscurantismo, dificuldade de diálogo inter-religioso e afastamento ainda maior dos pobres. Esses são riscos que o teólogo Leonardo Boff, em entrevista à Folha, vê no papado de Bento 16.

Boff teve uma relação pessoal com o novo papa, Joseph Ratzinger, que foi da amizade ao enfrentamento. Segundo o teólogo, ele já se sentou na mesma cadeira em que o astrônomo Galileu Galilei respondeu, em 1663, às acusações de heresia por defender suas teorias sobre o movimento da terra. Como "inquisidor" de Boff em razão de sua defesa da Teologia da Libertação estava Ratzinger.

Para Boff, o novo papa pode pode inaugurar na igreja uma "era de obscurantismo generalizado", que pode levá-la à "irrelevância" e "talvez ao ridículo". Ele diz também que Ratzinger corre o risco de se tornar "o exterminador do futuro do ecumenismo intereclesial e inter-religioso".

O Vaticano, segundo Boff, já enquadrou toda a igreja brasileira, transferindo bispos mais proeminentes para dioceses sem maior significação e nomeando bispos mais conservadores, "alguns deles de um papismo espantosamente infantil e adulador", diz. "Creio que essa linha continuará, prejudicando os pobres que deixam de contar com o apoio da igreja em suas lutas por direitos, reforma agrária, e outras causas dignas. (...) Se antes estávamos numa era de seca eclesial, agora corremos o risco de entrar numa era de inverno, esperando que não seja glacial", opina.


Folha - O sr. conviveu com o cardeal Ratzinger antes de ele se tornar prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, no papado de João Paulo 2º. Como era esse relacionamento?
Leonardo Boff - Eu o conheci em 1969, na Alemanha, quando me ajudou a publicar minha tese doutoral alemã sobre a igreja como sinal e instrumento de salvação no mundo contemporâneo em contexto de revolução. Ele leu, gostou e encontrou uma editora, dando-me ainda uma boa soma de dinheiro para a publicação. Desde então, nos relacionávamos amigavelmente. Era um teólogo aberto e, quando ia a Munique, enchia todos os auditórios, pois suscitava entusiasmo e esperança.


Folha - O que mudou na posição de Ratzinger, e quais razões o sr. apontaria para essa mudança?
Boff - Ele estava na universidade de Tübingen, o centro mais prestigioso da teologia protestante e católica da Alemanha. Havia grande efervescência estudantil e ele entrou em atrito com os estudantes, que preferiam escutar seu colega Hans Küng em vez dele. Acabou se desentendendo com Küng e, mais tarde, já cardeal, tirou dele o título de teólogo católico e sua cátedra de teologia.
Nesse contexto, Ratzinger preferiu ele mesmo sair de Tübingen e postulou a cátedra em Regensburg, marginal na geografia teológica e cultural da Alemanha. Lá, ele pode fazer sua teologia mais voltada para dentro da igreja, morando com o irmão Georg Ratzinger, também padre, que era conservador e simpático ao [arcebispo francês] Marcel Lefèbvre, da ala ultraconservadora da igreja.


Folha - Qual foi a última ocasião em que o sr. conversou com Ratzinger?
Boff - Foi numa situação muito dramática: ele como meu interrogador e eu como inquirido, sentado na mesma cadeirinha onde sentou Galileu Galilei dentro do palácio da ex-Inquisição. Respondia a perguntas sobre meu livro "Igreja: Carisma e Poder", no qual tentava aplicar a Teologia da Libertação para o interno da Igreja Católica. Ele me moveu um processo judicial doutrinário em 1984 que acabou por me impor um ano de "silêncio obsequioso", me depor da cátedra de teologia e me proibir de escrever e de viajar. Depois, nunca mais nos vimos, embora de vez em quando, até em suas intervenções escritas, ele ataque uma tese que defendo à luz do Concílio Vaticano 2º: a de que nas outras igrejas também se encontra a igreja de Cristo e não apenas elementos eclesiais, como ele diz.


