Folha Online sinapse  
26/08/2003 - 02h40

Leituras Cruzadas: Quatro livros eróticos e um mínimo eu

TALES A.M AB'SÁBER
especial para a Folha de S.Paulo

Quando, felizmente, nos deparamos com os bons objetos que mesmo a cultura de massa pode formular sobre a natureza de nossa vida erótica —como a poesia desconcertante de Nabokov em um "Lolita", simultaneamente viva e envenenada, ou a reflexão auto-irônica de um "O Pecado Mora ao Lado", de Billy Wilder, já plenamente instalada no campo da expansão erótica da mercadoria e de seu fetiche—, podemos observar nitidamente como a relação entre desejo, objeto do desejo e constituição de experiência de si é um jogo dos mais ricos na ordem do conhecimento, de atenção a como a vida humana se dá para si mesma. Nessas obras, diante da natureza do trabalho exigido pela coisa erótica, temos a apresentação dos múltiplos e contraditórios estratos de nossa vida subjetiva.

Peter Dejong - 28.set.1997/Associated Press

O bom trabalho na esfera do erotismo é, em geral, um trabalho sobre a experiência humana, sempre tentando se localizar diante de tamanhas potências, que lhe são simultaneamente inerentes e quase impossíveis.

O célebre livro "O Erotismo", de Georges Bataille, é ainda um bom exemplo, como trabalho teórico em um registro de espanto, dessa tentativa de localização da fragilidade da unidade humana diante das intensidades quase de outra natureza de sua própria vida erótica. Mas, definitivamente, não parece ser essa a natureza do erotismo menor que circula maciçamente entre nós hoje em dia. Este parece estar mais voltado para um gozo sem espírito presente, um gozo que talvez pretenda extirpar a sua própria vida imaginativa.

Tudo parece se passar como se pudéssemos ter acesso direto à coisa sexual, tornada transparente e imediata, prometida e confundida com a profundidade mesma da experiência do consumo. As coisas se dariam como se as imagens tão comuns de lindos modelos simulando um contato erótico ocupassem e respondessem ao trabalho que o sexual costuma dar ao humano, agora tornado coisa entre coisas, para a excitação geral do fetichismo das mercadorias.

Se o velho —e, para alguns, divino— marquês de Sade, nas origens de nossa modernidade, em sua pornografia filosófica, propunha a independência radical do desejo e da potência perante qualquer outro, que se tornava então mero objeto para o gozo e para o assassinato, o avanço acelerado e já muito adiantado da coisificação do humano na ordem capitalista nos propõe hoje um erotismo que nos perfura e nos choca vindo de fora, da cultura do consumo e do esquecimento. Talvez o divino marquês já falasse do lugar avançado das mercadorias e de seu desejo de gozo e manipulação ilimitada sobre nossos corpos e nossa vida subjetiva.

O explícito da circulação industrial de uma cultura sexual aparece, assim, como nova ordem de alienação não mais pela mentira do recalque sobre a nossa coisa sexual —como já o foi na cultura vitoriana do século 19—, mas pela mentira de sua intensa falsa positivação. Dito isso, podemos nos aproximar de alguns trabalhos recentes de nossa literatura que se posicionam diante do problema.

Trecho

"A dor agora parecia invadir a alma e enfraquecê-la espiritualmente, porque uma coisa é fazer um pouco de teatro em um hotel cinco estrelas, nua, com vodca, caviar e um chicote entre as pernas; outra coisa é estar no frio, descalça, com pedras lhe cortando os pés."

De "Onze Minutos" (Rocco, 256 págs., R$ 29,50), de Paulo Coelho

Iniciemos por Paulo Coelho e seu "Onze Minutos". Diga-se de passagem, o livro não parece ser apenas dele, mas de várias mãos e experiências nele entretecidas. Paulo Coelho, que conhece muito dos meandros da prostituição no registro da cultura de massa, dedica-se com grande interesse a pesquisar os movimentos do que é acaso, do que é necessidade, do que é desejo e do que é violência na experiência da prostituição feminina.

Seu trabalho chega a tocar um tanto da matéria complexa de seu problema. Pode-se certamente aprender algo sério em sua espécie de neonaturalismo, como o autor desejou, das muitas máscaras da vida sexual humana, da sua ética estranha e da difícil localização nas possibilidades instáveis de subjetivação feminina em nosso mundo.

O livro desenha uma jornada de simultânea dissipação, risco, experiência e constituição, desejando que as moças entregues à mercantilização do corpo e de si mesmas aprendam a nomear algum limite, mas esquecendo que elas estão entregues a um mundo, que é o nosso, onde não há limite algum no uso e na exploração do corpo e da alma alheia. Nesse ponto, ele reage à sua matéria com ingenuidade, mantendo suas milhões de leitoras em uma esfera de ilusões, baseadas na potência restauradora do amor.

