Folha Online sinapse  
30/09/2003 - 02h06

Íntegra: "O homem precisa mesmo se apaixonar?" (perguntas)

da Folha de S.Paulo

Confira abaixo a segunda parte da transcrição da palestra "O homem precisa mesmo se apaixonar?", com o escritor Carlos Heitor Cony, no terceiro dia da "Semana Sinapse", mediado pelo ombudsman da Folha, Bernardo Ajzenberg.

Folha - Bom, tem já algumas perguntas aqui, a primeira delas...

Cony -
Não é por que o Paulo Coelho entrou na Academia, não, não é?

Folha - Não, ainda não, não chegou ainda.

Cony -
Não, pelo seguinte: a gente vai fazer palestra aí, estava falando há pouco com o Bernardo, "Galáxias da Andrômeda", aí faço pesquisa, estudo Astronomia, consulto internet, aí falo duas horas a tensão que a Andrômeda está exercendo na galáxia da Via Látea, o Buraco Negro vai sugar o universo todo. Aí a gente diz: bom, alguma dúvida? Uma pessoa levanta e dedo por que o Paulo Coelho entrou na Academia? Não sei. (risos).

Folha - É mais difícil responder do que a pergunta desta palestra, não é? É sobre o ciúme. O ciúme combina mais na paixão ou no amor? Você acha que o ciúme faz bem? Acrescenta tempero à relação?

Cony -
É, o ciúme no amor é o tempero, sem dúvida nenhuma. Agora, não sei, eu tenho a impressão, é uma manifestação basicamente de amor próprio. Aliás, se a gente for pensar bem o amor em si é o amor a si mesmo. O indivíduo transfere para outra pessoa e procura fazer dele então intercâmbio pacífico com essa outra pessoa. Aí então o amor é um sentimento bom, positivo. Já a paixão não, a paixão é o contrário disso. A paixão não é o amor da própria pessoa, pelo contrário a paixão é de (...) apaixonado, tem certeza absoluta que está no caminho errado. Tem certeza absoluta que está errado e que a gente não vai levar para nada, por isso que ele acaba e aí é que está a grande atração. Eu não diria que é um tempero. Tempero de sexo, tempero de amor são outros temperos, a paixão é, realmente, é um gênero diferente, não é um grau e o ciúme é uma manifestação de amor, não de paixão, porque a paixão, na realidade, não é ciumenta. De tal maneira a paixão é possessiva, é total, é integral, que ela dispensa o ciúme. A pessoa só por...

(...)

Folha - Fale-nos sobre sua relação com a Mila, sua ausência e o afeto animal/homem.

Cony -
Bom, aí seria um caso de amor, não é? Um caso de amor, o exemplo diz, ausência da Mila, enfim, a Mila é minha cachorra (risos).

Folha - É para quem não sabe, talvez, algumas pessoas não saibam a Mila é uma cadela que o Cony teve, se não me engano durante dez, quase 13 anos, não é? E que a morte dessa cadela foi um dos fatores, ele sempre declarou isso em algumas oportunidades...

Cony -
É, foi, foi, exatamente.

Folha - Que desencadeou, inclusive, a volta dele à ficção.

Cony -
Exatamente, exatamente, eu sempre tive ódio de cachorro, mas ódio mesmo, não gostava de cachorro. Um dos meus remorsos é quando eu já estava casado, ia visitar minha mãe. Minha mãe tinha uma porção de cachorros, telefonava para ela e dizia: vou aí, mas prenda os cachorros. Eu não gostava de cachorro aquele bafo, cheiro, tinha pavor de cachorro. Minha mãe fazia minha vontade, queria ver o filho então amarrava os cachorros lá e assim que eu a visitava. Até que um dia eu ganhei um cachorro.

