Folha Online sinapse  
25/03/2003 - 03h00

Leia introdução de "Complicações"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo a introduçãodo livro "Complicações - Dilemas de um Cirurgião diante de uma Ciência Imperfeita" (Objetiva, 293 págs., R$ 36,90), de Atul Gawande. O livro é um dos indicados por Ivan Miziara na seção Leituras Cruzadas de março de 2003, que trata da relação médico-paciente.

Introdução

Certa ocasião, eu estava de plantão no setor de traumatologia quando foi trazido um rapaz, de cerca de 20 anos, que havia levado um tiro na nádega. Seu pulso, pressão sangüínea e respiração estavam todos normais. Um assistente clínico cortou-lhe as roupas com uma grande tesoura e eu o examinei da cabeça aos pés, tentando fazê-lo de maneira rápida e sistemática. Descobri o ponto de entrada do ferimento na nádega direita, um orifício de penetração limpo, vermelho, de cerca de um centímetro e vinte. Não encontrei orifício de saída. Não havia outros ferimentos visíveis.

O rapaz estava consciente, alerta e assustado, demonstrava mais medo de nós do que da bala.

— Estou bem — repetia. — Estou bem. — Mas, ao fazer o exame retal, meu dedo enluvado saiu coberto de sangue fresco. E quando inseri um cateter urinário no rapaz, o líquido que saiu de sua bexiga também tinha o vermelho vivo de sangue.

A conclusão era óbvia. O sangue significava que a bala havia penetrado seus órgãos internos, perfurando tanto o reto quanto a bexiga, expliquei a ele. De modo que veias e artérias importantes, os rins e outras partes do intestino também poderiam ter sido atingidos. Ele precisava de uma cirurgia, disse-lhe, e tínhamos que fazê-la imediatamente. O rapaz viu a expressão em meus olhos, as enfermeiras que já o preparavam para ser levado dali e assentiu, quase que involuntariamente, entregando-se às nossas mãos. Então as rodas da maca puseram-se em movimento, as bolsas intravenosas balançando, pessoas abriram portas para que passássemos. Na sala de operação, o anestesista fez seu trabalho. Fizemos uma incisão rápida e profunda descendo pelo meio de seu abdômen, das costelas até o púbis. Posicionamos vários retratores para afastar as bordas e abrir o campo da incisão. E o que encontramos lá dentro foi... nada.

Não havia sangue. Nenhum buraco de perfuração na bexiga. Nenhum buraco no reto. Nenhuma bala. Examinamos a urina saindo pelo cateter sob o campo estéril. Agora estava normal, amarela clara e limpa. Não tinha mais nem um traço de sangue. Mandamos trazer uma máquina de raios X para a sala de operação e fizemos radiografias do pélvis, do abdômen e também da caixa torácica. Nenhuma delas acusou a presença de uma bala em lugar algum. Tudo isso era no mínimo estranho. Depois de quase uma hora de mais buscas infrutíferas, contudo, parecia que não tínhamos mais nada a fazer por ele, exceto tratar de dar os pontos e fechar o corte. Uns dois dias depois fizemos mais uma radiografia abdominal. Esta revelou uma bala alojada no interior do quadrante superior de seu abdômen. Não tínhamos nenhuma explicação para nada disso — como uma bala de chumbo de um centímetro e vinte tinha conseguido ir da nádega para a parte superior da barriga sem causar nenhuma lesão, por que a bala não havia aparecido nas chapas de raios X anteriores, nem de onde o sangue que havíamos visto tinha vindo. Contudo, como já tínhamos feito mais estragos do que a bala causara, finalmente decidimos deixar a bala e o rapaz em paz. Nós o mantivemos no hospital por mais uma semana. Exceto pelo corte cirúrgico que havíamos feito, ele ficou bem.

