Folha Online sinapse  
30/09/2003 - 02h14

Íntegra: "O Brasil será sempre o país do futuro?" (perguntas)

da Folha de S.Paulo

Confira abaixo a segunda parte da transcrição da palestra "O Brasil será sempre o país do futuro?", com o economista Eduardo Giannetti, no quinto dia da "Semana Sinapse", mediado pelo editor de Dinheiro, Marcio Aith.

Folha - Eu vou usar a minha prerrogativa de mediador para fazer a primeira pergunta. Muito sabiamente, Eduardo, você disse que o futuro deve ser buscado como produto da tensão entre o desejável e o exequível e também sabiamente deu uma dimensão um pouco mais ampla a futuro do que a simples dimensão econômica. Agora, imaginando também que quando Dostoiévski escreveu aquela obra não existia risco-país, dívida externa, fluxos internacionais de capital, endividamento e prisão de política?

Giannetti -
Não, prisão política havia tanto que ele foi preso.

Folha - Prisão de políticas econômica, claro. Como é que ficaria a situação do Brasil? Onde é que o Brasil poderia avançar caso economicamente, nos outros aspectos não-econômicos se nós economicamente estivermos fadados ao não-crescimento pelos próximos 20 anos. Dá para avançar em outro setor? Em outra área?

Giannetti -
Não, eu não acho que, primeiro - eu vou responder a sua pergunta em várias partes -, eu não entendo que nós estamos condenados ao não-crescimento nos próximos 20 anos. O que eu gostaria de dizer é que eu acho que o fetiche do crescimento nós precisamos nos libertar dele. Eu andei estudando muito a questão da felicidade, ou seja, os indicadores de bem-estar subjetivo. A maneira como as pessoas se sentem, o grau de satisfação que elas têm com a sua vida. E, um dos achados mais surpreendentes com essa literatura de pesquisa é o seguinte: não há qualquer evidência de que, a partir de cerca de US$ 10 mil de renda média por habitante, acréscimos de renda tragam ganhos de bem-estar subjetivo para a população. Essa é uma ótima notícia para o Brasil e é parte da literatura internacional hoje. Saiu um artigo na "Economist", duas semanas atrás, exatamente sobre esse assunto. Veja e essa é uma renda média, por habitante, medida em dólar, pela paridade do poder de compra da moeda, não pela taxa de câmbio. Pela paridade de compra da moeda o Brasil está hoje com uma renda per capita de US$ 6.500, US$ 7.000.

Nós estamos muito mais próximos do nível de renda média por habitante. A partir do qual não há mais evidência de que aumento de renda melhore o bem-estar, a felicidade do que nós poderíamos supor se nós nos compararmos com os US$ 30 mil, US$ 40 mil, US$ 50 mil de renda per capita dos países mais ricos. É lógico que o caso brasileiro fica muito piorado pela desigualdade. Embora nós tenhamos uma renda média e estejamos caminhando para o nível dos US$ 10 mil, que é o nível mais ou menos de Irlanda, Coréia do Sul, Portugal, nós temos um quadro de desigualdade que complica muito a situação.

Por quê? Entre outras coisas essa desigualdade exacerba muito o valor do econômico na nossa sociedade. quem não tem passa a valorizar o econômico muito mais do que deveria, por razões muito compreensíveis. Falta-lhe o que é mais indispensável e as fantasias ficam muito elevadas também quando vêem os milionários e os ricos exibindo as suas posses e os seus corpos reluzentes aí nas revistas. Por outro lado, quem tem, tem muito poder por ter. Então oprime na imaginação quem não tem. A nossa desigualdade, dá ao valor econômico na nossa convivência uma dimensão muito maior do que precisaria ou deveria ter. Brilha aos olhos de quem falta e dá muito poder aos olhos de quem tem.

