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28/01/2003 - 02h52

Perfil: A construtora de ninhos

PAULO DE CAMARGO
free-lance para a Folha de S.Paulo

O ambiente é caseiro. Do velho fogão da cozinha vem o cheiro de bolinhos fritos. Crianças e adolescentes conversam, enquanto colam, desenham ou talham caixas de madeira. Embora de suas mãos saia artesanato, não estão ali para aprender ou produzir nada. Apenas experimentam estabilidade, confiança e outros sentimentos associados ao colo materno.

Fotos Pedro Azevedo/Folha Imagem
A psicóloga Eliana França Leme, criadora do Quero-Quero, com crianças assistidas pelo projeto

"Não somos uma escola, só queremos fortalecer emocionalmente essas crianças", explica Eliana França Leme, idealizadora dessa proposta simples e diferenciada de assistência social, que dá colo hoje para 60 meninos e meninas com idades entre 8 e 16 anos. Todos vêm de famílias desestruturadas, marcadas pela pobreza extrema e pela violência do local onde vivem: o Jardim Paranapanema, uma das favelas mais perigosas de Campinas (SP).

O oásis de conforto criado por essa psicóloga funciona vizinho à favela, sediado em um pequeno grupo de casas às margens do lago de um parque ecológico. Chama-se Projeto Quero-Quero. O nome, emprestado da ave que vive na área, encaixou-se com perfeição à filosofia do trabalho desenvolvido ali. Quero-queros andam aos casais, estão sempre vigilantes e protegem valentemente seus ninhos. E ninho é uma palavra-chave para explicar a visão de Eliana Leme.

O ambiente acolhedor, oferecido sem precondições, cobranças ou intenções corretivas, é um dos pilares nos quais a psicóloga firmou seu projeto. A instituição, que funciona discretamente desde 1998, consome poucos recursos e tornou-se um exemplo de trabalho voltado a crianças e adolescentes carentes.

Carentes, não. Pobres, corrige Eliana. "Dizer que são carentes é um eufemismo, soa falso." Ela conhece o problema na prática e na teoria. Envolveu-se em ações sociais muito antes da popularização do trabalho voluntário no Brasil. Estuda a miséria com afinco: um dos seus livros de cabeceira é "A Origem da Pobreza das Massas", do economista norte-americano John Kenneth Galbraith.

Filha de uma pesquisadora sanitarista que trabalhava com tuberculosos, Eliana Leme trouxe do berço esse seu "incômodo" com as desigualdades. "Minha mãe tinha consciência social forte, sempre dizia que não existe felicidade individual, mas sim bem-estar coletivo", lembra.

Raio-X:

Nome: Eliana França Leme
Profissão: psicóloga
Atuação: trabalho voluntário com crianças e adolescentes
Idade: 58 anos
Estado civil: casada
Filhos: tem três, com 35, 34 e 31 anos
Livro: "O Amor nos Tempos do Cólera" (Gabriel García Márquez)
Filme: "A Festa de Babete"(Dinamarca, 1987, dirigido por Gabriel Axel)
Hobbies: patchwork e escultura em argila

Outra influência importante na sua formação foi madre Cristina (1916-1997), pioneira da psicologia e fundadora do Instituto Sedes Sapientiae. "Tenho orgulho de ter pertencido à primeira turma do curso de psicologia em São Paulo", diz ela, que ingressou na então faculdade Sedes Sapientiae em meados dos anos 60, interrompeu os estudos para ter filhos e depois diplomou-se pela PUC de São Paulo.

No início dos anos 80, com três filhos pequenos e alguma experiência de consultório, Eliana vivia, como ela mesmo descreve, confortavelmente numa casa de campo na Granja Viana, em Cotia, região metropolitana de São Paulo. "Tinha tudo para ser feliz, mas eu me sentia muito mal ao ver aquele cinturão de miséria", conta.

Foi então que iniciou naquela região uma ação com garotos carregadores de feira. A iniciativa, que hoje ela classifica de "artesanal", tinha a preocupação de oferecer àquelas crianças uma outra fonte de renda. Para isso, a psicóloga ensinava ao grupo técnicas de tapeçaria e, ao mesmo tempo, conversava, contava histórias e orientava brincadeiras. Os resultados atraíram a atenção de uma empresa, que passou a contratar os serviços de tapeçaria dos meninos e meninas. Esses, por sua vez, passaram a envolver suas famílias na nova atividade.

Eliana Leme trabalhou com esse grupo de meninos até 1985, quando deixou São Paulo, acompanhando o marido, o engenheiro Ricardo Augusto Leme França, que fora convidado a trabalhar em Campinas. Lá, Eliana fez cursos na Unicamp e voltou a clinicar, atividade que exerceu até o final da década de 90, quando começou seus primeiros esboços para a formação do Quero-Quero.

Primeiramente, ela discutiu com colegas (alguns, futuros voluntários) a base teórica do trabalho e desenhou a instituição. "Sabia que, se não partisse de um diagnóstico e de um plano de ação, não chegaria a lugar nenhum", conta. Uma das maiores referências para o trabalho foi a obra do pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971). Estudioso das relações entre mãe e filho, Winnicott trabalhou com crianças em estado de privação, que perderam os pais durante a Segunda Guerra. A partir dessa experiência, o psicólogo inglês mostrou a importância do ambiente para a retomada do desenvolvimento infantil, especialmente em circunstâncias de trauma. Um dos conceitos que desenvolveu, nesse sentido, foi o de "holding", traduzido por Eliana Leme como "continência", a idéia de estar envolvido, pertencer. "As crianças chegam aqui com suas dores e ansiedades e sentem que algo as ampara", diz.

