Folha Online sinapse  
30/09/2003 - 02h12

Íntegra: "O Brasil será sempre o país do futuro?"

da Folha de S.Paulo

Confira abaixo a primeira parte da transcrição da palestra "O Brasil será sempre o país do futuro?", com o economista Eduardo Giannetti, no quinto dia da "Semana Sinapse", mediado pelo editor de Dinheiro, Marcio Aith.

Eduardo Giannetti - Bom, então, vamos lá. Bom, obrigado Márcio, muito boa noite a todos. É uma satisfação enorme estar aqui no Mube participando dessa comemoração: primeiro ano de vida do caderno Sinapse, espero que seja o primeiro aniversário de muitos, seja o início de uma trajetória de sucesso do caderno, está tentando, eu acho, renovar um pouco o modo de se fazer jornalismo no Brasil, é muito bom e eu, além da honra do convite, aceitei o convite porque o tema, realmente, me encantou. Eu gostei da pergunta "O Brasil Será Sempre o País do Futuro?" e eu vou dividir a minha fala em duas etapas. Eu vou começar falando um pouco do que é ser um país do futuro, de maneira mais geral sem entrar especificamente na especificidade brasileira, caso brasileiro e na segunda etapa eu vou discutir um pouco o que pode ser o Brasil no futuro, tentar dar um pouco de recheio ao que se pode esperar do nosso país num horizonte de 15, 20 anos na época em que o Sinapse estiver completando a maioridade 2020, o que poderá ser o Brasil então.

Bom, eu vou começar com uma reflexão um pouco mais geral, eu vou falar por meia hora, que foi o que nós combinamos, depois nós vamos ter tempo para dialogar, conversar. Acho que o melhor de a gente estar junto aqui é exatamente poder interagir ao máximo, portanto, se eu ultrapassar o meu tempo regulamentar você me corta, porque é meia hora, o máximo.

Deixa eu começar falando um pouco da noção geral de país de futuro e comentar, inclusive, a pergunta que foi feita e que me encantou; "O Brasil Será Sempre o País do Futuro?". Há uma premissa otimista nessa pergunta. O que está embutida nessa pergunta? A idéia de que o Brasil ainda é o país do futuro. Nós podíamos aqui estar dizendo: quando o Brasil deixou de ser o país do futuro. Seria uma pergunta muito amarga. Eu compartilho a pergunta, porque eu acho que o Brasil continua prometendo muito. Continua sendo de maneira bem definida, o país do futuro. Não é fácil manter a condição de país do futuro por tanto tempo. Há mérito nisso. Você manter a expectativa de que o seu futuro promete muito e o Brasil, eu morei muitos anos na Inglaterra e uma das brincadeiras que eu fazia com meus colegas ingleses, quando eles ironizavam a condição brasileira de país do futuro: era que nenhum outro país do mundo tinha sido o país do futuro por tanto tempo. E, há um mérito nisso, você manter a esperança de que o país promete, o país tem futuro.

Bom, essa é uma primeira observação, a segunda observação é o que vem a ser exatamente a condição de país do futuro. De novo eu me reporto à minha estadia longa de sete anos na Inglaterra. Um dia eu me dei conta - foi um momento muito, assim, nítido de experiência -, que um inglês, por mais que ele forçasse a sua imaginação, ele jamais conseguiria acreditar que a Inglaterra seria, no futuro, algo superior ao que tinha sido no passado, tanto do ponto de vista de condição política ou geopolítica ou econômica quanto culturalmente. Quer dizer, nenhum inglês acredita que ainda vá surgir na literatura inglesa um Shakespeare, outro Shakespeare ou que vá surgir outro Francis Bacon ou que vá surgir outro Newton.

Todo inglês, quando pensa no seu país, tem o centro de gravidade no passado. Eles já viveram as coisas mais importantes e já fizeram as coisas mais valiosas que eles concebem. Aí eu falei: puxa, a nossa condição brasileira é exatamente o contrário. Nós não fizemos praticamente nada. Agora, tudo o que nós temos por fazer de valioso está no futuro. O centro de gravidade da nossa imaginação aponta para o futuro. Nós não conseguimos conceber que o nosso futuro seja ainda pior do que o nosso passado. Então, é uma condição diferente. Eu acho que a idéia de país do futuro nós podemos começar contrapondo com a idéia de país do passado. O país não é mais tão jovem assim, afinal de contas temos mais de 500 anos nas costas, mas que continua sendo mais, ele projeta no imaginário muito mais à frente do que ele é nostálgico, que fez das grandezas feitos e realizações do passado.

