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29/10/2002
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02h57
O cinema nacional é nosso
INÁCIO ARAÚJO crítico da Folha de S.Paulo
Atrás de mim, na fila do multiplex, a garota tentava convencer o namorado a fazer outro programa. Discriminava os vários filmes propostos: "Esse o Fábio falou que é ruim, esse não tem mais lugar, esse eu não conheço, esse é nacional...". O "nacional", no caso, era "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles. Um filme que se propõe a mostrar como, numa favela do Rio de Janeiro, crianças começam a se tornar criminosos, como funciona essa engrenagem que começa com a exclusão social, a falta de perspectiva dos pobres, o descaso do Estado, o tráfico de drogas, a formação de associações criminosas, os assassinatos em massa.
Divulgação | | Cena do filme "O Cangaceiro", de Lima Barreto |
"Cidade de Deus" ultrapassou em poucos dias a barreira do milhão de espectadores e, segundo projeções, deve chegar a mais de milhões no Brasil. É um desses fenômenos que o cinema brasileiro produz de tempos em tempos, como "Carlota Joaquina", de Carla Camuratti, ou "Central do Brasil", de Walter Salles Jr..
Pode-se pensar no cinema brasileiro não apenas pela perspectiva do sucesso. Tomemos o caso de "Exemplo Regenerador", um pequeno filme feito em 1919 por José Medina, que mostra as artimanhas de uma mulher para conquistar seu marido infiel. O filme deve interessar a 500 ou mil pessoas no país inteiro, se tanto. Mas ele nos mostra coisas que não podemos ver em nenhum outro filme: a avenida Paulista do tempo dos casarões, o modo de as pessoas se vestirem no começo do século 20 em São Paulo, as casas em que habitavam os ricos da época, seus costumes sexuais, sua relação com a moral etc.
Ou seja, o cinema revela muita coisa sobre o caráter e a história do Brasil. Algumas, podemos encontrar em romances, ensaios ou fotos. Outras, apenas nas imagens em movimento. Por isso é tão importante um povo produzir, consumir e preservar suas próprias imagens, e não só as que chegam de outros países.
Nem sempre essas imagens são as melhores. Mas o cinema não é um campeonato esportivo, onde é preciso ser o melhor: ele é expressão cultural de um povo. Por isso o cinema dos EUA é diferente do francês, que é diferente do italiano ou do iraniano. Seja o moderno "Cidade de Deus" ou o arcaico "Exemplo Regenerador", cada filme brasileiro traz algo pessoal e intransferível, que ninguém mais pode mostrar: nossas virtudes e defeitos, o atraso e a grandeza, a beleza e a feiúra que nos constituem estão lá. Por isso é sempre útil pensar duas vezes antes de dar as costas a um filme apenas por ser "nacional", isto é, brasileiro.
Inácio Araújo é crítico de cinema da Folha. Gosta de cinema porque não gosta de preconceito; acha que cinema não tem fronteiras.
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