Mas o livro é ambíguo. Ele também leva suas leitoras ao limite do que lhes é estrangeiro, ao fora radical da sexualidade, e assume o risco, de forma narrativa muito calculada, de falar do intenso campo de angústia do normal na vida sexual e, mais interessante, das potências polimorfas radicais da sexualidade humana e de seu próprio sentido, sempre negadas pela forma sexual neurótica adaptativa e culturalmente dominante.

Por outro lado, com seu modo particular de levar frequentemente o pensamento para o âmbito da parábola e da fábula e, assim, reduzi-lo à narrativa infantilizante, ele por vezes reduz drasticamente as verdades que arduamente localizou. Comprometidas com um público de massa que ama o seu autor, as fantasias de melodrama industrial que o livro movimenta se cruzam com questões humanas concretas e insights reais, de modo a nos deixar perplexos, criando um estranho híbrido entre verdade e mistificação, entre kitsch e conhecimento, que pode ser lido como um problema mais amplo.

Trecho

"Desisti de querer justificar minhas escolhas, trabalhei os pontos nos quais notei uma centelha inicial, além disso a vida é curta. Necrofilia, coprofilia, muitas outras filias, não, definitivamente. Tudo bem para quem gosta, nada de repressão, a não ser à mutilação e à morte. Mas eu não. Tirando isso, fomos bastante fundo."

De "Luxúria - A Casa dos Budas Ditosos" (Objetiva, 164 págs., R$ 22,90), de João Ubaldo Ribeiro

Noutra direção, o interessante livro de João Ubaldo Ribeiro "Luxúria - A Casa dos Budas Ditosos" me parece cuidadosamente anacrônico. Seu desejo de libertinagem aberta, proposto como gesto de pesquisa existencial e libertação emancipatória, ao mesmo tempo que seduz e impressiona pela vitalidade, e pela esperteza dionisíaca da narradora, me parece algo fora do lugar.

De todos os trabalhos recentes que buscam pensar o sexual, ele é o que mais assume o risco de ser pensado pelo sexual, de ser propositivo desde a coisa sexual, posicionando-se entre a coisa do corpo, o gozo aberto e explícito e uma possível subjetivação erótica mais ampla, libertária e modernizante, que poderia dar conta do atraso do mundo. Esse atraso é o ponto mais negativo das coisas que assombram a narradora, que dá seu impressionante depoimento sobre uma vida dedicada ao que poderia ser uma cultura do gozo.

Nesse sentido, a hipótese de libertação crítica dada apenas no âmbito da sexualidade, lançada a todas as suas formas possíveis, tanto lembra a cultura erótica dos anos 60, já reificada na década de 70 —como o próprio livro aponta na estranha e quase mortífera, antierótica, conjunção de sexo com cocaína daquele tempo—, como também evoca a antiga posição da literatura libertina clássica, muito própria ao século 18, em que a liberdade de gozos e costumes foi uma abstrata reação expansiva diante tanto do controle religioso quanto da nova ordem do recalque da civilização burguesa que se anunciava.

Os anônimos do século 18 estão de volta na quase fantástica narradora anônima de João Ubaldo, projetada na Salvador dos anos 50 e no Brasil de desde então. Embora provocativa e interessante, ao pensar uma mulher com uma sexualidade plural, que costuma ser reservada aos homens, a narradora não avança a hipótese libertária clássica: gozar é emancipar-se. Não podemos deixar de ver aí, a contrapelo do desejo de emancipação radical do livro, a sua adaptação aos fantasmas da indústria cultural do presente, também ela convencida de uma modernidade abstrata dada apenas na coisa sexual, isolada para o consumo e para o estilo, que em nada altera a ordem radical de nosso mal geral.

Trecho

"O aprendiz foi outro dos meus fracassos, o meu terceiro livro. É a história de um homem saído da adolescência que descobre o sexo. Quebrei a cara porque na verdade eu nada entendo de sexo, apenas gosto das mulheres, mas gostar de fazer sexo com as mulheres não significa que você sabe o que está fazendo."

De "Diário de um Fescenino" (Companhia das Letras, 256 págs., R$ 33,50), de Rubem Fonseca

"Diário de um Fescenino", por sua vez, traz de volta o melhor e o pior de Rubem Fonseca. Parece ser um pouco difícil, a esta altura do campeonato, ao velho mestre de nossa literatura pós-moderna engatar mais uma vez o seu característico registro.

O melhor aqui é como a vida vai se fechando, afirmativa no seu impossível, à última aposta do narrador Rufus, o escritor do diário, também um escritor de romances: na falta de talento verdadeiro e de problemas de interesse que não se confundam rapidamente com a vida da televisão e do cinema, podemos nos entregar à única coisa que ainda faz sentido, o amor carnal.

Pois esse último bastião da verdade vai fechar os horizontes de sua própria ilusão para Rufus. Aquele que se pensava sujeito, pelo menos na esfera do próprio desejo, vai se converter mais e mais em objeto de um destino perverso, que o capturou desde a própria espontaneidade de um corpo que, a essa altura das coisas, só tinha o gozar como esperança. São comoventes a tentativa de Rufus de aprender alguma verdade em sua volubilidade corpórea e o oferecimento que ele faz de si mesmo ao sacrifício diante do desencontro amoroso com as mulheres, até ser quase destruído pelo descompasso entre seu amor pelo sexo oposto e o amor das mulheres pelo companheiro.