Então, se nós reduzirmos as desigualdades e crescermos modestamente. Não é muito. Passar de US$ 6.500, US$ 7.000 para US$ 10 mil é uma coisa perfeitamente exequível em pouco espaço de tempo. Se nós conseguirmos essas duas coisas. Não são triviais, mas não são coisas totalmente fora do nosso alcance, eu acho que aí a possibilidade de nós amadurecermos um projeto próprio de Brasil, que não esteja escravizado ao econômico, como é hoje, cresce muito. E é por aí que eu raciocinaria. Eu acho que o mundo tem que se libertar desse fetiche do crescimento como se o crescimento, o consumo fosse capaz de resolver o problema da felicidade humana. A renda, por si só, atendesse ao nosso anseio de realização existencial que é a ética de uma vida bem conduzida e realizada.

Público - ... (Inaudível).

Giannetti -
Bom, a primeira pergunta eu não respondo em hipótese alguma porque eu sou completamente independente. Eu posso estar errado em tudo o que eu falo, mas eu não sou uma pessoa partidária. Eu não tenho, realmente, nenhuma vinculação e nem declaro meu voto, talvez, nem para mim mesmo. Tem uma coisa que eu me treinei a fazer na vida, foi buscar olhar a realidade com o máximo de isenção e o mínimo de parte pris ideológico partidário, sentido partidário. Eu me reservo o direito de criticar e elogiar aquilo que eu acho que é certo ou errado, seja lá quem for que governe o país ou esteja na oposição. Portanto, realmente, posso estar errado em tudo o que eu falo, mas, uma das coisas que eu tenho é uma certa independência de análise e eu zelo muito por isso. A primeira pergunta eu não tenho como responder. Torço para todos. Todo governo brasileiro eu torço para que ele acerte. Jamais torcerei para que um governo brasileiro erre.

A questão a Reforma Agrária acho que é um tema muito interessante. Acho que o Brasil tem um problema muito sério de má distribuição geográfica da população. Nós temos mais de 30% da população brasileira vivendo em nove áreas metropolitanas. Num país da dimensão continental do Brasil isso é um despropósito. Agora, por outro lado, essa idéia da pequena propriedade rural, da família camponesa auto-suficiente está absolutamente condenada pela tecnologia, pelas condições do mundo moderno. Outro dia conversando com um membro do alto escalão do governo, ele me deu um número que eu achei estarrecedor.

Eu confirmei com ele esse número depois, mas é isso mesmo? Ele falou: é, 80% dos assentamentos feitos até hoje na Reforma Agrária Brasileira não vingaram. Não geraram atividade viável. É uma enganação total. Nós estamos gastando um dinheirão em políticas públicas, em política social, sem resultado, ou seja, ser sem-terra para muita gente virou um modo de vida. Virou um modo de vida. Isso está errado. É um problema de desemprego urbano que está gerando, está...

(...)

Folha - Tem outra pergunta aqui que eu acho bastante interessante: certa noite sonhei que todos os brasileiros acordaram com R 1 mil no bolso. O que aconteceria com a economia brasileira se isso ocorresse? Eu a acho interessante porque com o programa de microfinanças do Lula, eles estão acordando pelo menos com R 300, então, isso não está tão longe da realidade, mas, a pergunta é: tem alguma relação com a felicidade e com o futuro? O volume de dinheiro no bolso?

Giannetti -
Essa pergunta me fez lembrar de uma idéia que o Ricardo Paes de Barros, que é um grande pesquisador de políticas sociais, no Ipea, do Rio, uma idéia que ele teve, experimento mental: os gastos sociais do governo brasileiro são tão mal feitos. Eles são tão viezados para quem não precisa. Os gastos previdenciários, os gastos educacionais, os gastos com saúde, moradia pública são tão mal focados que, dizia o Ricardo Paes de Barros, que se um helicóptero jogasse todo o dinheiro gasto pelo dinheiro brasileiro em programas sociais, ele seria melhor distribuído socialmente do que sendo como é. Se nós pegássemos os 20% do PIB brasileiros que o Estado gasta anualmente em programas sociais 12% do PIB apenas com aposentadorias, que beneficiam uma parcela diminuta, uma elite pequena de aposentados que ganham muito bem.