Folha - Alguns críticos do novo papa o apontam como um homem intransigente e disciplinador. O sr. não acha que essas características, se verdadeiras, podem atrapalhar o diálogo inter-religioso?
Boff - O documento doutrinário mais importante de Ratzinger foi escrito em 2000 com o título "Dominus Jesus". Ali se afirma a singularidade e unicidade de Cristo como único salvador e a Igreja Católica como única igreja verdadeira. Todas as demais igrejas não podem ser chamadas de igreja, pois teriam apenas elementos eclesiais. Pior ainda, ele afirma que a religião católica é a única verdadeira com todos os meios de salvação e que os fiéis de outras religiões estão em perigo de salvação, pois se encontram fora dela. Isso configura a arrogância própria dos fundamentalistas. Destarte, destrói-se todo o diálogo ecumênico, fruto de mais de 50 anos de empenho das várias igrejas, e se insultam as pessoas religiosas do mundo inteiro. Mas, há poucos dias, antes de ser eleito papa, ele afirmou a um jornalista credenciado no Vaticano que não retiraria nenhuma palavra desse documento. Se isso for verdade, ele poderá ser o exterminador do futuro do ecumenismo intereclesial e inter-religioso.


Folha - A leitura mais comum sobre o novo papado é que será um pontificado ainda mais conservador do que o de João Paulo 2º e de mais tradicionalismo a respeito das questões litúrgicas. O sr. concorda com essa análise?
Boff - Se ele mantiver a mesma atitude de fechamento, apesar de manter a retórica do diálogo, será ainda mais conservador que João Paulo 2º. Este era pastor e tinha gestos que estavam em contradição com sua teologia, mas os mantinha. Como em 1986, quando rezou em Assis pela paz junto com líderes religiosos do mundo inteiro. É sabido e notório que o cardeal Ratzinger se opôs a que o papa fosse a Assis, pois isso seria um sinal em favor do relativismo, teologicamente insustentável em sua opinião. Mas o papa foi. A vida em comunhão com outros é mais importante que a teologia.


Folha - O sr. acha que, com a eleição de Ratzinger, a igreja aprofunda um ciclo de distanciamento com o que ainda persiste de ideais da Teologia da Libertação na Igreja Católica?
Boff - Acho que não. O Vaticano age sempre burocraticamente. Em termos de burocracia, ele deu por encerrada a polêmica com a Teologia da Libertação ao escrever em 1984 um documento em que condenava esta teologia e outro em 1986 em que procurava resgatar alguns elementos positivos dela. Em nome desses documentos oficiais, enquadrou os teólogos, os institutos de teologia e bispos que assumiam em sua pastoral este tipo de pensamento, como d. Helder Câmara, o cardeal d. Paulo Evaristo Arns e o cardeal d. Aloisio Lorscheider.
Espero que não volte mais a esse assunto, apesar de que essa teologia, como se viu no Fórum Mundial de Teologia da Libertação, que aconteceu em Porto Alegre neste ano uma semana antes do Fórum Social Mundial, está viva em todo o Terceiro Mundo, com bons nomes de teólogos e teólogas das várias correntes.


Folha - Como a eleição de Ratzinger pode afetar a Igreja Católica no Brasil?
Boff - O Vaticano já havia enquadrado toda a igreja brasileira, transferindo bispos mais proeminentes para dioceses sem maior significação e nomeando bispos mais conservadores, alguns deles de um papismo espantosamente infantil e adulador. Creio que essa linha continuará, prejudicando os pobres que deixam de contar com o apoio da igreja em suas lutas por direitos, reforma agrária e outras causas dignas. Uma igreja que já não escuta o grito da humanidade sofredora dificilmente pode reivindicar ser herdeira de Jesus, por mais que faça showmissas e outras dramatizações midiáticas.


Folha - Que outros pontos o sr. acha importante salientar na análise sobre os rumos da igreja após o novo papa?
Boff - O importante é entender e insistir em que a igreja não pode se autofinalizar, pois ela não existe para si mesmo, mas para a humanidade, especialmente para os pobres e excluídos do mundo e para a Terra entendida como Gaia [nome poético dado pelos antigos gregos à deusa da Terra, muito usado na teoria holística], ou seja, como parte integrante de um todo, onde tudo age interligado a tudo. Essa Terra está sendo perigosamente devastada. Se ela desqualificar, como fez o cardeal Ratzinger em sua homilia antes de começar o conclave, as correntes de pensamento moderno, tachando-as de expressão da ditadura do relativismo, a igreja entrará numa era de obscurantismo generalizado. Tornar-se-á cada vez mas irrelevante e até certo ponto ridícula, condenando tudo o que for contra sua visão de mundo. Ratzinger fez isso até com o rock e o pop, chamados de "cultos profanos", e com os homossexuais, definidos como "anomalias da natureza" cujo casamento seria "imoral, artificial e nocivo à sociedade", além de outras condenações semelhantes.

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