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24/06/2003 - 03h10

Caminho das Pedras: A cena brasileira

SERGIO SALVIA COELHO
Crítico da Folha de S.Paulo

Teatro é um mistério. Muita gente paga para fazer, outros assistem sem ter vontade e, no difícil equilíbrio entre ser um vício ou uma obrigação, ele se mantém vivo em meio aos constantes anúncios de sua morte. Nascido no século 5º antes de Cristo, em Atenas, como um instrumento da recém-inventada democracia, já que sua função era o questionamento público das regras da cidade, sobrevive a constantes crises e ao desamparo de uma política cultural para se reinventar a cada dia. Coisas de seu patrono Dionísio, o deus grego que nasceu duas vezes.

Lenise Pinheiro - 5.nov.2001/Folha Imagem

No Brasil, sempre foi uma presença viva, como mostra a carta de Pero Vaz de Caminha: foi pelo espetáculo que portugueses e nativos entraram em contato, dançando e trocando missas por banquetes canibais.

Quando a família real se mudou para o Rio, no século 19, foram criados teatros, para organizar a diversão anárquica das tavernas, e "casas de ópera", mas, contra a vinda maciça de atores portugueses, logo se insurgiu o primeiro ator-empresário brasileiro, João Caetano (1808-1863), que deu um golpe no monopólio português ao importar a nova técnica francesa: o teatro romântico. Fez triunfarem o melodrama e a comédia de costumes —como a de Martins Pena (1815-1848), o Molière brasileiro—, mas não conseguiu montar uma escola nem sensibilizar o governo para um subsídio consistente ao teatro.

Os portugueses retomaram a primazia, na virada para o século 20, adaptando para a cor local o Teatro de Revista, que haviam aprendido com os franceses. Mas moderno mesmo o Brasil só foi a partir de "Vestido de Noiva", segunda peça do escandaloso jornalista Nelson Rodrigues (1912-1980), graças à encenação expressionista do polonês Zibgniew Ziembinski (1918-1978) em 1943. Teatro poderia ser arte, provou-se então, e Nelson virou nosso Shakespeare, por releituras constantes.

Em 1948, Alfredo Mesquita (1907-1986) funda, dentro da Universidade de São Paulo, o primeiro curso técnico para atores, a Escola de Arte Dramática, enquanto Franco Zampari (1898-1966) organiza o heróico teatro amador numa linha de montagem de grandes atores (Cacilda Becker, Paulo Autran, Fernanda Montenegro...), com o Teatro Brasileiro de Comédia. Até 1964, o TBC formou uma platéia refinada, ao mesmo tempo que os diretores italianos convidados (Adolfo Celi, sobretudo) formavam diretores locais: Antunes Filho e Flávio Rangel, entre os primeiros.

Por sua vez, o TBC gerou o engajamento político e estético do Teatro de Arena e do Teatro Oficina, que, tão vivos ainda estão entre nós, nos teatros alternativos, que têm Plínio Marcos (1935-1999) como patrono, apesar da pressão em contrário: política, por parte da ditadura militar, e econômica, pela estratégia dos shopping centers culturais.

A última armadilha, que quase mata o teatro brasileiro, é a de ser considerado um bem de consumo a ser financiado por empresas mais interessadas em abater seu imposto de renda. O teatro, no entanto, tem voltado a se impor como um serviço público que deve ficar à disposição do cidadão, como a água e a luz.

Porque, em última análise, o teatro tem de cumprir a função para a qual ele foi inventado: ser a voz da democracia.

Sergio Salvia Coelho, 38, é professor de história do teatro e de história do teatro brasileiro. Tem feito a crítica teatral da Folha, mas insiste em dizer que também serve para várias outras coisas.

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