Se o governo pegasse esses 20% da renda nacional, que gasta por ano em programas sociais, e jogasse de helicóptero e deixasse a população apanhar o que caísse, nós teríamos um efeito muito melhor sobre a distribuição de renda do que a maneira como é feita. Só para vocês terem uma idéia, vou dar um número só. O déficit da Previdência do setor público no Brasil, que atende a 3 milhões de inativos e pensionistas da União, dos Estados e dos municípios, o déficit da Previdência do setor público é maior do que todo gasto do Estado brasileiro em ensino fundamental, que atende a 37 milhões de crianças em idade escolar. Nós estamos falando de 3 milhões de inativos e pensionistas da União estados e municípios versus 37 milhões de crianças, em idade escolar, na rede do ensino público. O déficit da Previdência é 5,5% do PIB, previdência do setor público, não estou falando em INSS, o gasto do Estado no seu conjunto no ensino fundamental é 4,3% do PIB. Um país que comete uma enormidade dessas está se condenando à miséria e à ignorância perpétua, porque em vez de investir no futuro, na formação, na educação da criança, do jovem, ele está desinvestindo, num passado de esbanjamento e de privilégio.

Essa reforma da Previdência é ótimo que tenha sido feita, mas ela reduz em 0,5% do PIB esse déficit de 5,5% do PIB e vejam a celeuma que foi para aprovar. Mais um número que é preocupante. Esse é exatamente o anti-sonho, é o pesadelo do Brasil. Oitenta por cento das crianças que estão hoje no ensino fundamental não completam o ensino fundamental. Embora nós tenhamos conseguido no governo Fernando Henrique Cardoso aumentar muito a cobertura da rede de ensino público, ou seja, 97% das crianças em idade escolar frequenta o ensino fundamental, a taxa de evasão ainda continua muito alta, repetência e evasão.

Significa que 80% das crianças de famílias - desculpe, é 80% das crianças de famílias pobres, que não completam o ensino fundamental. Mas é claro, a metade das crianças brasileiras, porque metade das crianças brasileiras está nas famílias pobres. Então, é metade de 80% é 40% do total. Esse é o número certo, eu falei o número errado. É 40% das crianças que não completa o ensino fundamental. Daqui a 17 anos, quando o Sinapse estiver completando a maioridade 40% dos adultos não vai ter completado o ensino fundamental, se continuar como está. É isso. Então, ótimo que aumentou muito o grau de inserção das crianças na rede de ensino. É péssimo e não podemos esconder isso, o fato de que a evasão e a repetência continuam fazendo com que 80% das crianças, em famílias pobres não termine esse ciclo educacional.

Deixa eu falar R$ 1 mil no bolso de cada brasileiro. Seria, realmente, maravilhoso. Agora, precisa saber de onde vão sair. Se for recursos que hoje são gastos mal pelo Estado eu sou plenamente a favor. Se for para imprimir dinheirinho novo e inflacionar a economia vai custar muito caro para o país, provavelmente, mais do que o benefício que será dado, que trará o gasto de R$ 1 mil por cabeça. A questão é como vai ser financiado.

Folha - Várias perguntas sobre educação já foram respondidas, espero. Tem várias aqui, eu preciso acelerar. Uma interessante sobre mobilidade social no Brasil. A pessoa diz que a mobilidade social no Brasil está próxima de zero e diz também que isso ocorre em função do avanço de tecnologia no mundo. Além disso, a pessoa pergunta como o país pode chegar no futuro com o sistema financeiro internacional, totalmente desordenado, com um poder muito grande sobre as nações? Acho que a pergunta tem um pouco a ver com a autodeterminação do país nessa situação mundial de hoje?

