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25/03/2003 - 02h54

Mulher & companhia

HELOÍSA HELVÉCIA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Outro Dia Internacional da Mulher, outro milhão de homenagens para aquela que "conquistou seu espaço" —o clichê preferido neste mês da efeméride, tão repetido quanto impreciso. Claro, a cada ano aumenta a presença feminina no mundo produtivo e diminui a desigualdade salarial entre eles e elas. Mas a transformação protagonizada pela mulher ainda não faz da empresa o "seu espaço".

Pedro Azevedo/Folha Imagem
Oriane White, Beatrice Gropp e Rosa Alegria, da Sociedade dos Saberes Femininos

Primeiro, porque é irrelevante, em termos estatísticos, a participação da mulher no primeiro escalão das companhias. Segundo, porque empresas foram inventadas por homens. São movidas a hierarquia, competição e agressividade, valores caros aos portadores de testosterona, embora não exclusivos deles. Nesse território, o comum é a mulher abrir mão da identidade e mimetizar o estilo masculino de subir.

Não foi esse o histórico sem paralelo de Maria Silvia Bastos Marques, 46, economista que fincou os escarpins no topo do mais viril dos mundos. O comando das 500 maiores empresas está nas mãos de 1.500 pessoas, entre as quais as gatas pingadas somam 60. Ela presidiu nada menos que a Companhia Siderúrgica Nacional —até que preferiu ir cuidar da prole.

"Sempre tirei partido de ser mulher. Uma de nossas fortalezas é a capacidade de realização valorizando as pessoas", diz a ex-dama do aço e atual consultora. Segundo Maria Silvia, vem ganhando importância aquele tipo de competência que faz acontecer sem causar impactos negativos na organização. "Os procedimentos estão em processo de mudança. As empresas valorizam atributos chamados femininos, embora não exclusivos de mulheres, como sensibilidade no trato com as pessoas, capacidade de lidar com vários assuntos ao mesmo tempo, tenacidade e trabalho em equipe. Em geral, a mulher usa 'nós' quando se refere ao trabalho, e o homem fala 'eu'", exemplifica.

Pedro Azevedo/Folha Imagem
Christina de Paula Leite, professora da FGV-Eaesp
Em geral, também, executivas exibem suas inseguranças, espontaneidade que tem um preço. A expressão dos sentimentos é vista como uma espécie de defeito de fabricação, raramente tolerada no universo dos negócios. "A mulher se deixa agredir emocionalmente, aí perde a postura profissional e chora. Isso ainda não é admitido", diz Christina de Paula Leite, 51, economista, professora da FGV-Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo). Mas, descontadas as lágrimas e a resistência das empresas médias familiares, as organizações estão absorvendo a diferença, na avaliação da professora.

Segundo a professora, autora do livro "Mulheres, Muito Além do Teto de Vidro" (Atlas, 1994), a mulher é o sujeito da grande mudança em curso na cultura empresarial: "A reengenharia reduziu os níveis hierárquicos a partir da ascensão delas. Mulher não precisa de tanta hierarquia", diz. Os avanços assistenciais voltados à qualidade de vida de funcionários também seriam resultado das hordas de mulheres nos postos de RH e um sinal de que a empresa começa a ser um espaço mais feminino. "Vejo as mulheres no caminho para ter mais acesso ao comando que os homens", afirma.

Não será tão simples, na avaliação do professor, consultor e administrador de empresas Julio Lobos, Ph.D em relações industriais pela Cornell University (EUA). "Os códigos empresariais são masculinos, o que prejudica a trajetória da mulher em vários sentidos."

Homens funcionam bem hierarquicamente, mulheres preferem trabalho em rede; executivos sacrificam relacionamentos se necessário, mas, para elas, o importante é se dar bem com as pessoas; o blefe faz parte do jogo, mas a mulher não o entende e o toma como mentira, traição. "Ela é forçada a aprender essas regras na porrada", diz Lobos, que pesquisou 521 executivas brasileiras e acaba de publicar os resultados no livro "Amélia, Adeus" (Editora Instituto da Qualidade, R$ 30). Algumas conclusões não são nada festivas, como essa, de que a executiva ainda não foi assimilada pelo meio empresarial brasileiro.

"Alguma coisa melhorou, mas não a ponto de mudar a condição da mulher. Não há ainda compreensão para a expressão e para os raciocínios femininos. Os homens continuam sendo socializados numa cultura que valoriza antigas normas de sobrevivência", afirma Lobos.

