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30/09/2003 - 02h58

Caminho das Pedras: "Ópera é melhor que sexo"

JOÃO BATISTA NATALI
da Folha de S.Paulo

Pois foi exatamente esse o título de uma reportagem publicada em junho pelo "The Guardian", jornal britânico invejável pela qualidade de suas reportagens culturais. A autora, Jeanette Winterson, crítica de música, descreve as múltiplas e agradáveis sensações em que mergulha ao assistir a uma boa montagem. Ela é convincente. Talvez até tenha razão.

Patrícia Santos/Folha Imagem
Cena da ópera "Falstaff"

O que há de sedutor na comparação é o fato de ela trombar de frente com lugares-comuns que, de tanto circularem, acabam quase ganhando ares de verdade. Ópera "é chata". Ópera "é música de cantor que grita". Ópera "é sempre um dramalhão sem graça". Falam tão mal das óperas que não ter jamais assistido a uma delas pode até se tornar prova de refinamento estético e musical.

Esquisito, não é? Pois é.

Mas vamos dar um pulo à Florença de 1597 e encontrar um músico chamado Jacopo Peri (1561-1633). Foi ele quem escreveu "Dafne", mistura de teatro e canto que os historiadores consideram a certidão de nascimento da ópera.

A ópera nasceu como espetáculo de corte, representado em ambientes pequenos para um grupo reduzido de mecenas e seus convidados. Tornou-se "indústria" em Veneza, no século 18: um empresário amortiza os custos da produção com a venda de ingressos para determinado espetáculo. Criava-se o mercado lírico.

Mas por que é que os cantores "gritam"? O microfone de alta fidelidade existe há menos de meio século. E a ópera, há mais de 400 anos. Inevitável que os cantores tenham desenvolvido técnicas vocais com que não perdem a afinação ao manter a emissão de sons em torno de 90 decibéis. Só assim preencheriam, e ainda preenchem, o espaço de um teatro para 1.500 ouvintes ou mais.

A ópera foi também o laboratório em que nasceram recursos hoje utilizados na indústria do entretenimento. Em seus teatros surgiram os efeitos de iluminação (carvão incandescente com o facho de luz amplificado por um jogo de lentes, antes da invenção da eletricidade). Ou as trocas abruptas de cenários e figurinos, cortinas de fumaça das quais emergiam deuses e ninfas seminuas. Ou mesmo a música discreta, como a das trilhas sonoras. Em suma, a indústria da ilusão não nasceu com Hollywood.

A Itália foi o país em que a ópera se tornou mais popular. Existiam, no século 19, algo como 400 teatros com temporadas líricas regulares.

Mas a ópera também foi importante na Inglaterra, na França e, sobretudo, no mundo germânico. A partir do final do século 18 (Mozart foi um magnífico compositor no gênero), a ópera germânica (alemã e austríaca) já tinha bem pouco a ver com a italiana, na qual surgiriam Rossini e Verdi.

A ópera foi o mundo de divindades mitológicas ("O Anel dos Nibelungos", ciclo magistral de quatro óperas de Richard Wagner), de amores impossíveis ou frustrados ("La Traviata", de Verdi, "Tristão e Isolda", de Wagner, ou "La Bohème", de Puccini), de comédias deliciosas ("As Bodas de Fígaro", de Mozart), da sensualidade desenfreada ("Lulu", de Alban Berg) e de enredos que tentam tudo definir em termos do bem e do mal.

Óperas são hoje ainda compostas e estreadas. Mas o repertório é limitado. O musicólogo norte-americano Gustave Kobbe, antes de morrer, em 1918, publicou uma antologia, com 320 títulos, que ainda é obra de referência. Só 320? Talvez seja um pouco mais. O que importa é que o tempo é uma espécie de peneira, e com certeza nos chegaram do passado apenas as composições mais bonitas e bem escritas.

Por fim, quem acreditaria que a televisão tornou o rádio fora de moda? Ou que a invenção do cinema tornou desnecessária a existência do teatro? Pois junte o rádio, a televisão, o cinema e o teatro —e pode também juntar os musicais da Broadway e o circo de cavalinhos. Tudo isso, com muita técnica e muito refinamento artístico, resulta num gênero que tem nome. Chama-se ópera. Que talvez seja tão bom quanto ou, para alguns, melhor que sexo.

João Batista Natali, 55, é jornalista e tem doutorado em semiologia. Nos anos 70, foi correspondente da Folha em Paris. Gosta de música erudita desde a adolescência.

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