Giannetti -
É, a mobilidade social no Brasil, realmente, é muito pequena. O que significa isso? A condição social da família em que o indivíduo vem ao mundo determina, quase que integralmente, prevê quase que integralmente o seu nível de renda, que é o contrário da igualdade de oportunidades. Dependendo do azar ou da sorte da família em que o indivíduo veio, algum, o seu futuro econômico já está praticamente selado, que é exatamente o contrário da idéia de mobilidade social. Tem um filósofo americano chamado John Rawls, que propõe uma idéia interessante: a boa sociedade é aquela que nós escolheríamos na C, se nós não pudéssemos escolher de antemão, quem nós seríamos e em que família nós nasceríamos nela. Nós chegaríamos à boa sociedade, se nós fizéssemos um contrato entre nós para determinar as características dessa sociedade que nós escolheríamos nascer nessas condições. Você não sabe a cor da sua pele, não sabe o sexo, não sabe a condição social da sua família. Você não sabe nada, é o princípio da escolha sobre o véu da ignorância e você tem que escolher uma sociedade para nascer. Quais seriam as características da sociedade em que você escolheria vir ao mundo sem poder saber de antemão sua raça, sua pele, sua condição social, todas as características que você vai ter?

Ele propõe duas coisas: as pessoas racionais chegariam a um acordo, um contrato. Teria duas características: primeiro, você escolheria a sociedade em que a condição do menos favorecido é menos ruim, quer dizer, protegeria do pior. Segundo, você não quer ficar nessa condição o resto da vida. Você escolheria a sociedade que em que há maior mobilidade e maior possibilidade de mudança, a partir de seu próprio empenho e seu próprio talento. Me parece uma proposta bastante razoável. Quer olhar socialmente, avaliar eticamente o estado socioeconômico? Olhe para a condição do menos favorecido nessa sociedade.

Quanto melhor for a condição do menos favorecido, melhor a sociedade. Vejam que não é igualitarismo isso. Essa sociedade admite desigualdade, corretamente, eticamente correto.As desigualdades que surgirem, a partir dai serão plenamente respeitadas e têm que ser integralmente aceitas, porque as pessoas são diferentes e tem valores diferentes. é um mundo extremamente opressivo em que não importa o que você faça na chegada você vai ter que ser igual. Eu acho que não é desejado. Então, eu acho que é um bom critério de avaliação? A segunda pergunta qual era? Ah, a escravidão ao mercado financeiro internacional dependente.

É o problema do Brasil, o Brasil é muito mais vulnerável do que outros países. Por quê? Porque nós poupamos pouco, queremos crescer rápido e acabamos pegando poupança externa. E, aí ficamos reclamando que temos que pagar os juros, que temos que remeter os lucros. Outro dia eu estava lendo Machado de Assis e tem um conto belíssimo chamado "O Empréstimo". Um cidadão que tem a vocação da riqueza, mas sem a vocação do trabalho, O Empréstimo. O Brasil, o Brasil tem a vocação do crescimento, mas sem a vocação da poupança, resultante: o empréstimo, o empréstimo externo. Depois tem que ir ao FMI e fala, estou escravo do FMI. Bom, o FMI não veio aqui, nós é que fomos lá. É lamentável, mas é isso. Os outros países não estão nem aí para o FMI. Tem um ou dois países no mundo hoje sujeitos à condicionante do FMI, o Brasil é um deles.

E a Coréia do Sul que cresceu espetacularmente nas últimas décadas, está reclamando da sua dependência, da sua vulnerabilidade externa? Não adianta. Isso não é uma coisa desse governo ou de outro governo. é um padrão brasileiro. Nós sempre tivemos a vocação do crescimento sem a vocação da poupança. Aí vira crise de balanço de pagamentos e não vira inflação. E, aí cria-se esse fantasma: não estamos escravizados às forças ocultas do mercado financeiro internacional. O FMI veio aqui e nos impôs essa camisa de força terrível. E agora o governo do PT está aí e vai precisar renovar o acordo com o fundo. Não, hoje está sacando uma parte dos empréstimos do outro acordo. Vai ter um novo acordo. Vai precisar. Agora, o mundo não está conspirando contra o Brasil. Seria delicioso imaginar que nós estamos oprimidos porque o mundo quer o nosso mal. Eles não suportam a idéia de o Brasil se dar bem. Eles vão ficar aqui olhando, conspirando. Não, vamos impedir. Infelizmente, não é isso. Seria muito confortável acreditar que é esse o nosso problema. Não é., não é.