Ganhei um cachorro que eu detestei logo no início, na primeira noite, era pequenino, tamanho um pouco maior que esse copo, não é? Ele começou chorar muito, eu botei ele no banheiro, prendi no box, chorou dei Norax(?) para ele. (Risos). Diluí um comprimido de Norax(?)(?) dois miligramas e o cachorro, então, ficou coitadinho, mas ficou, cachorro pequeno tem aquele..., era uma cadela assim pequenina, só que me irritou muito. No dia seguinte eu levei de volta para quem tinha me dado, ninguém quis receber de volta. Eu disse: bem, então, eu vou abandonar esse cachorro. Pensei em abandonar o cachorro, mas aí eu fiquei um pouco, entendeu? Disse: é chato, jogar no lixo, não é? A minha monstruosidade não dava para tanto. Eu disse: não, vou fazer o seguinte: vou para a casa da pessoa que me deu e vou deixar o cachorro lá. Queira ou não queira, assim como ele me deu à minha revelia, eu devolvo à revelia dele. Fui lá em Teresópolis, aí o cachorro já tinha duas semanas, já estava um pouquinho maior.

Deixei o cachorro lá e disse: olha, eu vou-me embora, quando eu estava entrando no carro, eu vi um bichinho entrando dentro do carro. Quer dizer, com três, quatro meses aquele bichinho já sabia que eu era o dono dela. Então, aí foi diferente, aí é que houve, realmente, uma relação inicialmente muito amistosa, depois afetuosa, depois muito amorosa. Treze anos depois, nesse tempo eu deixei a literatura, achava que a literatura era uma perda de tempo, aliás, eu acho até hoje (risos). Quando a gente a gente não tem nada para fazer a gente faz literatura. Se eu tivesse alguma coisa mais interessante para fazer, eu faria, mas não estou falando simples frase não, é porque é verdade, tanto que eu passei 23 anos sem literatura e me dei muito bem. Eu tinha (...) aliás, qualquer expressão de arte é uma forma de encher o vazio da gente. Um homem feliz, um homem de bem consigo mesmo não faz a Nona Sinfonia, pode estar certo disso.

(...) da Sinfonia, pega um Wagner, um Mahler, pega um Debussy, vocês sentem que uma pessoa feliz não faz aquilo. Você pega um Machado de Assis, pega um Joyce, um Bruxe(?), um homem feliz não faz aquilo. Então, como eu estava mais ou menos numa fase feliz, não precisava da literatura e, realmente, ai vivi com a Mila, a Mila aí teve cria, teve filhos, não meus (risos) não chego a esse ponto, mas ela cruzou e eu fiquei com uma das filhinhas dela, ficamos dois então e fui dando conta da minha vida até que de repente entrou, ainda falei há pouco da finitude, não é? Ela é finita como também sou finito, quando ela entrou naquela fase derradeira ela era muito apegada a mim e ela então não queria que eu dormisse. Era ruim, porque se eu apagava a luz, ela começava a chorar.

Eu já não tinha mais coragem de dar Norax(?) para ela, já tinha um histórico com ela, já tinha uma vivência com ela muito grande, ela me pedia, eu impedia aquilo. Então, eu disse: bom, vou ficar de luz acesa. Mas ficar de luz acesa, eu ia ler, mas lendo me dava mais sono ainda, porque depois de certa hora a leitura é chata pra burro. Então, nesse ponto coincidiu também com o computador. Então, eu comecei a escrever uma porção de coisas, a adiantar serviço, escrever cartas para pessoas que não existiam, uma coisa assim e ela me via, ela ficava perto de mim, praticamente aos meus pés, mas quando eu ameaçava parar, ela começava a gemer.

Então, eu tinha que dar Novalgina a ela, injetava, ela já estava entrando naquela fase terminal. Aí o computador ali e ela ali, eu não podendo dormir, eu dormia de dia, ficava dormindo de dia, porque de dia ela se distraía com outras coisas, de noite ela só tinha continuação(?) a mim próprio. Então, comecei a fazer umas recordações. Agora, interessante quando mandei para a Cia. das Letras o livro original, eu mandei com as anotações todas da Mila, eu comecei, na realidade, com o diário do fim da Mila a doença dela, o que ela fazia, o que estava sentindo e aquilo que eu achava que ela estava sentindo e, ao mesmo tempo eu parava e aí engatava uma história contava de meu pai, contava de minha vida passada, não tinha noção de que estava fazendo romance.

