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26/08/2003 - 02h39

Leia dois capítulos de "Onze Minutos"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo dois capítulos de "Onze Minutos" (Rocco, 256 págs., R$ 29,50), de Paulo Coelho, um dos livros analisados na seção "Leituras Cruzadas" de agosto de 2003.

Capítulo 1

Era uma vez uma prostituta chamada Maria.

Um momento. "Era uma vez" é a melhor maneira de começar uma história para crianças, enquanto "prostituta" é assunto para adultos. Como posso escrever um livro com esta aparente contradição inicial? Mas, enfim, como a cada instante de nossas vidas temos um pé no conto de fadas e o outro no abismo, vamos manter este início:

Era uma vez uma prostituta chamada Maria.

Como todas as prostitutas, tinha nascido virgem e inocente, e durante a adolescência sonhara em encontrar o homem de sua vida (rico, bonito, inteligente), casar (vestida de noiva), ter dois filhos (que seriam famosos quando crescessem), viver em uma linda casa (com vista para o mar). Seu pai trabalhava como vendedor ambulante, sua mãe era costureira, sua cidade no interior do Brasil tinha apenas um cinema, uma boate, uma agência bancária, e por causa disso Maria não deixava de esperar o dia em que seu príncipe encantado chegaria sem aviso, arrebataria seu coração, e partiria com ela para conquistar o mundo.

Enquanto o príncipe encantado não aparecia, só lhe restava sonhar. Apaixonou-se pela primeira vez aos onze anos, enquanto ia a pé de sua casa até a escola primária local. No primeiro dia de aula, descobriu que não estava sozinha em seu trajeto: junto com ela caminhava um garoto que vivia na vizinhança e freqüentava aulas no mesmo horário. Os dois nunca trocaram uma só palavra, mas Maria começou a notar que a parte do dia que mais lhe agradava eram aqueles momentos na estrada cheia de poeira, sede, cansaço, o sol a pino, o menino andando rápido, enquanto ela se exauria no esforço para acompanhar-lhe os passos.

A cena se repetiu por vários meses. Maria, que detestava estudar e não tinha outra distração na vida exceto a televisão, passou a torcer para que o dia passasse rápido, aguardando com ansiedade cada ida à escola e, ao contrário de algumas meninas de sua idade, achando aborrecidíssimos os finais de semana. Como as horas demoram muito mais a passar para uma criança que para um adulto, ela sofria muito, achava os dias longos demais porque lhe davam apenas dez minutos com o amor de sua vida, e milhares de horas para ficar pensando nele, imaginando como seria bom se pudessem conversar.

Então aconteceu.

Certa manhã, o garoto veio até ela, pedindo um lápis emprestado. Maria não respondeu, demonstrou um certo ar de irritação por aquela abordagem inesperada e apressou o passo. Tinha ficado petrificada de medo ao vê-lo andando em sua direção, tinha pavor de que soubesse o quanto o amava, o quanto esperava por ele, como sonhava em pegar sua mão, passar diante do portão da escola e seguir a estrada até o final, onde — diziam — se encontrava uma grande cidade, personagens de novela, artistas, carros, muitos cinemas e um sem-fim de coisas boas.

Durante o resto do dia não conseguiu concentrar-se na aula, sofrendo com seu comportamento absurdo, mas ao mesmo tempo sentia-se aliviada, porque sabia que o menino também a havia notado, e o lápis não passava de um pretexto para iniciar uma conversa, pois quando se aproximou ela percebera uma caneta em seu bolso. Ficou aguardando a próxima vez, e durante aquela noite — e as noites que se seguiram — ela passou a imaginar as muitas respostas que lhe daria, até encontrar a maneira certa de começar uma história que não terminasse jamais.

Mas não houve uma próxima vez; embora continuassem a ir juntos para a escola, com Maria às vezes alguns passos à frente segurando um lápis na mão direita, outras vezes andando atrás para poder contemplá-lo com ternura, ele nunca mais lhe dirigiu palavra, e ela teve que contentar-se em amar e sofrer silenciosamente até o final do ano letivo.

Durante as intermináveis férias que se seguiram, acordou certa manhã com as pernas banhadas em sangue, pensou que iria morrer; decidiu deixar uma carta para o menino dizendo que ele havia sido o grande amor da sua vida, e planejou embrenhar-se no sertão para ser devorada por um daqueles animais selvagens que aterrorizavam os camponeses da região: o lobisomem ou a mula-sem-cabeça. Só assim os seus pais não sofreriam com sua morte, pois os pobres têm sempre a esperança apesar das tragédias que sempre lhes acontecem. Assim, eles viveriam pensando que ela fora raptada por uma família rica e sem filhos, mas que talvez voltasse um dia, no futuro, cheia de glória e dinheiro — enquanto o atual (e eterno) amor de sua vida se lembraria dela para sempre, sofrendo a cada manhã por não ter voltado a lhe dirigir a palavra.