Folha - Outra pergunta interessante aqui: sem o fetiche do crescimento, o fetiche do consumo, o senhor está propondo um sistema alternativo ao capitalismo? Ou em outras palavras para que serve o capitalismo se a gente não tiver o fetiche do crescimento nem o do consumo?

E uma outra interessante aqui é sobre a declaração do Celso Furtado, recentemente, de que o Brasil precisa planejar a sua moratória e só com a moratória a gente poderia chegar a uma visão alternativa a essa que a gente tem vivido desde janeiro?

R - Giannetti -
Bom, eu não vi essa declaração do Celso Furtado. Ele propôs uma moratória da dívida interna? Da dívida externa? Qual?

Folha - Ele propôs uma moratória de ambas.

Giannetti -
Ambas?

Folha - É de ambas, ele diz que o Brasil, ele disse isso num seminário da UFRJ há alguns dias com a Maria Conceição Tavares, três perguntas sobre o tema.

Giannetti -
Olha, nós tivemos o calote do Collor, tivemos a moratória da dívida externa em 87, eu acho que qualquer avaliação minimamente isenta mostra que não ajudaram em nada o país a resolver suas dificuldades, pelo contrário, atrapalharam ainda mais o país. Pouco tempo atrás eu estava me lembrando na crise cambial de 99, o Fernando Henrique Cardoso teve que vir a público e declarar textualmente: eu não sou homem de confisco.

Não é disso que depende. Se ele fosse temperamentalmente um homem de confisco já tinha confiscado. Isso nos atrapalha muito, essa fragilidade institucional. Depois, as pessoas se surpreendem: mas, por que ninguém quer poupar no longo prazo em reais? Na moeda nacional? Por que toda poupança brasileira em reais ou em ativos denominados em real é de curto prazo? Bom, porque é um país em que se o presidente acordar com a pá virada, ele confisca. Nós não temos proteção nenhuma. Enquanto a gente não construir uma moeda que seja reserva de valor, confiável, nós não vamos ter poupança de longo prazo na nossa própria moeda. É aquela história, a festa está boa, mas é bom ficar perto da porta. A festa está boa, o juro é maravilhoso, mas está todo mundo perto da porta.

Folha - Encostado na parede.

Giannetti -
Vem o Celso Furtado e fala isso, começa a sair e a porta é pequena. Realmente, eu acho irresponsável uma declaração dessas.

Folha - O fetiche do consumo, qual é o problema com o fetiche do consumo?

Giannetti -
Eu sou totalmente contra o fetiche do consumo. Eu acho que nós exacerbamos enormemente o econômico na nossa convivência. Isso é uma coisa tremendamente obscurantista. O valor que se atribui hoje à dimensão econômica na existência humana, eu acho que é uma das coisas mais inacreditáveis. Eu digo isso pensando nos grandes economistas do século 19. Os grandes economistas do século 19 imaginavam que a humanidade, depois que acumulasse um certo capital e adquirisse uma certa tecnologia se libertaria de uma vez por todas do reino da necessidade ou da escravidão ao econômico.

O Keynes, por exemplo, escreveu um ensaio, possibilidades econômicas para os nossos netos, porque ele previa, que em pouco tempo, 50 anos, já teríamos acumulado tanto capital, que as pessoas poderiam viver outros valores, que não aquela morbidez sórdida, como ele fala, que é o apego ao dinheiro. Se você for olhar a humanidade avançou mais economicamente do que o Keynes supunha. Mas, o apego ao dinheiro, como valor, só fez aumentar. Nós estamos, hoje em dia, muito aquém do que Keynes imaginava em termos de amadurecimento ético nessa subordinação do econômico a outros valores. Eu acho que a economia devia ser como a saúde.

