Folha Online sinapse  
28/01/2003 - 02h46

Verbete: Razões da democracia

RENATO JANINE RIBEIRO
especial para a Folha de S.Paulo

Reprodução
A democracia é o poder do povo ("demos" = povo, "kratos"= poder). Não quer dizer que o povo governe diretamente: tanto na Grécia como no mundo de hoje, as funções de de poder eram delegadas. Mas o decisivo é que isso se faça em nome do povo e de sua vontade. Ainda hoje, a democracia ateniense, que durou só dois séculos (do 6º ao 4º antes de Cristo) e afetou apenas dezenas de milhares de pessoas, parece admirável. Nossa democracia é representativa, isto é, os cargos de poder são atribuídos, em eleição (aí se manifesta o povo), a alguns atores políticos que nos representam —presidente, governador, deputados. A democracia grega era direta, ou seja, a cada semana e meia, o povo de Atenas se reunia e decidia todo tipo de questão.

Isso é impraticável numa sociedade como a nossa, não só porque em países grandes não há como reunir a população toda num único lugar, mas, sobretudo, porque poucos se disporiam a deixar seus afazeres privados e os prazeres pessoais para discutir política toda semana. Mesmo assim, há uma crítica forte à democracia representativa, porque nela os representantes ficam muito soltos: fazem o que querem, já que seus eleitores, afinal, só os controlam a cada tantos anos.

Por isso, uma questão fundamental, hoje, é como tornar a democracia mais efetiva. Há duas possibilidades. Uma é manter a representação, mas fazer os representantes prestarem contas aos representados. A transmissão das sessões legislativas pela TV, uma cobertura detalhada pela mídia (como a que a Rádio Eldorado de São Paulo faz da Câmara Municipal), o hábito do eleitor de escrever a seu deputado ou vereador, a formação de redes que divulgam os votos dos parlamentares e a supressão do voto secreto nas sessões do Legislativo são alguns meios de fazer a cidadania controlar os políticos.

Outra maneira é introduzir, sempre que possível, a democracia direta, que seria uma injeção de Grécia na nossa sociedade. Decisões sobre um bairro, como as tomadas no Orçamento Participativo que começou com o PT de Porto Alegre, mas se estendeu a outros Estados e partidos, são exemplo de escolhas que se pode tomar em uma assembléia dos diretamente interessados. Em suma, a democracia direta exige que as pessoas não se limitem a votar uma vez cada dois anos, mas se mantenham ligadas por seus interesses e desejos, a fim de que o poder —que só é legítimo porque foi eleito— os respeite.

Exercícios democráticos:

1- Pode alguém ser proprietário de outra pessoa, em outras palavras, a escravidão é legítima? Na democracia dos EUA, até 1863, a escravidão era legal. Em Atenas, ela sempre o foi. Veja a Constituição do Império do Brasil a respeito: ela nem fala em escravos (a dos Estados Unidos fala). O que o constituinte solitário (D. Pedro I) fez para manter a escravatura foi, apenas, dizer que se respeitava a propriedade, sem detalhar em que consistiria. Exercício: localize nas Constituições do Brasil (1823) e dos Estados Unidos (1789) as passagens que legalizam a escravidão. A do Brasil você pode encontrar no site www.cebela.org.
br/textpolit/socio/fr_sumar.html
.

2- Por que você não compara os direitos humanos conforme as declarações? Vá a um site que as tenha (www.direitos
humanos.usp.br
, por exemplo) e veja as declarações da Inglaterra (1688-9), da França (1789), dos Estados Unidos (1791) e a Declaração Universal (1948). Procure-as também no suplemento especial da Folha de 3 de dezembro de 1998 (é possível agendar consulta no Banco de Dados do jornal pelo tel. 0/xx/11/ 3224-4577; na internet, o www.uol.com.br/fsp/arquivo.htm permite, a assinantes da Folha ou do UOL, realizar pesquisa por palavra-chave) comemorando os 50 anos da Declaração Universal. Veja o que cada uma tem que as outras não têm. Esse é um trabalho bom para fazer em grupo e na escola, montando um quadro de comparação e, depois, discutindo quais são melhores, quais são piores.