A medicina é, conforme descobri, um negócio estranho e de várias maneiras perturbador. Os riscos são altos, as liberdades que são tomadas tremendas. Nós drogamos pessoas, enfiamos agulhas e tubos nelas, manipulamos a química, a biologia e a física para deixá-las inconscientes e abrimos seu corpo para o mundo. Nós o fazemos com uma confiança permanente em nosso conhecimento profissional. O que você encontra quando entra e chega bem perto — perto o bastante para ver os cenhos franzidos, as dúvidas e os passos errados, os fracassos assim como os sucessos — são exatamente os limites em que a medicina se revela desorincerta e também surpreendente.

O que ainda me espanta é como é, fundamentalmente, um esforço de empreendimento humano. Geralmente, quando pensamos em medicina e em suas notáveis capacidades, o que vem à mente é a ciência e tudo o que ela nos deu para lutar contra a doença e o sofrimento: os exames, as máquinas, os remédios e drogas, os procedimentos. E, sem dúvida, esses estão no centro de virtualmente tudo o que a medicina consegue realizar. Mas, raramente, vemos como tudo de fato funciona. Você tem uma tosse que simplesmente não passa — e então? Não é à ciência que você recorre e sim a um médico. Um médico com dias bons e dias ruins. Um médico com uma gargalhada estranha e um péssimo corte de cabelo. Um médico com três outros pacientes que ainda precisa examinar e, inevitavelmente, lacunas nos conhecimentos que ele possui e na experiência que ainda está tentando adquirir.

Recentemente, um menino foi conduzido de helicóptero para umhospitais onde trabalho como residente. Lee Tran — o nome que lhe daremos — era um garoto pequeno, de cabelos espetados, mal saído do primeiro grau. Ele sempre havia sido saudável. Mas, durante a semana anterior, sua mãe percebera que estava com uma tosse seca persistente e que parecia menos animado do que de costume. Durante os últimos dois dias quase não tinha comido. A mãe achou que provavelmente era uma gripe. Naquela noite, contudo, ele viera procurá-la muito pálido, trêmulo e com a respiração arquejante, repentinamente incapaz de recuperar o fôlego. Em um pronto-socorro local, os médicos lhe deram tratamentos respiratórios de nebulização acreditando que o menino estivesse tendo uma crise de asma. Mas então uma chapa de raios X revelou que uma imensa massa enchia-lhe a metade da caixa torácica. Fizeram uma tomografia computadorizada para ter uma imagem mais detalhada. Nitidamente, em preto e branco, ela mostrou que a massa era um tumor denso, quase do tamanho de uma bola de futebol, envolvendo os vasos sangüíneos de seu coração, empurrando o próprio coração para um lado e comprimindo as vias respiratórias de ambos os pulmões. O tumor já havia esmagado totalmente o brônquio direito e, sem entrada de ar ou conteúdo aéreo, o pulmão direito havia entrado em colapso transformando-se numa espiga cinzenta na tomografia. Em seu lugar, um mar de fluidos do tumor ocupava o lado direito da caixa torácica. Lee estava vivendo inteiramente por conta do pulmão esquerdo e o tumor também estava comprimindo este canal respiratório. O hospital comunitário onde ele estava não possuía recursos para lidar com isso. De modo que os médicos o encaminharam para nosso hospital. Nós tínhamos os especialistas e o equipamento de alta tecnologia. Mas isso não significava que tivéssemos certeza quanto ao que fazer.