Não chegou a escrever a carta, porque sua mãe entrou no quarto, viu os lençóis vermelhos, sorriu e disse:

— Agora você é uma moça, minha filha.

Quis saber que relação havia entre o fato de ser moça e o sangue que corria, mas sua mãe não soube explicar direito, apenas afirmou que era normal e que de agora em diante teria que usar uma espécie de travesseiro de boneca entre as pernas, durante quatro ou cinco dias por mês. Perguntou se os homens usavam algum tubo para evitar que o sangue escorresse pelas calças, e soube que isso só acontecia com as mulheres.

Maria reclamou com Deus, mas terminou se acostumando com a menstruação. Entretanto, não conseguia acostumar-se com a ausência do menino, e não parava de recriminar a si mesma pela atitude estúpida de sair correndo daquilo que mais desejava. Um dia antes de recomeçarem as aulas, ela foi até a única igreja da cidade e jurou à imagem de Santo Antônio que iria tomar a iniciativa de conversar com o garoto.

No dia seguinte, arrumou-se da melhor maneira possível, usando um vestido que a mãe costurara especialmente para a ocasião, e saiu — agradecendo a Deus por terem finalmente terminado as férias. Mas o menino não apareceu. E assim se passou mais uma angustiante semana, até que soube, por alguns colegas, que ele havia mudado de cidade.
— Foi para longe — disse alguém.

Naquele momento, Maria aprendeu que certas coisas se perdem para sempre. Aprendeu também que existia um lugar chamado "longe", que o mundo era vasto, sua aldeia era pequena, e as pessoas mais interessantes sempre terminavam indo embora. Gostaria também de poder partir, mas ainda era muito jovem; mesmo assim, olhando as ruas empoeiradas da cidadezinha onde morava, decidiu que um dia seguiria os passos do menino. Nas nove sextas-feiras que se seguiram, conforme um costume de sua religião, comungou e pediu à Virgem Maria que algum dia a tirasse dali.

Também sofreu por algum tempo, tentando inutilmente encontrar a pista do garoto, mas ninguém sabia para onde seus pais haviam se mudado. Maria então começou a achar o mundo grande demais, o amor algo muito perigoso, e a Virgem uma santa que habitava um céu distante, e não ligava para o que as crianças pediam.


Capítulo 2

Três anos se passaram, ela aprendeu geografia e matemática, começou a acompanhar as novelas na TV, leu na escola suas primeiras revistas eróticas, e passou a escrever um diário falando da sua vida monótona, e da vontade que tinha de conhecer aquilo que lhe ensinavam — oceano, neve, homens de turbante, mulheres elegantes e cobertas de jóias. Mas como ninguém pode viver de vontades impossíveis — principalmente quando a mãe é costureira e o pai não pára em casa —, logo entendeu que precisava prestar mais atenção ao que se passava a sua volta. Estudava para vencer, ao mesmo tempo em que procurava alguém com quem pudesse compartilhar seus sonhos de aventuras. Quando completou quinze anos, apaixonou-se por um rapaz que conhecera em uma procissão na Semana Santa.

Não repetiu o erro da infância: conversaram, ficaram amigos, passaram a ir ao cinema e às festas juntos. Também notou que, assim como acontecera com o menino, o amor estava mais associado à ausência que à presença da pessoa: vivia sentindo falta do rapaz, passava horas imaginando sobre o que iam conversar no próximo encontro, e relembrava cada segundo que estiveram juntos, procurando descobrir o que tinha feito de certo ou errado. Gostava de ver a si mesma como uma moça experiente, que já deixara uma grande paixão escapar, sabia a dor que isso causava — e agora estava decidida a lutar com todas as forças por este homem, pelo casamento, que este seria o homem para o casamento, os filhos, a casa em frente ao mar. Foi conversar com a mãe, que implorou:

— Ainda é muito cedo, minha filha.

— Mas a senhora casou-se com meu pai quando tinha dezesseis anos.

A mãe não queria explicar que fora por causa de uma gravidez inesperada, de modo que usou o argumento "os tempos são outros", encerrando o assunto.