O momento, segundo ele, é de reacomodação. Saberes associados ao feminino já são identificados, no discurso, com o sucesso da empresa moderna e com as carreiras do futuro. Mas, se os empregadores quiserem mesmo aproveitar o potencial da mulher, terão de rever as raízes culturais da empresa, lugar em que gravidez e filho, por exemplo, ainda são obstáculos ao compromisso exigido de alguém na linha de comando.

Como essa evolução não se dará espontaneamente, explica Lobos, caberia agora às executivas acelerar a mudança, acrescentando à escalada individual um empurrão coletivo. No livro, o consultor assinala que "pressionar chefões" é uma questão política e escapa ao gênio técnico ou gerencial de uma única pessoa. "Depende, sim, da coesão, da malícia e do senso de oportunidade de muitas."

Senso de oportunidade não falta à SSF —Sociedade dos Saberes Femininos, criada por Beatrice Gropp, Oriana White e Rosa Alegria, profissionais que têm em comum anos de experiência, vivência acadêmica e trabalhos voltados para a mulher. No último dia 11, as três reuniram em São Paulo 30 especialistas, dando início à construção de uma rede transdisciplinar cujo objetivo é criar conhecimento para "valorizar a essência feminina no mundo dos negócios". Tarefa para homens e mulheres, bem entendido.

A disparidade de linguagens e o descompasso entre universo feminino e cultura empresarial são alguns dos alvos da SSF. Suas idealizadoras afirmam querer contribuir para a fixação de valores como intuição, inclusão, diálogo, amorosidade, criatividade, cooperação e flexibilidade.

Para essas especialistas, tanto o futuro das organizações como o bem-estar feminino dependem desses saberes e de um conhecimento mais profundo sobre a mulher. Não estão falando de cargos de presidente ou de berçários nas empresas. "Isso é só o acompanhamento básico do que já ocorre. Colocar mulher no comando, dentro da ótica masculina, não faz bem a ela nem é o que ela quer", diz a pesquisadora de tendências Rosa Alegria, 45. "A mulher é o vetor das mudanças neste século, quem não entendê-la e não colocá-la em seu plano estratégico fracassará", afirma ela, que, depois de dez anos como executiva de marketing em grandes empresas, se cansou do mundo corporativo e especializou-se em estudos do futuro na Universidade de Houston (EUA).

A Sociedade dos Saberes Femininos não visa ao lucro (cada fundadora tem sua própria empresa) nem tem dinâmica competitiva. A rede reúne profissionais que, num paradigma tradicional, seriam até concorrentes. Seu papel será coletar, organizar e interpretar informações sobre a mulher, disponibilizando projetos e pesquisas para empresas, governo e ONGs —campo em que a alta gestão é feminina em 82% dos casos.

A pretensão da nova sociedade é produzir estudos mais realistas sobre a mulher. Os que estão à disposição hoje, dizem as sócias, ou são acadêmicos e herméticos, ou são pesquisas de mercado superficiais. Pela metodologia do diálogo, elas esperam integrar conteúdos que vão da biologia à economia, da física a toda a área "psi" e ainda a expertise de mulheres rurais, estrategistas e líderes comunitárias e religiosas.

"Tanto pesquisas de massa como estudos de posicionamento de marcas só mostram estereótipos da mulher. Ou é a dona de casa, ou a profissional, ou a mãe, ou a mulher erotizada", diz Oriana White, 52, psicóloga ítalo-brasileira que trabalha com pesquisas de mercado. A nova sociedade, ela explica, quer dar coerência a esse mosaico, revelando a multiplicidade sincrônica de papéis femininos para além da consumidora de margarina. Ela aposta que uma correção nas imagens fragmentadas e distorcidas da mulher até ajudará as empresas a vender mais. "A mulher contemporânea cansou dessa estética masculina que acompanha o consumo. Ela decide 80% das compras de carros, mas os comerciais de automóveis não espelham isso. Quando as companhias mudarem seus anúncios, terão mais sucesso", afirma White, que tem mestrado em administração e marketing e é doutoranda em comunicação e cultura pela ECA-USP.

"Somos mergulhadoras de águas profundas; vamos trazer à tona o que já existe, mas está submerso. A subcultura, quando explicitada, vira cultura", afirma Beatrice Gropp, 49, educadora e antropóloga graduada em Paris. Para ela, é necessário ouvir a mulher. "Não adianta ter canal cliente-consumidor, serviços de 0800, essas coisas. Falo de algo mais envolvente. Percebo, nas pesquisas de campo, que a mulher está só, com necessidade de falar", diz Gropp, que também é consultora, especializada em emprestar seu olhar antropológico para a junção de culturas, em fusões e aquisições.

