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29/07/2003 - 02h48

Leituras Cruzadas: Pestes, pragas e epidemias

IVAN MIZIARA
especial para a Folha de S.Paulo

A epidemia de Sars (síndrome respiratória aguda grave), que explodiu em março deste ano em países do Oriente (notadamente a China) e levou pânico às populações ocidentais, é um daqueles eventos que, vez por outra, tentam lançar por terra o velho clichê de que "a história não se repete, exceto como farsa".

Claro Cortes IV - 15.mai.2003/Reuters
Garçonete com máscara de proteção contra Sars em restaurante de Xangai (China)

As fotos estampadas nas primeiras páginas dos jornais, de médicos em máscaras cirúrgicas transitando pelo aeroporto de Hong Kong, nos trazem à lembrança a indumentária dos médicos medievais, com suas máscaras em forma de bico de pássaro, durante a epidemia de peste bubônica que assolou a Europa no século 14, dizimando milhões de pessoas.

O "bico de pássaro" (recheado de ervas aromáticas para anular os "maus ares") usado pelos médicos medievos não oferecia proteção contra o bacilo causador da doença transmitida pela picada de pulgas de ratos contaminados. Era fruto da crença, nos tempos pré-Pasteur ou pré-Robert Kock, de que as doenças seriam transmitidas por miasmas que vagavam pela atmosfera malcheirosa dos burgos da Idade Média.

Ao contrário, a máscara cirúrgica moderna é uma barreira, até certo ponto eficaz, à passagem do coronavírus (causador da Sars) para vias aéreas superiores e pulmões. Mas o paralelismo entre as duas formas de "proteção" reflete, simbolicamente, a existência de uma situação que a ciência atual, autoconfiante em excesso, chegou a crer impossível de acontecer: o aparecimento de novas (ou a permanência de antigas) doenças epidêmicas.

Em julho de 1983, o historiador William H. McNeill (autor de um livro fundamental sobre o assunto, "Plagues and Peoples", Anchorbooks, 1977, US$ 14,95), escreveu no suplemento "The New York Review of Books": "Uma das coisas que nos separam de nossos ancestrais e fazem a experiência contemporânea profundamente diferente da de outras eras é o desaparecimento das epidemias como um fator importante na vida humana". Logo em seguida, a pandemia de Aids, que se espalhou por todos os cantos do planeta, transformaria as palavras de McNeill —um historiador sério, diga-se— em motivo, senão de riso, pelo menos de sorriso amargo.

Para elucidar melhor a comparação, alguns detalhes técnicos: a peste bubônica é causada pela introdução na pele da bactéria Yersinia pestis, por meio da picada das pulgas de ratos contaminados. Como relata o médico infectologista Stefan Ujvari em "A História e Suas Epidemias - A Convivência do Homem com os Microorganismos" (Senac, 2003, 311 págs., R$ 45), "o bacilo se desenvolve no local da picada, geralmente braços e pernas, e progride para os gânglios linfáticos mais próximos".

Os gânglios aumentam de tamanho, com o acúmulo de pus em seu interior, surgindo o chamado "bubão" (daí a denominação "bubônica" para a peste), comum nas axilas e virilhas. "Caso atinja a corrente sanguínea, o bacilo dissemina-se para outros órgãos", afirma Ujvari. Daí para a morte, pode ser uma questão de poucas horas.

A doença atingiu a Europa, na região de Messina, na Sicília, provavelmente em 1347, trazida por embarcações genovesas provindas do Oriente. Rapidamente, se espalhou pelo continente, provocando uma mortandade jamais vista.

"Esse foi o segundo de três registros de pandemia de peste na história. O primeiro teve início em 541 d.C. e alastrou-se por todas as civilizações do Mediterrâneo", afirma Jeanette Farrel, que trabalhou como voluntária em um leprosário na Índia, em "A Assustadora História das Pestes & Epidemias" (Ediouro, 2003, 279 págs., R$ 29).

George Gobet 29.jun.2003/France Presse
Vítimas de cólera em hospital de Monróvia (Libéria), em junho deste ano

Outra das grandes epidemias que assolaram o mundo vinda do Oriente (como a Sars) foi a cólera. A professora de história da medicina da Unicamp Rachel Lewinsohn, em "Três Epidemias - Lições do Passado" (Editora da Unicamp, 2003, 318 págs., R$ 45), nota que os primeiros registros da doença vêm da Província índica de Bengala, por volta de 500 a.C. ou 400 a.C., "em crônicas antigas, redigidas em sânscrito".

Seu agente causador também é um bacilo, o Vibrio cholerae, do qual existem vários biótipos. Para produzir a doença, ele precisa atingir o aparelho digestivo do homem, por meio de água e alimentos contaminados ou levado à boca por mãos sujas.