Bom, o terceiro ponto geral, que eu queria fazer, antes de entrar, realmente, na visão do futuro brasileiro, diz respeito aos modos como nós pensamos e abordamos o futuro. Eu acho que tem três modalidades básicas pelas quais nós tentamos preencher o vácuo de um futuro que nos interroga. Eu estou falando aqui em caráter bem geral.

A primeira delas é a tentativa de antecipar e prever o futuro, conhecer o futuro, o que será? A pergunta aqui você está tentando fazer uma previsão, você está tentando acertar e a pergunta relevante é: que será? Você trabalha aqui com a noção de probabilidade e você tenta antecipar o mais fielmente, o mais verdadeiramente o que virá. Essa é uma modalidade.

A segunda modalidade eu chamaria: delimitação do campo do possível. É muito interessante saber até onde a realidade pode se estender à frente, o pior dos mundos? O melhor dos mundos? O que pode ser? A pergunta aqui não é o que será? Mas o que pode ser? Até onde pode ir? Nós trabalhamos aqui não com a noção do previsível, dos provável, mas com a noção do exequível, do que é possível, é um outro campo lógico, o exequível. É uma delimitação do que pode acontecer. Essa é uma segunda modalidade.

A terceira modalidade é a noção, é a expressão da vontade: o que sonhamos? Eu não estou no campo do provável, não estou no campo do exequível, mas estou no campo do desejável. Para onde eu desejo que as coisas caminhem. É o campo da vontade, a expressão de um querer. É o sonho, que sonhamos ser. Eu não estou perguntando o que será nem o que pode ser, eu estou tentando formular um sonho que sonhamos ser.

Bom, aí nós podemos trabalhar um pouco as relações entre essas três formas de tentar preencher o vácuo do futuro que nos interroga e é desconhecido. Como economista - e eu acho que vou ser muito pouco economista aqui ao contrário do que o Márcio disse na apresentação, mas -, o meu treino, o de todos os economistas é exatamente tentar disciplinar o que sonhamos ser à luz do que é provável e do que é exequível. Todo trabalho do economista de certa maneira é jogar baldes de água fria na imaginação daqueles que extrapolam no sonho e embarcam na utopia, por exemplo, imaginando ou propondo coisas que extrapolam o campo do possível, do exequível. O economista é um mestre na tentativa de disciplinar os sonhos exaltados de todos aqueles que imaginam que mais coisas podem acontecer do que são possíveis. O treino do economista é muito esse: é ser o mais objetivo possível em relação ao futuro, que é mais provável e, no mínimo, estabelecer e demarcar com muita clareza o que é possível. É o que o Lula vive fazendo comigo e o Palocci recentemente, quer dizer, estamos fazendo o possível: é discurso de economista.

Agora, tem o outro lado da moeda e é isso que eu queria que lhes desse talvez o tom da minha mensagem aqui. No campo das relações humanas a relação é de ida e volta. Por quê? Porque o previsível e o possível depende muito da força do nosso querer. E, aí a coisa fica mais complicada. Dependendo da nossa capacidade de sonhar e querer com competência, nós podemos estender o campo do possível, podemos, portanto, alterar o que seria previsível não fosse o nosso querer e a nossa vontade. Então aí a coisa complica.

Você não está falando de um sistema determinístico, fechado, que você pode fazer uma previsão completamente de fora, mas você está falando de um campo de relações em que a força do querer e a competência do querer alteram objetivamente o curso dos acontecimentos. Muito vai depender, portanto, dessa inter-relação. Eu acho que não podemos ir demais nem para um lado nem para o outro. O sonho totalmente desligado da realidade não vinga, é utópico no mau sentido da palavra, mas, por outro lado, a realidade, desprovida de sonhos definha, é anêmica. O que nós podemos ser se torna muito mesquinho se nós não alimentarmos essa realidade com os nossos sonhos, com a força do nosso querer, da nossa vontade.

Então, eu queria - no que eu vou falar, a partir de agora, que é a segunda metade -, ter essa atenção permanentemente presente. De um lado, realiza, mas de outro lado ousadia e a tensão essas duas coisas o provável e o exequível em tensão com o desejável, com o sonhado, acho que é da tensão profícua entre essas duas forças que a gente pode chegar a um país que mereça ser sonhado. Porque se for só de um lado é a utopia no pior sentido do termo e se for do outro lado é o não-projeto, é o não-país.