No dia seguinte, os dois foram caminhar por um campo nos arredores da cidade. Conversavam um pouco, Maria perguntou se ele não tinha vontade de viajar, mas em vez de responder, ele a agarrou em seus braços e lhe deu um beijo.

O primeiro beijo de sua vida! Como sonhara com aquele momento! E a paisagem era especial — as garças voando, o pôr-do-sol, a região semi-árida com sua beleza agressiva, o som de uma música ao longe. Maria fingiu reagir contra o avanço, mas logo o abraçou e repetiu aquilo que vira tantas vezes no cinema, nas revistas e na TV: esfregou com alguma violência os seus lábios nos dele, mexendo a cabeça de um lado para o outro, em um movimento meio ritmado, meio descontrolado. Sentiu que, de vez em quando, a língua do rapaz tocava os seus dentes, e achou aquilo delicioso.

Mas ele parou de beijá-la de repente.

— Você não quer? — perguntou.

Que devia responder? Que queria? Claro que queria! Mas uma mulher não deve expor-se desta maneira, principalmente para o seu futuro marido, ou ele ficará o resto da vida desconfiado de que ela aceita tudo com muita facilidade. Preferiu não dizer nada.

Ele abraçou-a de novo, repetindo o gesto, desta vez com menos entusiasmo. Tornou a parar, vermelho — e Maria sabia que algo estava muito errado, mas tinha medo de perguntar. Pegou-o pelas mãos e caminharam até a cidade, conversando sobre outros assuntos, como se nada tivesse acontecido.

Naquela noite, escolhendo algumas palavras difíceis, porque achava que um dia tudo o que escrevesse seria lido, e certa de que algo muito grave se passara, anotou no seu diário:

Quando nos encontramos com alguém e nos apaixonamos, temos a impressão de que todo o universo está de acordo; hoje eu vi isso acontecer no pôr-do-sol. Entretanto, se algo dá errado, não sobra nada! Nem as garças, nem a música ao longe, nem o sabor dos lábios dele. Como é que pode desaparecer tão rápido a beleza que ali estava fazia poucos minutos?

A vida é muito rápida; faz a gente ir do céu ao inferno em questão de segundos.


No dia seguinte foi conversar com as amigas. Todas viram quando ela saíra para passear com seu futuro "namorado" — afinal, não basta ter um grande amor, é preciso também fazer com que todos saibam que você é uma pessoa muito desejada. Estavam curiosíssimas para saber o que tinha acontecido, e Maria, cheia de si, disse que a melhor parte foi a língua que tocava nos seus dentes. Uma das garotas riu.

— Você não abriu a boca?

De repente, tudo ficava claro — a pergunta, a decepção.

— Para quê?

— Para deixar que a língua entrasse.

— E qual é a diferença?

— Não tem explicação. É assim que se beija.

Risinhos escondidos, ares de suposta piedade, vingança comemorada entre as meninas que jamais tiveram um rapaz apaixonado. Maria fingiu que não dava importância, riu também — embora sua alma chorasse. Secretamente blasfemou contra o cinema, onde aprendera a fechar os olhos, segurar a cabeça do outro com a mão, mover o rosto um pouco para a esquerda, um pouco para a direita, mas que não mostrava o essencial, o mais importante. Elaborou uma explicação perfeita (eu não quis entregar-me logo, porque não estava convencida, mas agora descobri que você é o homem da minha vida) e aguardou a próxima oportunidade.

Mas só viu o rapaz três dias depois, em uma festa no clube da cidade, segurando a mão de uma amiga sua — a mesma que lhe havia perguntado sobre o beijo. Ela de novo fingiu que não tinha importância, agüentou até o final da noite conversando com as companheiras sobre artistas e outros rapazes da cidade, fingindo ignorar alguns olhares piedosos que de vez em quando uma delas lhe lançava. Ao chegar em casa, porém, deixou que seu universo desabasse, chorou a noite inteira, sofreu por oito meses seguidos e concluiu que o amor não fora feito para ela, nem ela para o amor. A partir daí, passou a considerar a possibilidade de transformar-se em religiosa, dedicando o resto da vida a um tipo de amor que não fere e não deixa marcas dolorosas no coração — o amor a Jesus. Na escola falavam de missionários que iam para a África, e ela decidiu que ali estava a saída de sua vida sem emoções. Fez planos para entrar no convento, aprendeu primeiros socorros (já que, segundo alguns professores, muita gente morria na África), dedicou-se com mais afinco às aulas de religião e começou a imaginar-se como santa dos tempos modernos, salvando vidas e conhecendo as florestas onde habitavam tigres e leões.