A saúde é uma coisa que quando é boa, você se esquece dela e pode viver sua vida plenamente. A saúde existe para libertar o homem, não para escravizá-lo. Nós estamos num sistema econômico em que quanto mais se avança, mais se descobre enredado ao econômico. Quando mais saudável o organismo, mais ele está obcecado em se tornar mais próspero e acumular mais. Isso não tem fim. é uma corrida armamentista do consumo. Até aí eu vou. Eu começo a ficar um pouco desconfiado, quando se atribui isso a um sistema, chamado capitalismo. Não é. aliás, eu já não sei mais o que significa essa palavra. Nós nos acomodamos a esse termo capitalismo e estamos confortavelmente imaginando que ele explique alguma coisa, mas será que tem sentido usar o mesmo termo para descrever o sistema econômico que existe desde o século 17? E imaginar que tem uma sequência bem comportada de sistemas econômicos? Depois do capitalismo virá o socialismo e depois o comunismo?

De tempos em tempos a gente tem que rever a nossa mobília conceitual. Eu acho que essas noções herdadas do século 19 já fizeram a sua parte, já contribuíram com o que tinham que contribuir. Não me ajuda muito a entender o mundo em que a gente vive, invocar essas figurar holísticas explicativas de tudo como as contradições do capitalismo. quando eu estava na faculdade a gente tudo remetia ao capitalismo. Tinha uma epidemia de meningite em São Paulo, ah eram as contradições do capitalismo. Em última instância mais uma evidência de que o capitalismo tinha consequências terríveis para o bem-estar da população. O Schumpeter, uma vez, fez uma piadinha, isso lá atrás na década de 30, 40, teve um terrível terremoto no Japão e o Schumpeter, economista austríaco, disse: bom, pelo menos um benefício esse terremoto teve: ninguém pôde acusar o capitalismo de ser responsável por ele.

Folha - Várias perguntas sobre o Fome Zero e reformas Tributária e Previdenciária. Tem alguma relação com o nosso futuro? Nos aproxima dele ou nos afasta dele?

Giannetti -
Não, reforma Previdenciária eu já falei é um quadro grave. Um país de estrutura etária jovem com um gasto previdenciário de país velho. Tem algo muito errado nisso. Nós estamos gastando 12% do PIB com Previdência, gasto total, não estou falando do déficit. Os países europeus, que são muito mais idosos do que nós estão gastando 14% com aposentadoria. Só que se você for ver a proporção de idosos lá e cá era para o Brasil estar gastando a metade do que gasta. Não era para estar gastando 12% era para estar gastando 6% se nós gastássemos proporcionalmente o mesmo que os países europeus gastam. Tem alguma coisa profundamente errada e nós sabemos que é especialmente na previdência do setor público.

Fome Zero, bom, acho que não há uma pessoa que possa ser contra um programa social de assistência a quem tem fome. Não há a menor dúvida.. a preocupação que tem que ter é se isso está criando condições de resolver em caráter permanente o problema ou é apenas um cordão umbilical que à-toa, à-toa se rompe e reconstitui um quadro terrível de privação alimentar. Pouco tempo atrás a minha atividade de palestrante me levou a dois lugares: me levou às Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, cinturão da soja, cinturão da soja, lugar extremamente dinâmico, próspero, investindo, realmente, é um dos lugares que dá esperança econômica ao Brasil e poucas semanas depois eu fui para Crateús, na fronteira do Ceará com o Piauí.

A minha primeira dúvida em Crateús, quando eu comecei a olhar um pouco é como é que vivem essas pessoas? Como é que chega dinheiro em Crateús? Depois de fazer algumas perguntas eu descobri que só tinha duas fontes de renda na cidade: Batalhão do Exército e os aposentados rurais. Por mais comida que você dê a Crateús isso não tem nenhuma atividade econômica. Se não se encontrar uma atividade que eles possam fazer e gerar renda, eles vão continuar vivendo miseravelmente indefinidamente e aí você começa a olhar a quantidade de crianças e bebês nascendo em Crateús, mas a maior parte de mães adolescentes e não tem nenhum programa de planejamento familiar. Depois, não dá para ficar surpreso de que a coisa seja tão ruim, precário. É um programa de planejamento familiar gravíssimo.

