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19/02/2006
-
09h20
LEILA SUWWAN
da Folha de S.Paulo, em Nova York
Se Washington virou as costas para a América Latina após o 11 de Setembro, agora está alerta e pronto para tolher a figura de Hugo Chávez, presidente da Venezuela, que desponta como o "primeiro adversário real" dos EUA no hemisfério em muitos anos, embalado pelo crescente rejeicionismo e antiamericanismo na região. É o diagnóstico de Peter Hakim, presidente do "think tank" Inter-American Dialogue.
A recente escalada de hostilidades diplomáticas entre os EUA e a Venezuela demonstra isso.
Apesar de ter em Chávez um adversário com "recursos petrolíferos para bancar o populismo", Hakim avalia que os EUA não estão alarmados com uma suposta onda populista ou a emergência de uma nova esquerda na região.
Porém explica que Washington faz uma clara distinção entre países pragmáticos e ideológicos baseado em três fatores: a centralização política, o fechamento econômico e o antiamericanismo. Por esses quesitos, o Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva e o Chile de Michelle Bachelet caem no campo do pragmatismo, onde há um "modus vivendi" aceitável para os EUA.
Já o antiamericanismo precisa ser combatido --o problema é a crescente força política derivada dele em países como a Argentina, de Néstor Kirchner, e a Bolívia, de Evo Morales. Leia a seguir trechos da entrevista de Hakim à Folha.
Folha - Qual foi o fator marcante da perda de interesse de Washington na América Latina?
Peter Hakim - A América Latina desapontou os EUA porque não apoiou a guerra contra o terrorismo, especificamente a invasão do Iraque. Os países da região levam muito a sério o fato de os EUA não levarem o debate à ONU. A América Latina olha para as organizações internacionais porque não são países poderosos, mas dividem o hemisfério com os EUA e precisam se proteger do unilateralismo americano.
Folha - Por que? Há uma ameaça de ação unilateralista na região?
Hakim - Não uma ameaça imediata, mas eles têm experiência e muita ansiedade a respeito disso. Por isso não surpreende a ênfase em soberania e não-intervenção. Nesse caso, há um ressentimento claro. Tirando o Oriente Médio, nenhuma outra região fez uma oposição tão veemente.
Folha - Mas isso é peculiar à administração Bush?
Hakim - No meio do mandato de Bush, houve uma redução das expectativas dos EUA. As palavras que definem o clima em Washington com relação à América Latina é desapontamento, desilusão, desencantamento. A região não se tornou o que era esperado há dez ou vinte anos em termos de economia, política e avanço social. A própria América Latina ficou amarga por isso.
Folha - Como Washington vê a chamada onda populista e a nova esquerda na região?
Hakim - Não acho que há preocupação com a onda de governos de esquerda, mas há uma preocupação séria com o surgimento de um adversário real, na forma de Hugo Chávez. Tirando Cuba, faz muito tempo que os EUA não têm um adversário verdadeiro na América Latina. E agora surge Chávez com uma agenda clara: excluir os EUA.
Isso se soma ao fato de que têm apoio limitado nos outros países para poder encarar Chávez. Há algum preocupação com [o presidente da Argentina, Néstor] Kirchner e uma hesitação com relação à Bolívia, mas nenhum alarme geral com ondas populistas ou esquerdistas, apenas com o antiamericanismo.
Folha - O que os EUA querem da América Latina?
Hakim - Querem relações comerciais, políticas e colaboração em questões como o tráfico de drogas. Mas Chávez quer a América Latina sem os EUA.
Folha - E o Brasil nisso tudo?
Hakim - Há desentendimentos com Lula, mas ele ganhou pontos com o fator Haiti [o Brasil comanda a operação militar da ONU no país]. Nunca vão concordar em temas como subsídios agrícolas ou propriedade intelectual, mas a relação é construtiva. Lula é um homem de esquerda, mas tem sido pragmático, tem evitado confrontos. Os EUA e o Brasil alcançaram um "modus vivendi" no qual trabalham juntos quando podem e aceitam as diferenças.
Folha - É possível dizer que, para os EUA, há duas esquerdas, uma pragmática com Lula e Michelle Bachelet [presidente do Chile] e outra ideológica com Hugo Chávez e Evo Morales [presidente da Bolívia]?
