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29/04/2003 - 03h02

Ex-alunos não aprenderam a doar

BETH CALÓ
GUILHERME CALDERAZZO

free-lance para a Folha de S.Paulo

Uma recente doação pública do médico brasileiro Antônio Maniglia, 65, mereceu algum destaque na imprensa. Em março, ele entregou o equivalente a US$ 85 mil à Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto (SP), pela qual se formou em 1962. A iniciativa de Maniglia foi parar nos jornais por ser incomum. Gesto similar de um colega nos Estados Unidos —onde ele fez pós-graduação e seguiu carreira— não seria notícia, provavelmente. Lá, doações são frequentes.

Felix Reiners

A decisão de Maniglia —que ajudará a criar um laboratório de virologia, para estudar e combater a dengue— tem origem no reconhecimento de que ele deve sua oportunidade à escola pública e gratuita em que estudou. "Saí da pobreza e entrei na riqueza com a ajuda dos impostos pagos por todos", afirma o primeiro dos cinco filhos de um pedreiro e de uma dona-de-casa. E recomenda: "Devemos devolver à sociedade o que ela nos deu".

No caso do ensino superior, o que a sociedade dá não é pouco. Segundo a Unesco (a agência da ONU que se ocupa da educação), uma instituição pública de ensino superior gasta, em média, no mundo, US$ 10 mil por ano com cada aluno.

A atitude de Maniglia é rara, mas não é única. No ano passado, o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, foi favorecido por uma doação de US$ 4,3 milhões do ex-aluno e banqueiro Aloysio de Faria. A doação foi canalizada para o setor de gastroenterologia do hospital. "O centro, hoje, é considerado o mais moderno da América Latina em gastroenterologia", comemora a professora Cecília Nogueira, diretora de coordenação institucional da UFMG e coordenadora do Sempre, programa criado em 2000 para receber contribuições dos ex-alunos.

Doadores em potencial, os ex-alunos não costumam manter vínculos com as universidades. "Na USP, das 36 unidades de ensino, apenas nove contam com associações", diz Adolpho José Melfi, reitor da universidade. Dessas, algumas estão em fase de organização, como a da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Outras têm tradição.

Olavo Setúbal, que faz doações mensais à Associação dos Engenheiros Politécnicos
É o caso da Associação dos Engenheiros Politécnicos, da Escola Politécnica, fundada em 1936. "Temos 22 mil ex-alunos cadastrados. Enviamos quase 15 mil boletos de contribuição anual —no valor total de R$ 160. Mas recebemos contribuição de apenas 2.000 ex-alunos", conta Kamal Mattar, 74, presidente da associação. Segundo ele, o grande padrinho da entidade é o presidente do conselho de administração do Banco Itaú, Olavo Setúbal, formado em engenharia civil pela Politécnica, que doa dez salários mínimos por mês à instituição. Com as contribuições, a associação se mantém e distribui cem bolsas de estudo, no valor de R$ 200 por mês, para alguns dos alunos mais pobres dos cursos de engenharia.

A Escola de Agronomia Luiz de Queiroz, da USP de Piracicaba, também tem histórias para contar. O ex-aluno Alexandre Pritzelwutz deixou em testamento para a Feal(Fundação de Estudos Agronômicos Luiz de Queiroz) uma fazenda avaliada em US$ 16 milhões. Em 2000, a Fealassumiu o controle da propriedade. "A fazenda é de gado de corte. Criamos e vendemos gado e temos no local um centro de estudos, como era a vontade do Alexandre", diz o professor Antonio Roque Dechen, presidente da Fealq.

Fernando Penteado Cardoso, que doou US$ 3 milhões à Fealq
Em 2001, Fernando Penteado Cardoso, 87, outro ex-aluno da Luiz de Queiroz, formado em 1936, doou para a Feal US$ 3,3 milhões. O dinheiro é administrado pela Fundação Agrisus, da família de Cardoso. "Fiz a contribuição para que minha área de atuação, a agricultura, continue a evoluir", diz Cardoso, fundador e, durante 50 anos, presidente da Manah, empresa de adubos e fertilizantes, hoje pertencente ao grupo Bunge. A Fealavalia os projetos de estudo e atividades relacionadas à agricultura, e a Agrisus os financia.

Essas são as exceções. A regra é não doar. Estudiosos recorrem a raízes históricas para explicar o comportamento. "Creio que a nossa tradição estatista e patrimonial, herdada dos colonizadores portugueses, desestimula e afeta negativamente o espírito de filantropia", diz o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho. Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de vários livros, entre eles "Cidadania no Brasil", Carvalho avalia que no Brasil ainda prevalece a idéia de que o Estado deve resolver os problemas coletivos, e aos cidadãos cabe o pagamento de impostos. "Em nosso país, a ação pública é reduzida à ação estatal", diz.

O entendimento precário do conceito de cidadania também provocou, na avaliação de outros estudiosos do Brasil, uma desconfiança nas instituições, inclusive no próprio Estado, dificultando a formação da cultura doadora. Inclui-se nesse círculo de pensadores o historiador inglês Kenneth Maxwell, hoje diretor do Programa para a América Latina do Conselho de Relações Exteriores de Nova York e autor de vários estudos publicados em livros sobre o Brasil. "Vejo que a cultura da doação não se consolida no Brasil por falta de confiança nas instituições. As pessoas que fazem doações querem ver resultados e têm pavor de qualquer desonestidade, particularmente com a que envolve sua doação voluntária", diz Maxwell.

Quando o assunto é filantropia relacionada a instituições de ensino e cultura, professores, estudiosos e profissionais ligados a entidades culturais são unânimes ao destacar o exemplo dos Estados Unidos, país onde a prática da doação de bens pessoais e dinheiro para escolas e museus, sejam públicos ou privados, é comum e bem difundida.

Nos EUA, as universidades, sejam públicas ou privadas, sobrevivem graças às doações de pessoas físicas, principalmente ex-alunos, de fundações, dos investimentos e das rendas do patrimônio. Em 2002, segundo dados da publicação "US News and World Report" e das principais universidades particulares norte-americanas, mais de 30% dos orçamentos foram cobertos por recursos que vieram das doações de pessoas físicas.

Em 2000, 130 universidades dos EUA, públicas e privadas, receberam US$ 14,3 bilhões em doações. Lá, a ação filantrópica é movida pela mentalidade de que é importante contribuir com bens pessoais para promover o bem coletivo, num claro desdobramento da ética religiosa protestante da sociedade americana.

O espírito cívico tende a ser mais forte nos ambientes em que há estímulos de outra natureza. Dirigentes de instituições de ensino avaliam que uma mudança na lei tributária poderia incentivar a formação da cultura doadora no Brasil. Hoje, o doador de recursos pessoais para instituições públicas não tem direito a descontos no Imposto de Renda (a não ser que faça doação para projetos específicos; nesse caso, a dedução é de 6%).

Para Paulo Renato Souza, ex-reitor da Unicamp e ex-ministro da Educação, "poderia ser criado um mecanismo que garantisse alguma vantagem fiscal, por exemplo, uma alíquota de dedução de 50%, para estimular as doações". Na avaliação do advogado tributarista Douglas Yamashita, as pessoas físicas fazem doações por altruísmo, "porque essa atitude não lhes traz vantagem material alguma".

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