Entretanto, o ano do seu décimo quinto aniversário não lhe reservara apenas a descoberta de que o beijo se dá com a boca aberta, ou de que o amor é sobretudo uma fonte de sofrimento. Descobriu uma terceira coisa: a masturbação. Foi quase por acaso, brincando com seu sexo enquanto esperava a mãe voltar para casa. Costumava fazer isso quando era criança, e gostava muito da sensação agradável — até que um dia seu pai a viu e lhe deu uma surra, sem explicar o motivo. Jamais esqueceu as pancadas, e aprendeu que não devia ficar tocando-se na frente dos outros; como não podia fazer isso no meio da rua, e como em sua casa não havia um quarto só para ela, esqueceu-se da sensação agradável.

Até aquela tarde, quase seis meses depois do beijo. A mãe demorou, ela não tinha o que fazer, o pai havia acabado de sair com um amigo, e na falta de um programa interessante na televisão, começou a examinar seu corpo — na esperança de encontrar alguns cabelos indesejados, que logo seriam arrancados com uma pinça. Para sua surpresa, notou um pequeno caroço na parte superior da vagina; começou a brincar com ele, e já não conseguia mais parar; era cada vez mais gostoso, mais intenso, e todo o seu corpo — principalmente a parte que estava tocando — ia ficando rígido. Aos poucos começou a entrar em uma espécie de paraíso, a sensação foi aumentando de intensidade, ela notou que já não enxergava ou escutava direito, tudo parecia ter ficado amarelo, até que gemeu de prazer e teve seu primeiro orgasmo.

Orgasmo! Gozo!

Foi como se tivesse subido até o céu e agora descesse de pára-quedas, lentamente, para a terra. Seu corpo estava encharcado de suor, mas ela sentia-se completa, realizada, cheia de energia. Então era aquilo o sexo! Que maravilha! Nada de revistas pornográficas, com todo mundo falando de prazer, mas fazendo cara de dor. Nada de precisar de homens, que gostavam do corpo mas desprezavam o coração de uma mulher. Podia fazer tudo sozinha! Repetiu uma segunda vez, agora imaginando que era um ator famoso que a tocava, e de novo foi até o paraíso e desceu de pára-quedas, ainda mais cheia de energia. Quando ia começar pela terceira vez, a mãe chegou.

Maria foi conversar com as amigas sobre sua nova descoberta, desta vez evitando dizer que tivera sua primeira experiência poucas horas atrás. Todas — com exceção de duas — sabiam do que se tratava, mas nenhuma delas havia ousado falar sobre o tema. Foi o momento de Maria sentir-se revolucionária, líder do grupo, e inventando um absurdo "jogo de confissões secretas", pediu a cada uma que contasse a maneira preferida de masturbar-se. Aprendeu várias técnicas diferentes, como ficar debaixo do cobertor em pleno verão (porque, dizia uma delas, o suor ajudava), usar uma pena de ganso para tocar o local (ela não sabia o nome do local), deixar que um rapaz fizesse aquilo (para Maria isso parecia desnecessário), usar o chuveiro do bidê (não possuía um em sua casa, mas assim que visitasse uma das amigas ricas, iria experimentar).

De qualquer maneira, ao descobrir a masturbação, e depois de usar algumas das técnicas que tinham sido sugeridas pelas amigas, desistiu para sempre da vida religiosa. Aquilo lhe dava muito prazer — e pelo que insinuavam na igreja, o sexo era o maior dos pecados. Através das mesmas amigas, começou a ouvir lendas a respeito: a masturbação enchia o rosto de espinhas, podia levar à loucura, ou à gravidez. Correndo todos estes riscos, continuou a se dar prazer pelo menos uma vez por semana, geralmente às quartas-feiras, quando seu pai saía para jogar baralho com os amigos.

Ao mesmo tempo, ficava cada vez mais insegura na sua relação com os homens — e com mais vontade de ir embora do lugar onde vivia. Apaixonou-se uma terceira, quarta vez, já sabia beijar, tocava e deixava-se tocar quando estava sozinha com os namorados — mas sempre algo acontecia de errado, e a relação terminava exatamente no momento em que estava finalmente convencida de que aquela era a pessoa exata para ficar com ela o resto da vida. Depois de muito tempo, terminou concluindo que os homens apenas traziam dor, frustração, sofrimento, e a sensação de que os dias se arrastavam. Certa tarde, quando estava no parque olhando uma mãe brincar com o filho de dois anos, decidiu que podia até pensar em marido, filhos e casa com vista para o mar, mas jamais tornaria a se apaixonar novamente — porque a paixão estragava tudo.

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