"Os sintomas são violentos e dramáticos", descreve Lewinsohn. "Diarréia volumosa, vômitos copiosos, cólicas e espasmos musculares violentos. O rosto do paciente adquire uma cor azulada, a pele murcha. A morte pode ocorrer em poucas horas."

Foi em 1817 que a Europa se conscientizou da gravidade do problema, pois uma grande epidemia originada em Calcutá (Índia), levada por navios ingleses, se espalhou pelo mundo. De lá para cá, foram oito pandemias de cólera, sendo que a mais recente teve início em 1991 e, entrando pelo Peru, atingiu a América do Sul.

Comentando acerca do caráter endêmico da doença em certos países, como a Índia, a autora alerta para a possibilidade de a doença se espalhar por outros continentes. Principalmente porque existem novos biótipos do vibrião, mais agressivos, capazes de se "esconder" em algas sob a forma de cistos e, portanto, navegar pelos oceanos.

Sua preocupação é mais do que válida. Dados recentes da OMS (Organização Mundial de Saúde) mostram que, desde junho, foram registrados 1.630 casos de cólera na Libéria, com 15 óbitos. A peste, que, segundo Jeanette Farrell, atacou 12 Estados americanos entre 1974 e 1993, retornou à Argélia (dez casos e um óbito até 9 de julho deste ano), trazida por via marítima de ilhas no Mediterrâneo.

É constrangedor, em 2003, perguntar por que a "morte negra" e a cólera continuam fazendo vítimas, tantos anos após a descoberta de seus meios de contágio, o isolamento de germes causadores e o desenvolvimento de potentes antibióticos.

A resposta, já que não podemos fazer como nossos ancestrais e atribuir a culpa dessas doenças à "ira divina" ou aos judeus (vítimas de perseguição e massacres na Idade Média, acusados de envenenarem os poços com a peste), só pode ser as horríveis condições de higiene em que ainda vivem as populações mais pobres e, em um país rico como os EUA, a falta de vontade política para melhorá-las.

Reprodução
Pacientes em hospital de emergência na França, durante a epidemia de gripe de 1918

Aliás, é corriqueiro dizer que política, economia e saúde costumam andar de mãos dadas, muitas vezes com um viés autoritário. Em "Do Mágico ao Social - Trajetória da Saúde Pública" (Senac, 2002, 160 págs., R$ 25), o dublê de médico sanitarista e escritor brilhante Moacyr Scliar afirma que surgiu na Alemanha, em 1779, "a idéia da intervenção do Estado na área de saúde pública".

No Brasil, um dos principais exemplos dessa visão (que perdura até hoje) ocorreu sob a gestão de Oswaldo Cruz como diretor-geral de Saúde Pública (equivalente atual a ministro da Saúde). Após colaborar para o controle do surto da peste bubônica no porto de Santos, em 1899, o genial cientista resolveu enfrentar novos desafios.

Naquela época, as estratégias de combate às epidemias já se revestiam de um caráter de campanha militar —organizadas, porém autoritárias. Cruz propôs ações no combate ao mosquito transmissor da febre amarela,o Aedes aegypti, formando as famosas brigadas de mata-mosquitos (qualquer semelhança com as nossas atuais epidemias de dengue não é mera coincidência, pois o inseto transmissor da doença é o mesmo).

Diante do sucesso de seus métodos, Oswaldo Cruz passou a combater a varíola. Termos de uso corrente no jargão militar, como "combate", "campanha" etc., tornaram-se palavras de ordem na rotina da saúde pública. O "inimigo" precisava ser derrotado.

Dentro dessa lógica militarista, a estratégia de Cruz propunha a vacinação em massa e obrigatória de toda a população. E mais: para conseguir um emprego, a pessoa era obrigada a apresentar o atestado de vacinação antivariólica.

Como bem lembra Moacyr Scliar, a imunização naqueles tempos tinha muitos opositores. "Entre a população, havia muita desconfiança quanto à vacina. Dizia-se que podia matar. Alguns sustentavam que a vacina era feita com sangue de rato", diz ele.

O resultado foi trágico: em 10 de novembro de 1904, eclodiu a tristemente famosa Revolta da Vacina. A casa de Oswaldo Cruz foi atacada, sua família teve de fugir às pressas, e o aparato militar foi chamado para sufocar a rebelião, com um saldo indeterminado de mortos e feridos.

As metáforas surrupiadas do jargão militar para descrever as estratégias de prevenção das epidemias persistem, mas trazem em seu bojo um perigo.

Em seu longo ensaio "Ilness as Metaphor and Aids and Its Metaphors" (Penguin Classics, 2002, 180 págs., US$ 13), Susan Sontag, escritora americana de talento e raciocínio nunca menos que instigante, nota que termos como "invasor" e "inimigo", são usados para identificar tanto as bactérias patogênicas como as próprias doenças.