Quando Lee chegou à nossa unidade de tratamento intensivo, sua respiração era um estridor murmurante, de som fino e agudo. Podia-se ouvi-la a uma distância de três leitos. A literatura científica é inequívoca soesta situação: é mortalmente perigosa. O simples fato de deitá-lo podia fazer com que o tumor comprimisse e bloqueasse o que lhe restava de canal de passagem de ar. Dar-lhe sedativos ou anestésicos poderia fazer o mesmo. Uma cirurgia para remover o tumor era impossível. Conhavia registros de casos em que o uso de quimioterapia conseguira reduzir o tamanho de tumores como aquele numa questão de dias. O problema era como dar tempo àquela criança para descobrir se o seu era um desses casos. Não era possível afirmar que ele sobreviveria àquela

Tínhamos duas enfermeiras, uma anestesiologista, um cirurgião pediátrico júnior e três residentes acompanhando o caso, eu entre eles. O cirurgião pediátrico sênior estava no telefone celular, no carro, vindo de casa para o hospital, um oncologista também havia sido chamado com urgência. Uma enfermeira apoiou Lee em travesseiros para se assegurar de que ele se mantivesse sentado tão ereto quanto fosse possível. A outra pôs uma máscara de oxigênio no rosto dele e ligou os monitores para acompanhar seus sinais vitais. Os olhos do menino estavam arregalados e preocupados e sua respiração estava duas vezes mais acelerada do que deveria. Sua família ainda estava longe, pois tivera que viajar por terra. Mas ele se manteve calmo e corajoso, como crianças costumam fazer com mais freqüência do que se imagina.

Meu primeiro instinto foi de que a anestesiologista deveria inserir um tubo rígido de respiração no canal respiratório do menino para mantê-lo aberto, antes que o tumor o fechasse. Mas a anestesiologista achava que isso era loucura. Ela teria que inserir o tubo sem uma boa sedação e, para completar, com o menino sentado. Além disso, o tumor se estendia por quase todo o canal respiratório. Ela não estava convencida de que fosse conseguir fazer com que o tubo passasse além dele com a facilidade necessária.

O assistente de cirurgia propunha uma outra idéia: se puséssemos um cateter no lado direito da caixa torácica do menino e drenássemos o fluido que a enchia, o tumor se inclinaria, afastando-se do pulmão esquerdo. Por telefone, entretanto, o cirurgião sênior manifestou sua preoção de que isto pudesse piorar a situação. Depois que se desestabiliza um pedregulho, pode-se honestamente afirmar para que lado ele vai rolar? Contudo, ninguém conseguiu apresentar quaisquer opções melhores. De modo que, finalmente, ele disse que fôssemos em frente.

Expliquei a Lee o que iríamos fazer da maneira mais simples que me foi possível. Duvido que ele tenha entendido. Talvez tenha sido bom que não entendesse. Depois que reunimos todo o material de que precisaríamos, dois de nós seguraram Lee bem firme, um outro injetou um anestésico local entre suas costelas, então fez uma pequena incisão com um bisturi e introduziu um cateter de borracha de 45 centímetros. O fluido sanguinolento jorrou do tubo em litros e, por um momento, temi que tivéssemos cometido algum terrível erro. Mas, afinal, revelou-se que tínhamos feito melhor do que poderíamos ter esperado. O tumor moveu-se para a direita e, de alguma forma, as vias respiratórias para ambos os pulmões se abriram. Imediatamente a respiração de Lee tornou-se mais fácil e silenciosa. Depois de observá-lo durante alguns minutos, a nossa também.

Só mais tarde fui me perguntar sobre nossa escolha. Tinha sido pouco mais que um palpite sobre o que fazer — um tiro no escuro quase que literalmente. Não tínhamos um plano de contingência ao qual recorrer caso tivesse ocorrido um desastre. E, depois, quando pesquisei relatos de casos semelhantes na biblioteca, descobri que, de fato, existiam outras opções. A coisa mais segura, aparentemente, teria sido pôr o menino numa bomba para derivação cardiopulmonar, do tipo que é utilizada em cirurde coração, ou pelo menos ter uma pronta para ser usada. Ao conversar com meus colegas a respeito disso, entretanto, descobri que ninguém se arrependia de nada. Lee sobreviveu. Aquilo era o que importava. E agora a quimioterapia estava em progresso. Os testes do fluido retirado revelaram que o tumor era um linfoma. O oncologista me disse que isso dava a Lee uma probabilidade de mais de 70 por cento de cura total.