Bom, deixem-me falar um pouco então agora sobre o recheio do que pode ser uma visão de Brasil. E, evidente, tudo o que eu estou falando é sujeito a debate, questionamento, controvérsia, eu estou apenas expondo aqui o que me pareceu ser uma visão talvez compartilhada por alguns ou por muitos de um Brasil que mereça ser sonhado, um país que, realmente, viva o que ele promete e o que ele vem prometendo há tanto tempo.

Eu acho que nós temos que trabalhar nessa visão de futuro em duas dimensões, uma dimensão material das relações sociais da economia, especialmente a questão da pobreza e da desigualdade e temos que, ao mesmo tempo, isso eu vou falar em seguida, pensar também na dimensão cultural do sonho brasileiro, quer dizer, quais são os valores que podem nos diferenciar e o que nós poderemos dizer de novo à cultura e à civilização moderna, caso consigamos realizar nossos sonhos.

O que esperar do Brasil no futuro? Digamos 2020, que eu vou pegar como uma data emblemática, que é quando o caderno Sinapse vai estar completando a maioridade 18. Bom 17 anos nos separam de 2020. Seria utópico, no mau sentido imaginar que o Brasil irá, nesse curto intervalo de tempo, é pouco tempo, superar suas mazelas de ordem material. Temos 503 anos de história pelas costas, de uma história que não é fácil carregar nas costas. Nossos problemas seculares de convivência prática: saúde, educação básica, privação, violência e desigualdade não se prestam a curas milagrosas e arroubos voluntaristas. Grandes avanços, é claro, podem e devem ser feitos, mas não existem atalhos. Mesmo supondo que tudo transcorra tão bem quanto se possa sonhar em áreas críticas no combate à pobreza, numa formação de capital humano, planejamento familiar e a geração de empregos, por meio de uma reforma no mercado de trabalho e a retomada do crescimento, é forçoso reconhecer que o caminho à frente será longo e exigirá o trabalho consistente de mais de uma geração de brasileiros. Se tudo correr bem, não me parece utópico acreditar que em 2020 tenhamos conseguido reduzir em larga medida, ainda que não eliminar por completo a distância que nos separa dos indicadores sociais dos países desenvolvidos. O objetivo maior aqui, no meu entendimento, é a equidade.

O desenvolvimento como ampliação do campo de oportunidades aberto a cada cidadão, a cada indivíduo, independentemente, da sua origem social, da sua cor de pele, da sua classe e da família que veio ao mundo. Eu acho que a liberdade negativa, a ausência de restrições externas é complementada pelo que o Zayvalin(?) chama de verdade positiva: a capacitação para o exercício da liberdade. Não adianta dizer que uma pessoa é livre para ler Machado de Assis se ela não for alfabetizada, essa liberdade é completamente vazia e não pensa em realidade prática. A liberdade no sentido positivo é a capacitação para que o indivíduo possa exercer e praticar a liberdade em sentido pleno.

O meu objetivo aqui, a minha bandeira, o meu sonho de Brasil na dimensão social material eu acho que é bem resumida num lema: a igualdade de resultado oprime a igualdade de oportunidade liberta. Eu gostaria de caminhar para um Brasil em que as pessoas tivessem muito maior condições de realizar o seu pleno potencial, o seu talento, os seus valores. Eu sou contrário à idéia de igualitarismo como ponto de chegada. Eu acho que as pessoas têm valores diferente, inclusive, em relação ao próprio valor econômico, mas eu sou totalmente favorável ao máximo de igualdade (...) é de resultado oprime se ela for imposta autoritariamente de fora, mas a igualdade de oportunidade liberta, permite, inclusive, o aproveitamento social de talentos e de empenhos e de trabalhos e de competências, que ficam hoje soterrados por uma falta mínima de capacitação de ampla parcela da população brasileira. Aí a figura que um economista chamava "do Shakespeare analfabeto", sujeito que teria produzido uma obra magistral se tivesse sido alfabetizado, como não foi, ele virou trombadinha. Isso é um enorme, um incalculável desperdício humano, econômico existencial.

Bom, eu não vou entrar em muitos detalhes aqui sobre as medidas práticas que poderiam, a curto prazo, nos aproximar de igualdade de oportunidade, de equidade. Vou deixar isso, se houver interesse no debate nós podemos voltar ao tema.

Eu gostaria de elaborar um pouco agora a visão ética de um Brasil que mereça ser sonhado, a visão cultural. Quais são os valores da nossa convivência que podem nos diferenciar, que podem contribuir nesse mundo em que o Brasil se insere, para nos justificar a nós mesmos e aos olhos dos demais. A superação da pobreza que debilita e restringe a margem de escolha de tantos brasileiros, representa a dimensão prática e material de um sonho compartilhado de nação. A realidade objetiva, entretanto, não é toda a realidade. Cada cultura incorpora um sonho de felicidade.