Boa parte de mães adolescentes no Brasil não gostariam de estar tendo os filhos se tivessem meios de formação para fazer o planejamento. Então, os pólos estão aí, quer dizer: Lucas do Rio Verde e Crateús, eu acho que representam os dois extremos do mundo rural brasileiro. Crateús é um lugar completamente artificial, porque a pessoa chega lá transferida de fora. Não tem uma educação digna desse nome. Não tem formação de capital humano. Pelo contrário, tem um crescimento populacional completamente aleatório e a pobreza se perpetua e não é desse governo nem do anterior, imagino que Crateús seja assim desde que existe, aliás, provavelmente, só existe porque o Batalhão do Exército está lá.

Papel do terceiro setor na busca pelo futuro, várias perguntas sobre esse assunto.

Giannetti -
Eu acho que é fundamental num país com as dificuldades sociais do Brasil. Dadas as deficiências do nosso setor público, realmente, é fundamental que a sociedade se organize, se mobilize e encontre maneiras de atenuar, eu não acho que vá resolver, mas, pelo menos atenuar essas situações dramáticas que a gente observa na realidade brasileira. Sempre com esse cuidado, quer dizer, tentar criar condições de superação do problema e não cordões umbilicais de parasitismo, que vão aliviar um pouco o sofrimento no curto prazo, mas não resolvem o problema.

Público - ...(Inaudível)...

Giannetti -
Uma das pérolas de políticas sociais desastradas no Brasil foi a história de um programa social que dava alimentos, dava leite para toda mãe que tivesse filhos subnutridos. Então, a mãe vinha até o posto de saúde, mostrava o filho subnutrido e aí ganhava leite, levava para casa. Eles começaram a ver que por mais leite que dessem à mãe, continuava vindo a mãe com o filho subnutrido. A mãe descobriu que era só manter o filho subnutrido para continuar ganhando o leite.

Outra fantástica, essa do governo Sarney, mas este governo está chegando perto. Uma declaração oficial do governo de que na reforma agrária as áreas de conflito terão prioridade. Quer dizer, quer incendiar o país, diga isso. Você pode até fazer isso e deve talvez fazer isso, mas anunciar publicamente que o conflito é a condição de antecedência na reforma agrária e agora está - eu acho que a questão da reforma agrária, o que está, realmente, em jogo hoje é o seguinte: o Fernando Henrique Cardoso e o governo dele fez uma lei, segundo a qual, terra invadida está excluída da reforma, exatamente para não incentivar a invasão, ou seja, invadiu? A lei terminantemente exclui a expropriação dessa terra. Isso está sendo testado pelo MST. Se o governo indicar que a invasão é o caminho da expropriação, podem se preparar porque o número de invasões vai crescer exponencialmente. É inevitável.

Folha - Uma pergunta: como é que Portugal e Espanha saíram das ditaduras de Salazar e Franco e encontraram um patamar de crescimento e de igualdade e os países da América Latina e o Brasil, em especial, não conseguiram?

Giannetti -
Olha, Portugal, que eu acompanhei um pouco mais demorou. Não foi logo depois que saiu da ditadura. Portugal era um país desenganado. Eu me lembro de estar em Portugal, em 1983/84, uma das coisas que mais me chamou a atenção é que você não via jovem. Só tinha gente adulta ou idosos. Aí eu comecei a perguntar: mas, cadê os jovens? Ah, estão todos na França, estão todos na Alemanha trabalhando. Não tinha jovens, era um país desenganado, completamente sem horizonte. Poucos anos depois eu voltei, pontes sendo construídas, jovens, mercado de trabalho aquecido, o que tinha mudado? União Européia.