Daí que eu botei "Quase Romance", porque não é exatamente um romance. Agora, quando o livro foi ser publicado, então, na conversa com os amigos, com o editor e eu próprio, resolvemos tirar todas as relações com a Mila, todas as citações da Mila. Mas se eu botasse as citações da Mila - um dia talvez ainda faça essa edição -, eu guardei no computador, eu faço para mostrar que o homem que evocava seu pai estava realmente amando uma filha, ou seja, eu tenho três filhas, mas a Mila eu tive com ela uma relação que nunca houve com mais ninguém. Quando falam muito assim no amor de Deus, eu também, quando eu falei, ainda há pouco, que não entendia Vida, Paixão e Morte de Jesus Cristo, também nunca entendi o primeiro mandamento da Lei de Moisés: Amar a Deus sobre todas as coisas. O que é sobre todas as coisas? Amar a gente sabe o que é, mas sobre todas as coisas. Era coisa que eu nunca entendi direito e ninguém entende, pois bem, eu amava Mila, acima de todas as coisas. Quer dizer, a Mila então para mim foi um Deus, um Deus finito, como eu sou um homem finito. (aplausos). Essa pergunta é chata pra burro.

Folha - Tem inúmeras perguntas aqui, não sei se vou poder fazer todas. Vou tentar aglutinar aqui algumas. É possível se reapaixonar pelo seu par ou mesmo pelo marido ou esposo ou vice-versa?

Cony -
Não, creio que não, pelo menos no meu caso não. Nunca houve esse caso de de, porque é uma chama, não é? O (...) comparava a paixão a um fósforo que se acende. Você risca o fósforo, ele acende e não acende outra vez. Ele dura o tamanho da paixão. Ele não revigor, não, a paixão não tem. O amor sim. O amor você pode amar outra pessoa, amar menos, depois amar mais, enfim, tem gradações, tem graus. A paixão não. A paixão é um gênero diferente que não tem grau nenhum, a paixão ou é paixão ou não é paixão. O (...) aquele verso que eu recitei ainda há pouco do poeta francês: "La pasion será conpulsive où non sera pas". Ou ela é convulsiva ou não será paixão. Então não há, realmente, para onde haver o segundo tempo da paixão, a paixão só se consome no primeiro tempo. O segundo tempo da paixão já e outra paixão. Essa é que é a grande atração da paixão.

Folha - Como o senhor define o amor de Roberto Carlos por sua falecida esposa?

Cony -
Essa é pior do que a do Paulo Coelho, ouviu? (risos).

Folha - Você tem direito de não responder, evidentemente.

Cony -
Não, não, não vou responder pelo seguinte: falecida esposa, não sei, não sei, sinceramente, não sei.

Folha - Tem um colega que se diz capaz de segurar uma paixão, no sentido talvez seu começo e assim poder eliminá-la. Você acha isso humanamente possível? Quer dizer, é possível o homem segurar a paixão, contê-la?

Cony -
Não, então não é paixão. A paixão, realmente, é um sentimento independente da razão. Kant dizia que a paixão é uma inclinação despropositada do ser humano para aquilo que não é racional. Então, não há por onde controlar a paixão. Se a paixão é controlada ela vira amor, ela vira outra coisa qualquer. O que fez, inclusive, o delegado Fleury dizer que o passional não merecia a pena de morte era exatamente isso, porque a paixão não tem controle.

Folha - Acho que essa última frase sua, inclusive, responde só para considerar aqui é uma pergunta que dizia que a paixão admite a morte do seu próprio objeto.

Cony -
Admite sim, pelo contrário, é um grande alívio, não é? É um grande alívio. Daí que os apaixonado costumam matar o objeto da paixão. Por quê? Porque matando o objeto da paixão acaba aquela catarse. É muito comum o apaixonado matar. Aliás, o ............ tem uma frase disso: só acredite na palavra ama. Mas, na realidade, se refere talvez a paixão. Quando a pessoa ama e mata é porque a pessoas às vezes fica livre. O amor não mata. Quem ama não mata. Agora, quem está apaixonado mata. Se não mata fisicamente, fisiologicamente, mata de alguma forma o objeto da paixão.