Para a SSF, o sexo feminino está puxando uma nova consciência humanizadora. Um sinal disso, segundo Gropp, são as pesquisas mundiais identificando um perfil de consumidor emergente, que faz escolhas éticas e se preocupa com a sustentabilidade do planeta. A tribo nova, apelidada de "criativos culturais", já representa 25% da população norte-americana e é formada por 60% de mulheres.

Rogério Albuquerque/Folha Imagem
Eneida Bini, presidente da Avon
As mulheres são a porção que está elevando a consciência ética dos negócios? A presidente da Avon, Eneida Bini, 41, tem dúvidas. Segundo ela, a sociedade em geral percebeu que a busca rápida e incessante de lucros distanciou o ser humano de seus valores básicos. "Cada vez mais executivos trabalham para resgatar valores como família, confiança e respeito, buscando resultados de uma forma mais saudável em termos de realização humana", diz. Reconhece, entretanto, uma contribuição "mais sensível" das mulheres ao debate.

Primeira mulher a assumir a presidência da Avon no Brasil, Eneida Bini sublinha que a empresa cosmética foi fundada por um homem. "Há 117 anos, o fundador estabeleceu os princípios e valores da Avon, que não mudaram, o que explica o sucesso da empresa em todos esses anos."

"A mulher ainda não foi suficientemente testada em posições de poder, para sabermos se é ou não mais ética", pondera o consultor Júlio Lobos. Na sua pesquisa com executivas, a maioria respondeu que não contrataria uma grávida (83%) e não apoiaria denúncias de assédio sexual, mesmo fundamentadas (63%). Dizer que a liderança feminina é mais justa parece tão comprovável quanto aquele lugar-comum segundo o qual a sociedade não teria guerras se estivesse sob as rédeas das mulheres. "É uma expectativa lírica, que vai contra a própria mulher. É agradável, mas é outro estereótipo", diz Lobos.

Também para Gladys Zrncevich, sócia da empresa de recrutamento Korn/Ferry, a mulher não é necessariamente mais cooperativa ou ética. "Ética é um valor do ser humano." A sexualização de características, adverte, gera mitos e traduz mais os anseios de mudança do que a realidade. "Todos sabem que as empresas precisam avançar em responsabilidade social e em relações mais éticas com funcionários e clientes. Mas essa é uma discussão mais de essência e menos de sexo."

Debater os jeitos feminino e masculino de liderar é debater "o sexo dos anjos", na opinião de Thomas Case, presidente do Grupo Catho, de colocação profissional. "O que há são métodos de gerenciamento: participativos, consultivos, autoritários. Se o profissional alcança resultados, pouco importa como os alcança ou o sexo. Conheço muita executiva do tipo 'mata-mata'."

Ninguém discorda de que o princípio masculino impera. O problema é a confusão entre sexos e arquétipos. "Todos temos os dois princípios e, no caso das organizações, incluir o feminino não significa atrair mais mulheres, e sim mais pessoas, indistintamente, que saibam ouvir, cooperar etc.", diz a especialista da Korn/Ferry. Ela vê um início de resgate da essência feminina, mas a reflexão está sendo atropelada pela crise: "Hoje, as preocupações são custo, resultado, sobrevivência. Agora a preponderância é do masculino e precisa ser assim. Se, neste momento de panela vazia, eu tiver de optar entre alguém cooperativo e um mais competitivo, vou escolher o último, que vai encher minha panela."

Para Gladys Zrncevich, que é psicóloga de formação, com mestrado em administração de empresas, a atrofia do princípio feminino gera problemas organizacionais como desmotivação, sabotagens e ambiente de trabalho ruim. "Como dizia Jung, a feminilidade ultrajada dá o seu retorno".

A sócia da Korn/Ferry lembra que toda a sociedade ganharia se os seres humanos equalizassem suas partes feminina e masculina. Nesse cenário ideal, a mulher saberia competir sem imitar ninguém. "Cansei de ver executivo fazendo fofoca e invadindo o espaço psicológico de funcionários e chefes mulheres agressivas demais. O que há hoje é a caricatura dos dois lados. Estamos num 'turning point', não se sabe como o arquétipo masculino vai ser expresso na mulher e o feminino no homem. Mas é o que falta. O futuro não é a feminilização, mas o equilíbrio", diz.

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