O artesanato é uma das atividades lúdicas oferecidas pelo programa
Outro conceito caro à psicóloga, também ligado ao legado de Winnicott, é o de "maternagem": compreende a recriação de um espaço com as qualidades do ambiente materno. Entre essas qualidades estão a continuidade, a confiança, o cuidado, a afetividade e a adaptação às necessidades da criança, que estão sempre mudando. "Para esse autor, esse ambiente suficientemente bom é, por si só, uma ação terapêutica", ensina Eliana Leme.

Estruturado a partir desses princípios, o projeto começou com quatro crianças e muitas dificuldades. "Era muito difícil até envolver num abraço aquelas crianças agressivas, que resistiam ao toque, subnutridas e em péssimas condições de higiene", conta a presidente do Quero-Quero. "Aprendemos que tínhamos de abraçá-las da forma como nos chegavam, aquilo era o mais importante."

Alguns voluntários não conseguiram adaptar a teoria à realidade. Essas primeiras "baixas" mostraram que o principal, na hora de aceitar voluntários para o projeto, era garantir o compromisso com o grupo, já que a cada falta ou desistência recrudescia nos meninos o sentimento de recusa. "Eles diziam que os voluntários ausentes os estavam abandonando", conta a psicóloga.

O Quero-Quero acaba de reunir as autorizações legais para se tornar uma organização não-governamental. Até hoje, sobreviveu basicamente de doações em espécie, feitas por empresas e pessoas que enviam pacotes de alimentos, material para pequenas reformas, móveis, livros etc. Sua fundadora, agora, está se afastando da presidência para livrar-se de questões operacionais, ganhar tempo e buscar apoio institucional para o projeto.

O "ninho" instalado em Campinas recebe crianças em dois períodos. O grupo da manhã toma café às 8h, desenvolve atividades com os voluntários, aproveita o tempo livre em brincadeiras, almoça e volta para a escola ou para casa às 11h30. O grupo da tarde almoça às 14h, segue a mesma rotina do anterior, lancha e se despede às 17h30. As atividades desenvolvidas têm caráter lúdico e são tão diversificadas quanto as competências dos 30 voluntários e das empresas parceiras: artes, teatro, capoeira, futebol e sapateado fazem parte do programa.

O projeto não tem o objetivo de desenvolver diretamente conhecimentos ou habilidades. Não há suporte para quem tem dificuldade na escola, por exemplo. "Queremos que as crianças brinquem, que se sintam seguras, estimuladas, encorajadas, para que então possam melhorar na escola, em casa, onde for. Se uma criança não sabe ler, não pedimos a ela que leia, não a colocamos em situações de exposição", afirma a psicóloga.

Os voluntários, entretanto, buscam o desenvolvimento paulatino de habilidades que favoreçam o relacionamento humano. Sempre de forma lúdica, procuram estimular a leitura e o raciocínio matemático.

Tamanha preocupação em não constranger as crianças já provocou dúvidas sobre a capacidade do Quero-Quero de fixar limites aos assistidos. A psicóloga afirma que o seu projeto enfrenta essa questão, sim, mas em coerência com o conceito da "maternagem", ou seja: levando em conta as características do comportamento de cada criança. Mais do que o reduzido grau de problemas disciplinares, um dos principais indicadores do acerto dessa estratégia é, segundo Eliana, a progressiva melhoria na qualidade do relacionamento das famílias.

Desde o início, Eliana e alguns dos voluntários procuraram ter uma presença ativa também na casa das crianças e dos adolescentes, conhecendo seus pais, dando sugestões e oferecendo apoio. "Passei a conhecer todas as vielas da favela, circulava por lá com naturalidade", diz.

Um dos assuntos mais doloridos para ela é a queda-de-braço com o tráfico. "Perdi um ou dois meninos para o tráfico", diz, desolada. Lembra-se particularmente de um adolescente descrito como muito inteligente, que passava temporadas no Quero-Quero, mas vivia assediado por traficantes. Uma vez, Eliana chegou a entrar em uma roda de traficantes para levar o garoto embora, arrastado pelo braço. Hoje, está preso. "Ele tentou muito, mas a atração do tráfico foi mais forte."

Eliana não vai mais ao Jardim Paranapanema. Ameaçada de morte por agentes do comércio ilegal de drogas, a psicóloga agora conversa com as famílias por telefone ou em bazares que ajuda as mães a organizar. Mas acompanha de perto os progressos no relacionamento familiar dos atendidos. "As crianças reaprendem a querer, a avançar, e estimulam também seus pais. A mudança se reflete na diminuição da violência doméstica, na melhoria da qualidade da habitação e na procura por trabalho e escolas. Não tenho dúvida de que a nova situação emocional das crianças contribui para isso."

Para a criadora do Quero-Quero, essa é "pedagogia do desejo", uma expressão utilizada por César Della Rocca, do Projeto Axé. "Já se falou demais de pedagogia do oprimido. As crianças precisam saber que podem querer e vencer", diz.

No tempo livre, Eliana costura belos trabalhos em patchwork. Seu "caso" com os retalhos vem de quando era pequena e via o avô, alfaiate, trabalhando com amor. "Virou um vício", diz. A técnica de juntar restos compondo um tecido novo, alegre e harmonioso, segundo ela, tem "tudo a ver" com o Quero-Quero.

Na sede do projeto, tocos e tábuas viraram bancos e mesas, vasos quebrados tornaram-se floreiras e todos os objetos são brinquedos. O que mais se oferece ali é tão simples que não tem preço, segundo a psicóloga: "O que temos aqui é um colo materno".

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