Folha - É possível viver apaixonado por coisas, acontecimentos da vida e não necessariamente pelos humanos?

Cony -
Sim, há determinadas causas. A causa revolucionária, a busca revolucionária da história, a gente pega os Spartacos lá na antiguidade, Guevara nos tempos modernos, não é? Pessoas apaixonadas, tomadas. Esses terroristas, esses suicidas, fundamentalistas religiosos ou políticos que se dão a uma causa é um tipo de paixão, fora da razão.

Folha - É possível jamais se apaixonar? É possível alguém jamais se apaixonar?

Cony -
Sim, as baratas não se apaixonam (risos). É muito comum, quando a gente tem algum relacionamento a mulher dizer para a gente: eu não tenho sangue de barata. É isso aí. Barata não se apaixona.

Folha - Aqui já mudando um pouquinho de campo: há muitos personagens arrependidos na história do Brasil? Foram apaixonados ou só odiados. Não sei exatamente a quem a pessoa que fez a pergunta se refere, mas se você puder inferir alguma coisa, a partir daí.

Cony -
É difícil, na crônica de hoje eu falo: Os Arrependidos Se Arrependem do Arrependimento, não é? Daí que hoje não me arrependo de mais nada. Porque depois eu vou me arrepender do meu arrependimento, então, eu já não me arrependo de mais nada. Agora, o problema do ponto de vida política brasileira, acho que a história do Brasil tem vilões e tem heróis, mas qualquer pais tem vilões e heróis. E outra coisa, não são os vilões e heróis que fazem a história, a história é feita pela turba, pelo baixo clero, pela massa. Os vilões da história e tão momentos, momentos deveras importante, mas não são eles que fazem a história. quem faz a história é o homem comum. É o homem medíocre na expressão de Una ........

Folha - É a gente saiu um pouquinho do terreno mais pessoal. Na sua opinião Lula está apaixonado pelo poder? E colado a isso, na sua opinião, o PSDB tem amor ou paixão pelo poder?

Cony -
Bom, paixão política é um elemento de bastante... É um imã que atrai muita paixão. Agora, não posso dizer a você, precisar exatamente até que ponto. O Carlos Lacerda dizia que o poder embriaga mais do que vinho. É poder ter o poder. O poder é até certo ponto fescenino. Ele é uma coisa lasciva. Tem pessoas que têm mania pelo poder de forma lasciva. Não sei se esse será o caso do Lula. Evidentemente, o Lula está se aproveitando bastante, está se lambuzando bastante, comendo esse mel, que é um mel doce, parece, para quem gosta. O Fernando Henrique era mais consciente disso. O Fernando Henrique, ele gostava do pode e muita gente gosta do poder, mas o Lula é uma pessoa que procura(?) um pouco, devido a origem dele, a ascensão dele. Enquanto o Lula teve uma vida, digamos assim, vertical, o Fernando Henrique teve uma vida um pouco horizontal e é natural que o Lula, essa liturgia do poder em volta dele, ele deve estar tendo grandes momentos também, mas, ao mesmo tempo deve ter grandes aporrinhações. E eu entre as aporrinhações e o prazer, eu acho que as aporrinhações são maiores.

Folha - Vou juntar duas perguntas aqui: a paixão passa, se ela não passar, você acha que ela pode, às vezes, se transformar em amor?

Cony -
Ah, dificilmente, porque quando a paixão passa, a pessoa tem desprezo pela pessoa apaixonada é uma forma de desprezo a si mesmo. Enquanto o amor não, o amor é possível a pessoa deixar de amar e quando deixa de amar vai ter sempre respeito. Já as pessoas apaixonada não, as pessoas apaixonadas quando a paixão acaba tem a tendência a ter um desprezo muito grande pelo objeto da paixão. Isso eu digo pelo Fluminense, não é? (risos) Eu vejo o Fluminense falido, perdendo, último, depois, mas cadê aquele Fluminense que foi minha paixão quando eu era criança, não é? Eu queria ser Hércules, queria ser Batatais, aqueles jogadores daquele tempo e hoje eu tenho um desprezo muito grande pelo Fluminense.