3- Outra idéia é comparar as Constituições brasileiras (de 1891, 1934, 1946, 1988) e também as não votadas (de 1823, 1967, 1969), no tocante aos direitos humanos. Também é um trabalho de grupo. Vá ao site www.direitoshumanos.usp.br e veja as Constituições. Depois, compare o que cada uma diz em relação aos direitos humanos. Dica: leve em conta o lugar em que aparecem os direitos em cada uma, e pergunte por que só a atual, a "Constituição cidadã" (nome que Ulisses Guimarães lhe deu), de 1988, coloca os direitos humanos no começo. Ela dá mais importância aos direitos do que as outras?

4- Escolha um filme que permita pensar a democracia. Por exemplo, "Terra em Transe" (1967), de Glauber Rocha, disponível nas melhores locadoras. Veja ali qual é o papel da democracia nas instituições (políticas etc.) e nos afetos (as relações pessoais e afetivas).

Comecei pela representação porque ela é a grande diferença entre a democracia antiga e a moderna. Houve um quase eclipse da democracia por mais de 2.000 anos, isto é, entre o fim da democracia ateniense e a recuperação dessa forma de governo com as revoluções americana (1776) e francesa (1789). Ora, as jovens repúblicas estadunidense e francesa representativas têm outra diferença da Antiguidade: elas proclamam uma declaração de direitos.

Esses direitos humanos são um traço essencial da democracia moderna. Englobam o direito à vida, a um julgamento honesto, à liberdade de escolha, à propriedade. Seu elenco só tem aumentado: em 2000, a Constituição brasileira foi emendada para incluir, entre os direitos humanos, o direito à moradia. Aliás, nossa Constituição proíbe qualquer emenda que suprima direitos humanos (artigo 60).

O importante, aqui, é que o poder do povo, hoje, não pode eliminar esses tipos de direitos que supõe-se que antecedem o próprio poder de Estado, isto é, que são superiores à própria política. É por isso que se fala em declaração de direitos: uma assembléia (como a da ONU, em 1948, autora da Declaração Universal) pode declarar que tais direitos existem, mas não pode criá-los, nem suprimi-los, porque eles são mais importantes do que ela própria. É como se eles fossem "naturais", palavra que vem do verbo "nascer" e que indica que nascemos com eles.

Isso deixa empatado o jogo entre democracia antiga e moderna. A democracia ateniense faz 1 a 0, porque a democracia direta é vista por muitos como superior à representativa (só que impossível em nossos tempos). Mas a democracia moderna marca um tento com os direitos humanos: Sócrates não teria sido condenado à morte numa sociedade democrática de nossos dias. Aristides não teria sido banido de Atenas.

Por isso, a democracia atual não consiste só em eleições. Ela também inclui todo um rol de direitos humanos, bem variados. Os primeiros direitos humanos, entre o século 17 e o 18, foram civis, isto é, associados a um cidadão que seria, também, proprietário. É o direito de ir e vir, o de manter a propriedade, o de só pagar impostos votados, o de assinar contratos, o de não viver atemorizado por um governo caprichoso e arbitrário.

Depois, entre o século 18 e o 19, crescem os direitos políticos. Os homens deixam de ser súditos ("sub"= sob, "dictus" = dito), isto é, subordinados ao que um rei manda, e passam a ser realmente cidadãos, isto é, sujeitos que decidem o que a cidade (= o Estado) vai fazer. Aqui estão o direito de voto, de expressão do pensamento, de organização política. Mais tarde, desde o século 19, aparecem os direitos sociais: o de livre organização sindical e as leis trabalhistas, garantindo condições de trabalho melhores. Esses, hoje, estão ameaçados.

Alguns falam em mais um tipo de direitos, que seriam difusos, porque nos três tipos anteriores sabemos muito bem, sempre, quem está sendo beneficiado (o proprietário, o eleitor, o trabalhador) —mas, quando se trata, por exemplo, do ambiente, de certa forma todos os seres, e até os não humanos, são beneficiados. Por exemplo, se proibimos a caça de certas espécies, de quem é esse direito? Nosso, dos humanos, ou dos próprios animais? Como nosso direito tem dificuldade em reconhecer um direito sem um titular, e esses titulares são sempre homens ou mulheres, a questão aqui é espinhosa.

A democracia ressurge, dizia, há pouco mais de 200 anos. Mas demora para se instalar como um regime respeitado. Na França, a Primeira República é a do Terror e da guilhotina. Só a partir de 1875 é que a República Francesa se consolida. E, em termos mundiais, a palavra democracia só se tornou positiva a partir da guerra contra Adolf Hitler (1889-1945). Desde então, quase ninguém se atreve a ser contra a democracia. O máximo que se faz é criticá-la em situações nas quais não seria, talvez, válida (veja a polêmica sobre eleição direta, ou não, dos reitores das universidades).

