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24/06/2003 - 03h09

O teatro brasileiro em dez atos

SERGIO SALVIA COELHO
Crítico da Folha de S.Paulo

Vá ao teatro, mas não se deixe enganar. Não vale a pena atravessar a cidade por um ator que você só conhece pela televisão: a técnica do teatro é outra, pede outra dedicação. Desconfie também de grandes outdoors nos quais o nome maior é o do patrocinador e de anúncios que dizem: "Finalmente no Brasil...". A referência do teatro deve ser o próprio teatro. Por isso, comece procurando o teatro do seu bairro. Se não houver teatro, reclame à administração regional seu direito de cidadão. Se houver, mas você não gostar do que vir, reclame com o diretor, porque é a você que ele deve o serviço. Mas não esqueça, também, de dizer quando gostou.

Em São Paulo, se você estiver entusiasmado a ponto de enfrentar filas, compras antecipadas e um deslocamento maior, aí vão algumas dicas: o investimento mais constante em teatro nos últimos anos foi por parte do Sesc, que patrocina a importante pesquisa do diretor Antunes Filho e mantém uma programação, em geral, excelente, sobretudo na unidade do Belenzinho. O Sesi, com seu teatro gratuito na avenida Paulista, tem uma política cultural igualmente séria, apesar de deixar passar alguns blefes de vez em quando. Os teatros públicos têm sido confiados, nos últimos tempos, à administração de companhias que já deram provas de competência: vá sem medo ao teatro Arthur Azevedo, sob a administração do grupo Tapa, por exemplo.

José Celso Martinez Corrêa
Logo você perceberá que cada teatro tem sua "cara": no Oficina, você é acolhido como se fosse mais um ator do espetáculo, pela contagiante companhia de José Celso Martinez Corrêa; no teatro Eugênio Kusnet, antigo Arena, um espetáculo despojado costuma inovar conceitos (atualmente, a Companhia do Feijão honra o palco que leva o nome de mestre Kusnet, introdutor de Stanislávski no Brasil). Graças à Lei do Fomento Teatral, que subsidia processos, e não resultados, espaços assim têm se multiplicado: nos espetáculos da Casa nº 1, do Teatro da Vertigem, a exemplo da estética de Antonio Araújo, não há separação entre palco e platéia; o espaço do Cemitério dos Automóveis, Mario Bortolloto, underground puro sangue, promove o depoimento da última geração.

Parlapatões, Patifes e Paspalhões
Escolheu sua turma? Participe, então, da programação do teatro, além dos espetáculos. O Ágora promove debates, cursos e leituras em torno da nova dramaturgia; o Sesc Consolação promove encontros entre criadores e público, mensalmente, no "Reflexos de Cenas". Além disso, se você já tem um grupo de estimação, verifique se ele tem um site. O dos Parlapatões, Patifes e Paspalhões (www.uol.com.br/parlapatoes) é dos mais bem organizados. Muitos grupos também publicam jornais e revistas: um dos mais abrangentes é o "Folhetim", publicação do grupo carioca Teatro do Pequeno Gesto. Não se esqueça, porém, de que, para alguns jornais ligados a grupos, é grande a tentação de rasgar seda para os amigos e descer o sarrafo nos "inimigos": os críticos.

Está com uma opinião formada? Compare-a à dos críticos. O procedimento mais democrático é entrar em sites como o Tramédia (www.tramedia.com.br) e o Teatrochik (http://teatrochik.terra.com.br) e ter acesso simultâneo a várias críticas sobre a mesma peça —com a vantagem de também poder deixar registrada a sua. Fora do virtual, procure nas bancas revistas como a "Sala Preta", ligada à Escola de Comunicações e Artes da USP.

Festival de Teatro de Curitiba
É hora de ampliar seus horizontes: tente ir aos festivais de teatro conhecer novos grupos. O mais representativo em tamanho é o Festival de Teatro de Curitiba, que acontece em março, uma vitrine do que se tem produzido no Brasil (sobretudo no Fringe, festival paralelo informal no qual qualquer grupo pode se inscrever para ter direito a um lugar ao sol). Menos mercadológico é o Festival de São José do Rio Preto, em julho, que se profissionalizou e se internacionalizou há pouco tempo e ainda mantém sua tradição de confraternização entre os grupos. Muitos espetáculos importantes, como "Hysteria", do Grupo 19, de São Paulo, ou as produções do Grupo Galpão, de Belo Horizonte, estréiam nesses festivais, sem deixar de mencionar os igualmente importantes festivais do Rio de Janeiro e de Londrina, Porto Alegre, Recife, Blumenau e Belo Horizonte.

Cena de "Ricardo 3º - Um Ensaio"
Não tem tempo ou dinheiro para festivais? A locadora de vídeo pode dar um jeito. O trabalho de Peter Brook, fonte de inspiração para muitos encenadores importantes no Brasil, pode ser conferido no filme "O Mahabaratha". Além do mais, adaptações de peças de um autor essencial, como Shakespeare, podem ser encontradas às dezenas: é fácil comparar versões dirigidas por Laurence Olivier, Kenneth Branagh ou Akira Kurosawa. Meu Shakespeare preferido em cinema? O "Ricardo 3º - Um Ensaio" (1996), de Al Pacino, uma aula completa.

Décio de Almeida Prado
Você está pronto para virar um intelectual do teatro. Não é tão difícil como querem fazer crer. Apaixone-se por um tema em estética e procure-o nas coleções "Debates" e "Estudos", da editora Perspectiva, que publica autores fundamentais, como Décio de Almeida Prado, Anatol Rosenfeld e Sábato Magaldi. A editora Hucitec tem também um importante catálogo em teatro, dirigido por Fernando Peixoto, um dos criadores do Teatro de Arena. Experimente comprar uma peça, sem perder de vista que o texto é uma matéria-prima do espetáculo. Prefira, portanto, edições em que a peça é acompanhada de estudos, como "Marta, a Árvore e o Relógio", ciclo completo das peças de Jorge Andrade, da Perspectiva (656 págs, R$ 33), além das coleções "Dramaturgos do Brasil", organizada por José Roberto Faria para a Martins Fontes, e "Antologia do Teatro Brasileiro", dois volumes organizados por Flávio Aguiar para a Editora Senac.

Assuma: é hora de passar para o outro lado. Faça um curso de ator. Para entrar na profissão, não tem idade nem tipo físico necessários: basta a paixão, e a vocação para se pôr sempre em questão. Não importa também que você não queira seguir carreira, as melhores escolas sabem que o teatro serve também para aprimorar o ser humano. Além das já citadas EAD (Escola de Arte Dramática) e do CAC-ECA (Departamento de Teatro da USP), há o recém-criado curso de teatro da Faculdade Anhembi-Morumbi e o curso ligado à Unicamp, além dos da Escola Livre de Teatro de Santo André e do prestigioso Teatro Escola Célia Helena. Em geral, há um exame de seleção, com provas específicas teóricas e práticas. Informe-se e não se deixe intimidar. Você veio de longe nesse caminho.

Pronto. Agora experimente subir no palco, mesmo que seja só para melhorar sua percepção na platéia. Está preparado para se expor ao ridículo e fingir que é dor a dor que sente? Mesmo sabendo que são raras e rápidas as chances de fama e fortuna? Não? Não se preocupe: ninguém está totalmente pronto, no fundo. O importante é apresentar o seu desejo secreto ao desejo coletivo do respeitável público. É esse o sacerdócio do teatro, é desse casamento que vive nossa profissão. Bem-vindo à barca de Dionísio, que, apesar dos furos, continua indo.

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