Folha Online sinapse  
25/03/2003 - 03h02

A ótica do paciente

IVAN MIZIARA
especial para a Folha de S.Paulo

Philippe Meyer, a certa altura de "A Irresponsabilidade Médica", adiciona um argumento interessante para explicar a falta de humanidade na relação médico-paciente.

Para o autor, a relação dos médicos com a literatura sempre foi uma boa forma de entrar em contato com as agruras do doente. Porém, a introdução da matemática e das ciências exatas na evolução da medicina quebrou, de alguma forma, esse vínculo.

Meyer afirma que "os escritores descrevem os sofrimentos humanos, o que ajuda os médicos em sua tarefa, e a experiência médica é de grande auxílio para compreender a humanidade".

É uma hipótese com ótimos fundamentos. Um bom exemplo é "A Vida e a Obra de Semmelweis" (Companhia das Letras, 147 págs., R$ 24), tese de graduação em medicina de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), em que o grande escritor francês narra as desventuras do médico húngaro Ignaz Semmelweis (1818-1865), inventor da anti-sepsia.

O autor, em estilo preciso e acessível, descreve como Semmelweis conseguiu diminuir a mortalidade puerperal entre as gestantes, tão-somente exigindo de seus colegas que lavassem as mãos antes de entrar na sala de parto, sendo, por isso, considerado louco.

Sobressai, no livro, a maneira de Céline tecer uma feroz crítica à arrogância, à inveja, ao despeito e, em última instância, ao desprezo pelos pacientes, que movem certa parcela da classe médica. Por incrível que pareça, suas idéias continuam atualíssimas.

Em uma das novelas mais perfeitas da história da literatura, "A Morte de Ivan Ilitch" (L&PM, 109 págs., R$ 8,50), em que o russo Liev Tolstói (1828-1910) narra a agonia de um burocrata desenganado em busca de diagnóstico para sua doença. O autor consegue a proeza de resumir em poucas linhas o descompasso que existe entre as expectativas do doente e os objetivos do médico.

Enquanto Ilitch, a certa altura da doença, somente deseja saber se seu quadro é grave, ao médico esse detalhe é desimportante —está mais interessado em saber se o problema do doente se localiza no apêndice ou nos rins.

É impossível, para qualquer um que tenha tido alguma doença mais ou menos séria, não se enxergar na situação de Ivan Ilitch.

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