Folha - É possível amar - aqui ele está falando de amor, não de paixão - três mulheres ao mesmo tempo?

Cony -
Ah, é, é, é possível, até mais.

Folha - Amar no sentido...

Cony -
Apaixonado não, paixão não. Paixão é uma só. A paixão é uma de cada vez. A paixão é como quando você vai no parque de diversão exercitar tiro ao alvo, tem aqueles patinhos que passam assim não é? Você não pode atingir todos ao mesmo tempo, você tem que escolher um patinho e dar aquele tiro pá, você derruba, depois vem outro, depois vem outro. Isso é paixão. Você tem que se concentrar. Até certo ponto você tem que odiar o alvo. Quando você se concentra bem no alvo, você dispara até o limite. Agora, impossível você com um tiro só abater todos os patinhos. Então, a paixão é isso, a paixão é individual. Já o amor não, o amor pode ser coletivo. Amor pode-se amar várias pessoas e várias coisas ao mesmo tempo.

Folha - Existem pessoas com personalidades mais propensas a se apaixonar do que outras.

Cony -
Sim, sim deve haver alguma coisa aqui nessa história porque tem pessoas que, realmente, tem uma tendência a se apaixonar a vida toda. Passa a vida toda se apaixonando . Mesmo algumas pessoas. Eu próprio já houve uma fase, não hoje, mas houve uma fase, aquela fase das paixões que eu, realmente, me apaixonava quase que diariamente.(risos). Não acabava. Apaixonava de dia, de noite já tinha acabado.

Folha - Para você, qual dos sentidos do ser humano é o que mais nos leva à paixão? Ou a paixão envolve sempre todos os sentidos?

Cony -
Não, eu tenho a impressão que, ah, pode ser que tenha uma relação com os sentidos, a paixão não tem sentido. A paixão não precisa ter sentido. A paixão não passa através dos sentidos nem do olhar, nem do ouvido, nem da pele, a paixão é uma coisa quase temporal. Paixão é paixão, é aquilo que eu falei ainda há pouco, parafraseando Pascal: a paixão tem razões que a razão não conhece, ou seja, a paixão está além dos sentidos. Por quê? Porque a paixão não tem sentido nenhum. E quando ela passa é que a gente descobre isso.

Folha - Como se diferencia o amor quando ele se transforma em obsessão, dependência ou até medo de ficar sozinho?

Cony -
Não, medo de ficar sozinho leva fatalmente a um amor de cálculo, assim, leva a um sentimento tranquilo, a um sentimento oportunista. A paixão não é oportunista. A paixão é gratuita. A paixão é completamente aleatória, ela vem, como diria Camões: nasce não sei onde, vem de não sei onde e dói não sei por que. A paixão não tem nenhum limite, não tem nenhuma explicação racional. Ela transita num território completamente fora de qualquer sentido, de qualquer sentido material, de qualquer sentido metafísico.

Folha - Verter, símbolo máximo do amor romântico, e Édipo, por exemplo, que mataram a si próprios e não o objeto de seus sentimentos amavam ou sofriam de paixão?

Cony -
Não, aí na tragédia grega, em geral, está citando personagens da tragédia grega é diferente porque é o seguinte: aí é condição humana no caso do Édipo, talvez o problema do Édipo seria a transposição para a literatura grega da fábula judaica da maçã. Porque o grande pecado de Adão e Eva, sobretudo, de Eva não foi a desobediência em si, foi querer saber mais, querer se apoderar da árvores dos frutos do bem e do mal. A serpente quando seduziu Eva - estou falando em termos de fábula - seduziu no sentido de: você, se comer dessa fruta será igual a Ele, a Ele o Senhor. Então, não foi exatamente as consequências, o objeto do pecado que criou o pecado original e sim a intenção, por que ela queria ir atrás daquilo, além daquilo, ela queria ser igual a Ele.