A vida das nações, não menos que a dos indivíduos é vivida, em larga medida, na imaginação. Para além da dimensão pragmática a que eu me reportei há pouco, qual a constelação de valores que anima o nosso sonhar coletivo? Existirá uma utopia mobilizadora da alma e das energias dos brasileiros? O que o Brasil teria a dizer ao mundo se pudesse superar as mazelas do seu atraso socioeconômico? O rei Leopoldo 2º, da Bélgica, dizia sobre o seu país, cito: " um país pequeno, com horizontes pequenos. Será essa a vocação brasileira? Ouso crer que não.

Eu me reporto a uma outra formulação que encontrei num romance de Dostoiévski, chamado "Os Possuídos" em que ele diz: "Se um grande povo não acreditar que a verdade somente pode ser encontrada nele mesmo, se ele não crer que ele apenas está apto e destinado a se erguer e redimir a todos por meio da sua verdade, ele prontamente se rebaixa à condição de material etnográfico e não de um grande povo. Uma nação que perde esta crença deixa de ser uma nação".

Como ler esse desafio lançado por Dostoievsky e não se pôr imediatamente a pensar no Brasil ideal que pulsa e vibra no coração do Brasil real. Um Brasil que mereça ser sonhado não pode ser mera fabulação da imaginação caprichosa. Ele precisa partir do que efetivamente somos, das virtudes e defeitos que se entrelaçam em nosso destino de nação. Ele precisa reconhecer os limites e condicionantes herdados do passado para traçar o mapa do que podemos e o norte do que sonhamos ser. É garimpando o cascalho de nossas conquistas e revezes que chegaremos à lapidação dos nossos saberes e potencialidades.

O segredo da utopia, no bom sentido, reside na arte de desentranhar a luz das trevas. Há um futuro luminoso querendo despertar das ameaças e promessas do presente. Que país não poderia ser o nosso? Quando penso no Brasil ideal que povoa e anima os meus sonhos não nos vejo metidos a conquistadores, donos da verdade ou fabricante de impérios. Não nos vejo trocando a alma pelo bezerro de ouro ou abrindo mão da nossa compreensão lúdica e amável da vida na luta por uma "pole position" na escalada cega do consumo e da destruição ecológica. Se a civilização da máquina, da competição feroz e do tempo medido a conta-gotas tem alguma razão de ser, então, ela existe para libertar os homens da servidão ao econômico e não para enredá-los em perpétua e sempre renovada corrida armamentista do consumo e da acumulação.

Do que nos fala a utopia de um Brasil capaz de nos fazer acreditar que podemos ser mais, muito mais que simples material etnográfico para diversão de turistas e antropólogos? Ela nos fala de um ideal de vida assentado na tranquilidade de ser o que se é, como no canto de violão de João Gilberto. Ela nos fala da existência natural do que é belo e da busca da perfeição pela depuração de tudo que a afasta do essencial. Ela nos fala de um outro Brasil nem mais verdadeiro nem mais falso que o existente, apenas reconciliado consigo próprio. De um Brasil altivo e aberto ao mundo, mas curado da doença infantil colonial do progressismo macaqueador e do seu avesso o nacionalismo tatu. De um Brasil que trabalha o suficiente, mas nem por isso deixa de transpirar libido por todos os poros. Um Brasil modesto no bolso, mas craque no pé. De um Brasil, em suma, capaz de apurar a forma da convivência, sem perder o fogo dos afetos. Uma nação que se educa e se civiliza, mas mantém a chama da vitalidade urubá, filtrada pela ternura portuguesa. Uma nação que poupa e cuida da Previdência, mas nem por isso perde a disponibilidade Tupi para o folguedo e alegria Tupi and not Tupi; not Tupi or not Tupi. Um Brasil feliz.

Sob a luz austera do provável, da previsão e do exequível, a delimitação do campo do possível, essa utopia, esse sonho de Brasil pode parecer distante demais para que nós acreditemos nele. O sonho cultural de um Brasil brasileiro, não menos que o sonho social de um Brasil mais justo e generoso, reclama tempo. O futuro, entretanto, será o que fizermos dele e vai depender muito da força e da competência do nosso querer. Por mais remota que pareça, a visão do Brasil ideal não é uma abstração vazia. A força do seu apelo renova a esperança e ilumina, desde já o nosso horizonte imaginativo.

Basicamente era isso o que eu queria colocar como provocação aqui para nós podermos conversar se o Brasil será sempre o país do futuro. Obrigado.

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