Hakim - Creio que sim. Os EUA olhariam por três critérios: processo democrático, políticas econômicas razoáveis e antiamericanismo. A esquerda em si não cria uma impraticabilidade. Mas temos Kirchner e Chávez nessa categoria não-pragmática, não levando em conta os melhores arranjos sem preceitos ideológicos.
Folha - E Washington não poderia ter evitado boa parte do antiamericanismo?
Hakim - Havia apoio após o 11 de Setembro, mas, depois do Afeganistão, houve essa escalada na inabilidade de levar em consideração o ponto de vista internacional. E, depois, o tratamento de prisioneiros, a tortura em Abu Ghraib, Guantánamo, etc. Os EUA pressionavam a América Latina com relatórios de direitos humanos, mas as regras mudaram quando se sentiram atacados. São dois pesos e duas medidas.
Folha - O que o sr. acha da tese de que o populismo poderia estar amplificando a democracia, prevenindo o elitismo democrático?
Hakim - George Orwell costumava dizer que o uso de algumas palavras é indicação de que a pessoa está mentindo. Populismo é uma dessas palavras. As pessoas usam para defender seus interesses. O problema existe quando o populismo significa falta de responsabilidade, falta de disciplina financeira, promessas não cumpridas. Como Hugo Chávez. Mas, com a renda do petróleo que ele tem, é um dos poucos que podem bancar o populismo.
Folha - Essa política baseada em ideologia vai se espalhar?
Hakim - Sim, certamente. Não há dúvida de que há uma política de rejeicionismo na América Latina. Como disseram na Argentina: "Que se vayan todos". Temos Morales, Chávez, Kirchner. Não há dúvida de que esse sentimento existe e de que o antiamericanismo é fonte de força. E a situação de Bush não ajuda. Será difícil ele fazer concessões em assuntos que interessam aos latino-americanos, como os subsídios agrícolas e a imigração ilegal.
Folha - Qual o futuro possível para a América Latina sem fortes laços com os EUA?
Hakim - Vamos ver mais disso porque há mais alternativas hoje. Aquela velha noção de pan-americanismo, um hemisfério trabalhando junto com os EUA à frente, já acabou. Estamos caminhando na direção da diversidade. As relações com os EUA serão de país a país, de assunto a assunto.
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da Folha de S.Paulo, em Nova York
Se Washington virou as costas para a América Latina após o 11 de Setembro, agora está alerta e pronto para tolher a figura de Hugo Chávez, presidente da Venezuela, que desponta como o "primeiro adversário real" dos EUA no hemisfério em muitos anos, embalado pelo crescente rejeicionismo e antiamericanismo na região. É o diagnóstico de Peter Hakim, presidente do "think tank" Inter-American Dialogue.
A recente escalada de hostilidades diplomáticas entre os EUA e a Venezuela demonstra isso.
Apesar de ter em Chávez um adversário com "recursos petrolíferos para bancar o populismo", Hakim avalia que os EUA não estão alarmados com uma suposta onda populista ou a emergência de uma nova esquerda na região.
Porém explica que Washington faz uma clara distinção entre países pragmáticos e ideológicos baseado em três fatores: a centralização política, o fechamento econômico e o antiamericanismo. Por esses quesitos, o Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva e o Chile de Michelle Bachelet caem no campo do pragmatismo, onde há um "modus vivendi" aceitável para os EUA.
Já o antiamericanismo precisa ser combatido --o problema é a crescente força política derivada dele em países como a Argentina, de Néstor Kirchner, e a Bolívia, de Evo Morales. Leia a seguir trechos da entrevista de Hakim à Folha.
Folha - Qual foi o fator marcante da perda de interesse de Washington na América Latina?
Peter Hakim - A América Latina desapontou os EUA porque não apoiou a guerra contra o terrorismo, especificamente a invasão do Iraque. Os países da região levam muito a sério o fato de os EUA não levarem o debate à ONU. A América Latina olha para as organizações internacionais porque não são países poderosos, mas dividem o hemisfério com os EUA e precisam se proteger do unilateralismo americano.
Folha - Por que? Há uma ameaça de ação unilateralista na região?
Hakim - Não uma ameaça imediata, mas eles têm experiência e muita ansiedade a respeito disso. Por isso não surpreende a ênfase em soberania e não-intervenção. Nesse caso, há um ressentimento claro. Tirando o Oriente Médio, nenhuma outra região fez uma oposição tão veemente.