E, no caso de Édipo, daí que eu falo que é uma transposição grega da fábula judaica pelo seguinte: por que se Édipo tivesse ido a Tebas e quisesse consultar lá o oráculo, não teria havido drama, mas na medida em que ele quis saber alguma coisa a mais do que ele não devia saber, ele então entrou dentro do território da tragédia. Então, tanto no caso de Eva, como no caso de Édipo o que havia era, se ligam assim uma curiosidade. Uma curiosidade do seu próprio destino, ou seja, o ser humano, que não domina o destino, querer dominar o seu próprio destino. Querer saber o bem e o mal no caso de Eva e querer saber o que ia acontecer com ele no caso de Édipo.

Evidentemente, no caso de Adão e Eva deu a droga que deu, ou seja, ele ficou condenada a ter dores no parto. O Adão que não tinha muita coisa a ver, ficou obrigado a ganhar o pão com o suor do seu rosto e foram expulsos do paraíso terrestre.

E o Édipo também entrou naquele território terrível, teve que matar o pai, dormir com a mãe,terminando furando os olhos. O próprio furar os olhos do Édipo, significa aquilo que é o seguinte: ele já não queria ver mais nada, ou seja, não queria conhecer mais nada. Por quê? Porque o conhecimento - aí é outra coisa, quem fez a pergunta extrapolou um pouco pelo seguinte, no caso da tragédia grega é porque houve paixão. O grande núcleo da tragédia grega é saber a finalidade do homem é conhecer, é o conhecimento. é o logus e não a práxis. - Acho que eu estou falando difícil, não é? Mas, às vezes, é bom falar difícil porque nem eu mesmo me entendo, às vezes -, mas no caso do Édipo, ele queria conhecer o futuro dele. Se ele não tivesse ido a Tebas. No momento que ele, a peça começa, ele se desviando para ir a Tebas consultar o oráculo, aí é que está o crime dele, o resto tudo foi consequência disso.

Como também o fato da Eva e das mulheres hoje terem menstruação, terem filhos com dores, cesariana, enfim, toda miséria humana nasceu de quê? Da Eva querer ser, do primeiro casal querer conhecer o que o Senhor conhecia. Os dois casos são fábulas, evidentemente, não são histórias reais, mas mostra que o que desgraça o homem não é a paixão nem o amor é o conhecimento. Isso é bem profundo, heim? Santa ignorância. Ah sim, se a Eva aceitasse ser ignorante e se o Édipo tivesse passado, não tivesse entrado no caminho de Tebas, ele não teria matado o pai, não teria dormido com a mãe, não teria furado os olhos, na medida que ele foi querer saber o que não devia, o que não era da conta dele, ele se ferrou.

Folha - Você colocaria em risco um caso de amor para viver uma grande paixão?

Cony -
Não, de jeito nenhum. De jeito nenhum pelo seguinte: não tem que viver grande paixão, a grande paixão vem ou não vem. Ou ela é ou não é. Então, enquanto no amor você pode até certo ponto bitolar, você pode abrir a estrada, abrir portas, abrir janelas, a paixão, não, a paixão vem, ela é intrusa, ela invade e depois a paixão não tem troca. Enquanto no amor você pode trocar, pode estender, pode até amar duas pessoas ao mesmo tempo ou mais, a paixão não, a paixão, realmente, é absolutamente possessiva.

Folha - Duas perguntas juntas. É possível, é preciso haver reciprocidade entre duas pessoas na paixão e/ou no amor? Paixão virtual existe?

Cony -
Acho que não, paixão é uma coisa muito concreta e ela não exige mesmo reciprocidade. A paixão, pelo contrário, se há reciprocidade, a paixão já é um pouco, já está um pouco furada. O amor não, o amor implica, o amor recíproco é muito bom, há grandes momentos, há amantes na nossa vida pessoal. Em alguns momentos da nossa vida sempre tivemos amores recíprocos, mas a paixão não. A paixão geralmente é uma paixão unilateral.