Ao longo do livro, o personagem vai sendo arrancado gradualmente de seu projeto fescenino para uma engraçada novelinha policial e acaba no direito de não possuir nada de si, nem mesmo a liberdade de apenas gozar, como último limite de algum valor. Por fim, o livrinho se confunde abertamente com as formas da indústria cultural, pronto para virar filme ou minissérie de TV, formas que o assombram sempre ao longo do texto. Em sua composição final, o narcisismo mercantil da indústria cultural acaba por vencer a aposta contra os poderes irredutíveis da sexualidade humana.

Trecho

"Continuam vivos? Ilogicidade, senhores. Diagramas pentelhudos. Orgias de rigor. Mas o caos desce contundente (alguém me disse que o ovo é o caos da galinha, quem foi?), espesso caducante sobre cabeças e sexo. Enfio minha cabeça-abóbora candente entre as venosas virilhas de Clódia. Esquecido de mim, amargado, só tu, cona de Clódia, me olha o olho."

De "Contos d'Escárnio/Textos Grotescos " (Globo, 112 págs., R$ 18), Hilda Hilst

Chegamos, por fim, a uma precursora, Hilda Hilst, e seu admirável trabalho "Contos d'Escárnio/ Textos Grotescos". O livro, de 1990, relançado recentemente, me parece uma pequena jóia da literatura erótica e tanto mais o é na medida mesma em que problematiza algo de seu projeto de fundo, fazer rir e, se possível, gozar...

Livre dos temas elevados que por vezes tornavam literários em excesso seus poemas —conscienciosidade que ela mesma critica abertamente no livro libertino—, Hilda Hilst cria um objeto paradoxal, constituído na paródia e na derrisão, compondo um mundo em que já nada mais é sério e em que tudo que é sério corresponde a seu específico grau de perversão ao mesmo tempo que, sobre tal tecido imaginário negativo do texto, fulguram de maneira despretensiosa, mas nítida, gestos espontâneos do mais livre pensar.

Tal panorama contamina todos os personagens, que assumem livremente o foco narrativo do pequeno livro, muitas vezes colocados entre a materialidade orgástica dos corpos, o vazio negativo deste mundo —que a graça amorosa permanente dos corpos oferecidos não redime— e o suicídio.

Este é o paradoxo de Hilda: lá onde a literatura se fez mais fácil, por se aproximar tão irrefletidamente do acontecer puro do corpo, comentário reflexivo da autora ao andamento geral das coisas da indústria da cultura entre nós, ela reencontra, para uma felicidade de outra ordem, a complexidade de um pensamento e de um desejo de sentido que necessita permanecer vivo e que, mesmo que fragmentariamente, ainda sonha trabalhar as coisas do mundo.

É assim que o livro pulsa mínimos, quase subliminares, ensaios sobre questões que ninguém mais se dedica a conhecer —como a violência religiosa, o sentido estético do suicídio, a relação entre o viver e a coisa sexual— e vão sendo soltos fios de brilho erudito ao longo do texto, que nos lembram que há mais nesta vida do que o estado triste que acabamos por nos encontrar. Como diz o seu principal narrador, Crasso: "Em contato com tanto lixo ao longo da vida, é preciso escrever o próprio lixo", para localizar-se, eu penso, em uma região da verdade.

Paradoxal, o livro faz da observação poética minuciosa da vida sexual humana um gesto de conhecer e, ao descer satisfeito ao mais baixo, lembra, por um estranho e negativo movimento em relação a si mesmo, os prazeres esquecidos do verdadeiramente alto no espírito humano.

Por fim, é interessante como a vida erótica extremada, levada como pesquisa estética e existencial de grande porte das personagens, é também articulada a um mundo de generosidade, amor liberto e reconhecimento agradecido diante da existência do outro.

Hilda Hilst estaria, assim, no pólo oposto da literatura erótica do divino marquês: lá onde o gozo é exclusão radical de todo outro, questão problemática da constituição do humano elevada à norma do mundo na radicalidade do capitalismo sem controle, ela, ao contrário, concebe a troca dos corpos, das formas e dos líquidos como inclusão amorosa e livre, em profundo respeito, que cada uma das suas personagens, despossuídas de tudo, oferece a quem encontra para amar e ser.

Não podemos deixar de ver aí um projeto utópico, que busca os corpos como fonte de sentidos perdidos, para se contrapor aos riscos iminentes que todos, despossuídos de tudo, corremos em nosso mundo.

Tales A.M. Ab'Sáber, 38, é psicanalista, professor da Escola da Cidade e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Desde criança, tenta aprender algo da sexualidade humana.

Leia mais
  • Leia dois capítulos de "Onze Minutos"

         

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