Essas metáforas terminam (in)conscientemente sendo aplicadas aos doentes, que se tornam indesejáveis à sociedade. Não à toa, os leprosos, na Idade Média, eram removidos do convívio social, e os portadores de peste, trancafiados em suas casas, abandonados à própria sorte. Ainda hoje, indivíduos soropositivos acabam sendo vistos como párias, despertando rejeição e preconceito por parte de alguns.

Através dos tempos, a associação da doença ao indivíduo, estigmatizando-se este último, sempre foi a tônica. Muito semelhante à Aids foi a epidemia de sífilis que se abateu sobre a Europa no final do século 15, provavelmente trazida pelos marinheiros que haviam descoberto o Novo Mundo, devido ao modo de transmissão sexual, geralmente "associado a perversão", como afirma Susan Sontag.

Com uma agravante: o sifilítico, muitas vezes, trazia as marcas humilhantes da doença estampadas no rosto. As lesões de pele da sífilis expostas em regiões visíveis do corpo, além da vergonha que causavam por ser a doença "impura", considerada "punição divina à licenciosidade", representavam metaforicamente essa associação do inimigo externo (o agente infeccioso) com o portador da doença, estigmatizando-o.

A estigmatização dos pacientes portadores do HIV também está implícita no uso disseminado da expressão "grupos de risco", que revive "a idéia arcaica de uma comunidade devassa que foi julgada pela doença", observa Sontag. Ela se dá de forma mais verbal que visual, como na sífilis, mas é tão deletéria quanto.

Partindo do indivíduo para atribuir as infecções epidêmicas a uma raça, a um país ou a um continente, criando novos estigmas, basta um passo. O chauvinismo nacionalista faz com que "a doença sempre venha de um outro lugar", diz Sontag.

Assim, a sífilis, cujo nome foi dado em 1530 pelo médico e poeta Girolamo Fracastoro (Syphilus era o pastor que contraiu a doença como castigo dos deuses), tornou-se a "doença francesa" para os italianos. Na França, foi chamada de "doença italiana", em Portugal, de "doença castelhana", entre as suas várias denominações, ressalta Scliar.

Os países africanos se queixam, com boa dose de razão, de haver um componente estereotipado racista que realimenta o preconceito contra eles, na ligação que é feita entre o continente e a origem da "praga" (outra metáfora) da Aids.

A utilização metafórica da palavra "praga" data de tempos bíblicos, enviadas por Deus para punir os pecadores. No entanto, a visão eurocêntrica de mundo, vigente em toda a Idade Média e na Idade Moderna, reservou o termo apenas àquelas "doenças estrangeiras" que transformam o corpo, como a lepra, a cólera e a sífilis (e, hoje, a Aids).

Os europeus se consideravam originariamente isentos dessas epidemias, sendo apenas "visitados" por elas, vindas do Oriente distante. Obviamente, não destinavam o mesmo termo às doenças, como a varíola ou a influenza, que eles mesmos levaram ao Novo Mundo e que literalmente (de forma intencional ou não) dizimaram as populações nativas.

O mesmo parece estar acontecendo com a Sars. A infecção pelo coronavírus, alcunhada (preconceituosamente) de "pneumonia asiática", segue o roteiro ideal da metáfora de "doença estrangeira", potencialmente letal, despertando pânico na população do Ocidente.

A semelhança com a terceira grande epidemia de peste bubônica que assolou o mundo, no final do século 19, é brutal. Essa pandemia, como lembra Stefan Ujvari, iniciou-se na região chinesa de Yunnan, em 1892. Dali chegou a Cantão (matando 100 mil pessoas) e, depois, a Hong Kong, "onde os ratos proliferavam em meio a ruas lamacentas e aos detritos dos mercados".

Em 1896, por via marítima, a doença deixou Hong Kong e alcançou Bombaim, na Índia. Segundo Ujvari, "a peste tomou dois rumos: embarcações a levaram, pelo oceano Pacífico, ao Havaí e à cidade de São Francisco. (...) Na outra direção, as cidades do mar Vermelho recebiam navios contaminados que, ao atravessar o canal de Suez, espalhavam o bacilo pelo Mediterrâneo e daí à América Latina".

Hoje, o coronavírus viaja de avião, atingindo, mais rapidamente que os velhos navios, todos os recantos do planeta. Mas há uma esperança: que a história das epidemias se repita. Foi durante a terceira pandemia de peste que Alexandre Yersin, em 1894, descobriu em Hong Kong a bactéria causadora da doença e, por conseguinte, seu tratamento, a partir da produção do soro antipestoso.

Pode ser que aconteça o mesmo com a Sars.

Ivan Miziara, 47, é médico, poeta e jornalista. Professor colaborador da Faculdade de Medicina da USP, é autor de "Inventário da Luz" (BMGV, 2000). Diferentemente de Girolamo Fracastoro, nunca deu nome a nenhuma doença.

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  • Surto de melancolia
  • Leia introdução de "A Assustadora História das Pestes & Epidemias"

         

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