Lula Marques - 1º.jan.03/Folha Imagem
O presidente Lula e sua mulher, Marisa, em desfile no dia da posse

Isso mostra que a democracia se tornou, hoje, um valor. Embora as palavras democracia e política definam, tecnicamente, coisas diferentes —pode haver uma política conservadora, monarquista, fascista—, o fato é que a principal característica hoje atribuída à política (que nela os conflitos se resolvem com palavras, e não pela força) convém como uma luva à democracia.

Ela se tornou um valor. Ninguém se diz antidemocrata, nem os ditatoriais, que falam em democracia relativa (general Geisel, ditador do Brasil entre 1974 e 1979) ou popular (regimes comunistas). Mas aqui há que distinguir. Parte dos estudiosos da democracia, hoje, sobretudo na ciência política, entende a democracia como procedimento de resolução de conflitos. Esse procedimento é bastante eficaz porque nele a parte derrotada teve as mesmas chances da vitoriosa e por isso acata o resultado melhor do que se a decisão fosse de uma pessoa só. Mas isso não implica que seja esse método o melhor em si: é melhor devido ao resultado, que é o de manter o tecido social melhor do que no caso de decisões arbitrárias. Mas, assim, a democracia vale por seus efeitos, não por ser boa em si.

Outra idéia é que a democracia é um valor, e portanto, mesmo se não funciona bem, mesmo que seus resultados deixem a desejar, ainda vale a pena pagar o seu preço. Não pagamos pela beleza, quando compramos um objeto que desejamos? Por que não pagaríamos por um regime que torna o convívio humano justo ou melhor? É o que justifica a proposta de uma constante ampliação da democracia. Ampliá-la quer dizer que ela deixa de ser só um conjunto de instituições políticas para intervir também nas relações ditas da vida privada.

Enquanto em nosso mundo o aparelho de Estado se democratiza ou pode ser democratizado, há mais resistências à democratização da vida privada. Vida privada, aqui, quer dizer duas coisas. Primeiro, o conjunto de relações de trabalho, geralmente marcadas pelo domínio do capital (o patrão) sobre o trabalho (o empregado). Segundo, as relações afetivas —o casal, a família, a própria amizade.

À primeira vista, essas relações não são políticas e a democracia não caberia nelas. Mas são relações de poder, e isso implica que haja uma política do amor e uma da empresa. Além disso, vários teóricos acham que só pode haver democracia se houver uma cultura democrática. (Veja os três volumes de "Cultura e Democracia", publicados nos "Cadernos de Nosso Tempo", do Ministério da Cultura, número 5, 2001.) Quer dizer que a democracia, mesmo a institucional e representativa, só se consolida se ela for não uma escolha apenas racional das pessoas, mas uma escolha afetiva.

Significa fazer que a democracia entre nos sentimentos. Significa que, percebendo que em nosso país, pelo menos, são os políticos mais conservadores quem melhor manejam os afetos populares (ACM, Maluf), os progressistas passem a lutar para criar um amor pela igualdade e pela liberdade. Essa base para a democracia seria mais forte do que uma de base racional ou institucional. Seria essa uma cultura democrática, entendendo aqui cultura como o ambiente em que nos ancoramos não só consciente e racionalmente, mas afetivamente.

Renato Janine Ribeiro, 52, é professor de ética e filosofia política na USP, autor de "Democracia" (série "Folha Explica", Publifolha, 2001) e espera que seu filho Rafael, 2, viva num Brasil com valores democráticos mais densos do que os de hoje.

Para consultar:
"O Contrato Social", de Jean Jacques Rousseau, Martins Fontes, 186 págs., R$ 21,50
"A Política", de Aristóteles, Ediouro, 188 págs., R$ 12,90
"Dois Tratados sobre o Governo", John Locke, Martins Fontes, 640 págs., R$ 45
"Manifesto do Partido Comunista", de Karl Marx, Global, 112 págs., R$ 15
"Democracia Antiga e Moderna", de Moses Finley, Graal, 192 págs., esgotado
"Cidadania, Classe Social e Status", de T.H. Marshall, Jorge Zahar, esgotado

Leia mais:
- Conheça a Declaração Universal dos Direitos Humanos
- Conheça o artigo 5º da Constituição

Leia mais na seção 'Verbete':
- El Niño
- Células-tronco
- Doutrina Bush
- BC independente
- Oriente Médio
- Risco-país

     

Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).