Portugal se viabilizou e se organizou para pertencer ao bloco europeu e passou a receber recursos e passou a inspirar confiança nos investidores pelo fato de agora ser plenamente europa. A virada de Portugal - Espanha eu acho que é outra história e eu não conheço bem, mas -, foi a União Européia, na época chamava Mercado Comum Europeu. Portugal virou completamente, os jovens começaram a voltar, o país começou a crescer, recebeu investimentos. Por duas coisas: ele se organizou internamente para poder ingressar. Ele acatou todos os requisitos. Não ficou dizendo que a Alemanha era imperialista, estava impondo regras draconianas para que o país tivesse adesão etc., fez o dever de casa e passou a inspirar confiança dos empresários e dos investidores. Naturalmente, o país se relançou. Se Portugal ficasse encolhido dizendo: não, jamais vou aceitar, me sujeitar ao imperialismo germânico, que domina com mão-de-ferro as condições de entrada na União Européia, Portugal estava ainda como eu o vi em 1983: um país desenganado.

Folha - Bom, a gente está chegando ao final do debate, eu peço perdão às pessoas que não puderam ter suas perguntas encaminhadas aqui. Eu vou encerrar com uma pergunta interessante que é: o país do futuro ficando velho, porque a população já não é tão jovem. Esse debate tem alguma importância para os idosos?

Giannetti -
Eu olharia por uma outra ótica, Márcio, eu acho que o Brasil está alcançando a estabilidade demográfica. Isso é uma ótima notícia. Uma das coisas mais sérias que ocorreu no Brasil e que não está nos jornais, porque são dessas coisas que ocorrem ao longo de muito tempo. Não dá manchete. A Folha nunca vai publicar uma manchete sobre a explosão populacional do Brasil no pós-guerra. Não é notícia do dia-a-dia, mas o Brasil é um país que, em quatro décadas e meia ou seja de 1950 a 1995 triplicou a sua população, literalmente. As consequências sociais disso são enormes. Um país que triplica de 50 para 155 milhões de habitantes em quatro décadas, está fazendo uma enormidade.

E as consequências disso estão aí conosco. Eu acho que agora nós estamos terminando a transição demográfica. Eu não sei o número, precisa ver depois, foi de 50 para hoje nós estamos com 175, em 95 devia ser mais ou menos isso 155, triplicou em 45 anos é 150. É de 50 para 150 entre 1950 e 1995 é isso, hoje nós estamos com 170. Nós estamos chegando ao equilíbrio demográfico. Isso vai ser um alívio enorme para a sociedade brasileira, inclusive, para a formação de capital humano, porque tem muito menos gente para ser educada e para receber investimentos e atenção da saúde pública.

Agora, nós temos que começar a nos preparar na outra ponta também. Vai começar a ter mais idosos e mais pessoas em idade avançada. O que mais preocupa hoje, socialmente, é que o caminho brasileiro na transição demográfica é muito perverso. Caiu a fecundidade nos níveis de maior escolaridade, nas mulheres de maior escolaridade, de maior renda e não caiu tanto a fecundidade nas mulheres de menor renda e menor escolaridade. Então, há um diferencial de fecundidade muito grande. É uma coisa que ocorre em toda transição demográfica, mas no caso brasileiro, dada a enorme desigualdade da nossa sociedade, a terrível desigualdade da nossa sociedade, esse diferencial abriu muito, esse diferencial de fecundidade por escolaridade e nível de renda da mãe.

E, um outro dado, que eu acho muito preocupante: é a questão da maternidade precoce. O Serra, quando era ministro da Saúde, mandou fazer um levantamento no SUS, na rede de hospitais públicos do país - eu tenho até o número aqui exato -, quantas mães com menos de 19 anos davam à luz na rede de hospital público do pa'si, num anos. Ele chegou num número que era exatamente o seguinte: - isso em 1998, um ano não muito diferente dos outros -, 698.439. Dá quase 2.000 partos de mãe adolescente, por dia, no Brasil. Isso é da maior gravidade. Nós sabemos, por todos os indicadores sociais, que as famílias quebradas, ou seja, chefiadas por mulher, sem pai, o chefe de família e mães muito jovens são aquelas que têm pior condição de dar futuro a seus filhos.

(...)

caderno Sinapse, nós vamos ainda estar nos perguntando: o Brasil será sempre o país do futuro?

Folha - Parabéns, Eduardo, muito obrigado pela presença de todos. E, com essa palestra encerramos a Semana Sinapse, muito obrigado.

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