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29/10/2002 - 02h51

A nova doutrina americana

MARCIO AITH
da Folha de S.Paulo, em Washington

Reprodução
A Doutrina Bush é o conjunto de princípios e métodos adotados pelo presidente George W. Bush para proteger os EUA depois dos atentados de 11 de setembro, consolidar a hegemonia americana no mundo e perpetuá-la indefinidamente.

Ela parte do pressuposto de que os EUA, única superpotência global, têm o papel de proteger o mundo civilizado de terroristas que vivem nas sombras, se superpõem aos Estados e planejam ataques "iminentes" com armas de destruição em massa.

Se necessário, a doutrina reserva aos EUA a prerrogativa de lançar ataques preventivos contra países ou grupos terroristas antes que eles ameacem interesses americanos.

Para entender melhor esse conjunto de idéias, vale a pena relembrar como a palavra "doutrina" foi usada para definir feições, linhas de conduta e métodos de alguns presidentes americanos no século 20.

O dicionário Aurélio define doutrina como o conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico ou científico. Doutrinas não são ações isoladas, mas diretrizes feitas para orientar políticas por períodos que, supõe-se, sejam mais longos que dias, semanas e meses. No passado, coube a historiadores, e não a governos, definir quais idéias e ações tiveram consistência ou duração suficientes para serem chamadas de doutrinas.

Foi assim com a Doutrina Truman, que formou o pilar da Guerra Fria em 1947 e acabou derrotando a União Soviética quatro décadas depois, e com a Doutrina Monroe , de 1823, que garantiu aos EUA a ascendência sobre a América Latina e afastou a influência européia sobre a região. Essas doutrinas foram batizadas como tais anos depois, pelas mãos de observadores independentes.

Ron Edmonds/AP Photo - 20.set.02
George W. Bush em discurso no Congresso
Diferentemente, quem primeiro cunhou a expressão Doutrina Bush foram autoridades do próprio governo Bush, enquanto a divulgavam. Mais especificamente, foi a assessora de segurança nacional da Casa Branca, Condoleezza Rice, que primeiro a mencionou, durante conversa com jornalistas, em novembro de 2001.

Essa distinção é importante não só porque constata a rapidez com a qual idéias são embaladas em doutrinas atualmente, mas porque indica a intenção de Bush de projetar suas idéias no futuro, não deixando que morram com o fim de sua administração.

Isso não significa que a Doutrina Bush não mereça ser chamada de doutrina. Ao contrário, ela mudou radicalmente o parâmetro da política externa dos EUA, substituindo os princípios da contenção e da dissuasão, típicos da Doutrina Truman, pela possibilidade de ataques preventivos.

A grande dúvida é saber se, como as duas outras doutrinas aqui citadas, a de Bush se projetará no futuro. Ou se, fugaz, será revogada pelo próximo presidente americano e ficará registrada na história como uma espécie de "soluço".

A doutrina é composta por três pilares básicos:

1- "Todas as nações, em todas as regiões, agora têm uma decisão a tomar: ou estão conosco ou estão com os terroristas" (discurso de Bush ao Congresso norte-americano no dia 20 de setembro de 2001). Com essa afirmação, a Casa Branca prometeu caçar terroristas em todo o mundo e ameaçou países que abrigam terroristas ou que optaram pela neutralidade. Nesse discurso, Bush definiu o terrorismo como o principal inimigo da humanidade e condicionou qualquer apoio financeiro e diplomático dos EUA ao engajamento de outros países.

2- "A guerra contra o terror não será ganha na defensiva. Dissuasão —a promessa de retaliação maciça contra nações— nada significa contra esquivas redes terroristas sem nações ou cidadãos para defender. A contenção é impossível quando ditadores desequilibrados, com armas de destruição em massa, podem enviá-las por mísseis ou transferi-las secretamente para aliados terroristas" (discurso de Bush a cadetes da academia militar de West Point em 2 de junho passado). Esse discurso introduziu a opção de ataques militares preventivos como figura central de uma nova ordem mundial. Segundo o presidente, é necessário "levar a batalha ao inimigo e confrontar as piores ameaças antes que venham à tona". Em suma: durante a Guerra Fria, os EUA continham seus inimigos com ameaças. Agora, passarão a destruí-los antes que eles ataquem.

3- "Nossas forças serão firmes o bastante para dissuadir adversários potenciais de buscar uma escalada militar na esperança de ultrapassar ou se equiparar ao poderio dos Estados Unidos" (trecho do documento "A Estratégia de Segurança Nacional dos EUA", enviado por Bush ao Congresso em 20 de setembro de 2002). O significado dessa afirmação é que os EUA não pretendem nunca mais permitir que sua supremacia militar seja desafiada.

Existem outros aspectos da Doutrina Bush que, embora menos importantes, têm relevância. Um deles é o econômico. O mesmo documento enviado ao Congresso no dia 20 de setembro diz que "comércio e investimento são os motores reais do crescimento" e que "livre comércio e livre mercado são prioridades-chave da estratégia de segurança nacional".

Os EUA sinalizam também oposição a qualquer tipo de modelo econômico baseado na intervenção estatal, "com a mão pesada do governo". Esse aspecto é importante para países como o Brasil, pois os EUA prometem usar sua influência em instituições como o FMI (Fundo Monetário Internacional) para obter esses e outros objetivos.

Marcio Aith, 35, é correspondente de Folha em Washington desde 1999. Foi, no passado, advogado e craque de futebol.

Leia mais:
- Leia a introdução da "Estratégia de Segurança Nacional dos EUA"

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