Esses são os momentos em que a medicina realmente acontece. E é a esses momentos que o presente livro se dedica — os momentos em que podemos ver e começar a pensar sobre o funcionamento das coisas como elas são. Desejamos que a medicina seja um campo de conhecimento e de procedimentos ordenados. Mas não é. É uma ciência imperfeita, um empreendimento de conhecimentos em estado de mutação constante, de informações incertas, de indivíduos falíveis e, ao mesmo tempo, de vidas em risco. Sim, há ciência no que fazemos, mas também há hábito, intuição e por vezes, pura e simplesmente, adivinhação, palpite. A distância entre o que sabemos e o que temos como meta persiste. E esta distância complica tudo o que fazemos.

Sou médico cirurgião residente, muito próximo de chegar ao fim de meus oito anos de especialização em cirurgia, e este livro é fruto da intensidade dessa experiência. Em outros tempos fui cientista de laboratório, pesquisador de saúde pública, estudante de filosofia e ética, e conselheiro de programas de saúde do governo. Também sou filho de um casal de médicos, sou casado e sou pai. Tentei unir todas essas perspectivas no que escrevi aqui. Porém, mais que qualquer coisa, este livro vem do que encontrei e presenciei no dia-a-dia de tratar de pessoas. Um residente tem uma vantagem distinta no que diz respeito à medicina. Você é um observador privilegiado, vendo tudo e participando de tudo; contudo, ao mesmo tempo, você vê tudo sob uma nova perspectiva.

De alguma forma, pode ser que seja da natureza da própria cirurgia querer lutar corpo a corpo com as incertezas e os dilemas da medicina. A cirurgia tornou-se uma prática tão sofisticada de alta tecnoquanto se pode encontrar em medicina, mas os melhores médicos cirurgiões conservam um profundo reconhecimento das limitações tanto da ciência quanto da destreza e do talento humanos. Apesar disso, eles têm que agir de maneira decisiva.

O título do livro, Complicações, não se origina apenas das reviravoltas inesperadas que podem ocorrer em medicina, mas também, e mais fundamentalmente, de minha preocupação com os dilemas subjacentes à nossa atividade. Esta é a medicina que não se pode encontrar explicada em livros de estudo, mas que me intrigou, por vezes me perturbou, outras vezes me surpreendeu, desde que me alistei nas fileiras desta profissão. Dividi o livro em três partes. A primeira examina a falibilidade dos médicos, perguntando, entre outras coisas, como acontecem os erros, como um novato aprende a usar a faca, o bem que um médico pode fazer, como é possível que um médico faça mal. A segunda se concentra nos mistérios e ignorância da medicina, e nos esforços com relação ao que fazer quanto a eles: aí está a história de um arquiteto com uma dor incapacitante nas costas para a qual nenhuma explicação física pôde ser encontrada, de uma jovem com uma náusea terrível que não passava, de uma apresentadora de televisão cujos rubores repentinos se tornaram tão inexplicavelmente intensos que ela ficou impedida de trabalhar em sua função. E a terceira e última parte se concentra na própria incerteza, pois o que parece mais vital e interessante não é quanto nós profissionais de medicina sabemos, mas quanto não sabemos — e como poderíamos nos confrontar com essa ignorância de maneira mais sábia.

De maneira geral, procurei mostrar não só as idéias, mas também as pessoas envolvidas no todo — os pacientes e os médicos na mesma medida. Em última instância, é a medicina prática de todo dia a que mais me interessa — o que acontece quando as simplicidades de uma ciência se defrontam com as complexidades de vidas individuais. Por mais disseminada que a medicina tenha se tornado na vida moderna, permanece em grande parte oculta e freqüenmal entendida. Nós passamos a vê-la ao mesmo tempo como mais perfeita do que é e menos extraordinária do que pode ser.

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