Folha - Mas isso é peculiar à administração Bush?
Hakim - No meio do mandato de Bush, houve uma redução das expectativas dos EUA. As palavras que definem o clima em Washington com relação à América Latina é desapontamento, desilusão, desencantamento. A região não se tornou o que era esperado há dez ou vinte anos em termos de economia, política e avanço social. A própria América Latina ficou amarga por isso.
Folha - Como Washington vê a chamada onda populista e a nova esquerda na região?
Hakim - Não acho que há preocupação com a onda de governos de esquerda, mas há uma preocupação séria com o surgimento de um adversário real, na forma de Hugo Chávez. Tirando Cuba, faz muito tempo que os EUA não têm um adversário verdadeiro na América Latina. E agora surge Chávez com uma agenda clara: excluir os EUA.
Isso se soma ao fato de que têm apoio limitado nos outros países para poder encarar Chávez. Há algum preocupação com [o presidente da Argentina, Néstor] Kirchner e uma hesitação com relação à Bolívia, mas nenhum alarme geral com ondas populistas ou esquerdistas, apenas com o antiamericanismo.
Folha - O que os EUA querem da América Latina?
Hakim - Querem relações comerciais, políticas e colaboração em questões como o tráfico de drogas. Mas Chávez quer a América Latina sem os EUA.
Folha - E o Brasil nisso tudo?
Hakim - Há desentendimentos com Lula, mas ele ganhou pontos com o fator Haiti [o Brasil comanda a operação militar da ONU no país]. Nunca vão concordar em temas como subsídios agrícolas ou propriedade intelectual, mas a relação é construtiva. Lula é um homem de esquerda, mas tem sido pragmático, tem evitado confrontos. Os EUA e o Brasil alcançaram um "modus vivendi" no qual trabalham juntos quando podem e aceitam as diferenças.
Folha - É possível dizer que, para os EUA, há duas esquerdas, uma pragmática com Lula e Michelle Bachelet [presidente do Chile] e outra ideológica com Hugo Chávez e Evo Morales [presidente da Bolívia]?
Hakim - Creio que sim. Os EUA olhariam por três critérios: processo democrático, políticas econômicas razoáveis e antiamericanismo. A esquerda em si não cria uma impraticabilidade. Mas temos Kirchner e Chávez nessa categoria não-pragmática, não levando em conta os melhores arranjos sem preceitos ideológicos.
Folha - E Washington não poderia ter evitado boa parte do antiamericanismo?
Hakim - Havia apoio após o 11 de Setembro, mas, depois do Afeganistão, houve essa escalada na inabilidade de levar em consideração o ponto de vista internacional. E, depois, o tratamento de prisioneiros, a tortura em Abu Ghraib, Guantánamo, etc. Os EUA pressionavam a América Latina com relatórios de direitos humanos, mas as regras mudaram quando se sentiram atacados. São dois pesos e duas medidas.
Folha - O que o sr. acha da tese de que o populismo poderia estar amplificando a democracia, prevenindo o elitismo democrático?
Hakim - George Orwell costumava dizer que o uso de algumas palavras é indicação de que a pessoa está mentindo. Populismo é uma dessas palavras. As pessoas usam para defender seus interesses. O problema existe quando o populismo significa falta de responsabilidade, falta de disciplina financeira, promessas não cumpridas. Como Hugo Chávez. Mas, com a renda do petróleo que ele tem, é um dos poucos que podem bancar o populismo.
Folha - Essa política baseada em ideologia vai se espalhar?
Hakim - Sim, certamente. Não há dúvida de que há uma política de rejeicionismo na América Latina. Como disseram na Argentina: "Que se vayan todos". Temos Morales, Chávez, Kirchner. Não há dúvida de que esse sentimento existe e de que o antiamericanismo é fonte de força. E a situação de Bush não ajuda. Será difícil ele fazer concessões em assuntos que interessam aos latino-americanos, como os subsídios agrícolas e a imigração ilegal.
Folha - Qual o futuro possível para a América Latina sem fortes laços com os EUA?
Hakim - Vamos ver mais disso porque há mais alternativas hoje. Aquela velha noção de pan-americanismo, um hemisfério trabalhando junto com os EUA à frente, já acabou. Estamos caminhando na direção da diversidade. As relações com os EUA serão de país a país, de assunto a assunto.
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