Público - ...(Inaudível)...

Cony - Como é?

Público - ...(Inaudível)...

Cony - Amor platônico não existe, simplesmente não existe. Essa expressão amor platônico, é porque Platão criou uma... é um adjetivo muito mal empregado com o substantivo amor. Platônico é o seguinte: ele criou um sistema de filosofia, que as coisas não acontecem realmente. As coisas estão em alguma camada superior da atmosfera, da vida humana, que a gente não sabe o que é e nós estamos vendo representações físicas disso. Então, haveria o amor platônico no sentido de que: eu não amo você, mas lá de cima alguém determina que nós devamos ser amantes.

Então, eu amo você platonicamente, mas não encosto em você nem você encosta em mim. Isso não é amor. O amor pede uma certa guerra. O amor é uma luta. O amor não é (...). A paixão então é uma guerra em si. Não pode ser virtual pelo seguinte: porque o virtual existe virtualmente, ou seja, virtual seria no caso acho que platônico. Platão foi talvez o criador da internet, na medida em que ele imaginou que havia um universo acima da gente determinando as coisas. A internet é mais ou menos isso, apenas a internet é manobrada por nós ao passo que em Platão seria manobrada por deuses. Então, imagina-se que em vez dos hackers (...) por aí tivéssemos Vênus, Diana, os grandes deus mexendo na internet e mandando mensagem a você. Seria uma confusão muito pior do que nós temos hoje.

Folha - Duas afirmações aqui que são polêmicas: por que as mulheres nunca dizem eu te amo? Por que as mulheres têm medo de se entregar sentimentalmente, sofrer?

Cony -
Não, pelo contrário.

Folha - Eu falei que era polêmico.

Cony -
Conheço algumas, não é que dizem, escrevem, mandam bilhetes por internet, não é? Outro dia o Suplicy estava dizendo que meteu a mão no bolso e tinha uma porção de bilhetes: eu te amo, eu te amo. Isso o Suplicy, imagina, não é? (risos).

E outra coisa também, eu tenho a impressão que a pergunta está meio furada para mim, entendeu? E tem mais ainda, as mulheres tem mais uma tendência ao amor do que o homem. O homem é que se apaixona mais. Por quê? Porque o homem tem, talvez, justamente porque ele tem uma tendência à galinhagem, quando a galinhagem dele está muito, ele está exausto na galinhagem dele, de repente uma pessoa diz não a ele ou um obstáculo que surge no caminho dele, aquilo fica sendo o embrião de uma paixão. De amor não. As mulheres não, as mulheres tendem mais ao amor mesmo.

Folha - Sexo é melhor na paixão? E no amor é tedioso?

Cony -
Olha, sinceramente, eu acho o sexo é bom em qualquer situação, entendeu? Eu acho o seguinte: o sexo é uma coisa que não tem nada a ver com o amor, como também o amor eu tenho a impressão (...) Eu dou o exemplo típico do amor do Verter, aquela peça inicial do Goethe, ele tinha 25 anos quando escreveu Verter. Iniciou, não é? O romantismo no mundo iniciou com o drama do Verter. Os Amores do Jovem Verter, ele amava Carlota, que era mulher de um amigo dele e ele sabia que não podia ter sexo com ela, porque não podia trair o amigo dele, que era marido dela. Esse é o exemplo típico da paixão, do amor controlado e essa coisa toda. O sexo é bom de qualquer maneira. Agora, evidentemente, há temperos e cada um é uma questão individual.

Tem gente que gosta de sapato, eu não gosto de fazer amor com sapato. Nunca fiz, mas há gente, conheço gente é um filme do Buñuel em que a mulher faz amor com o sapato. O Nelson Rodrigues, para citar outra vez Nelson Rodrigues, o camarada faz amor com uma Mercedes Benz. É problema individual. Eu nunca fiz amor com sapato. Quando fiz amor faço com mulheres, se possível bonitas.

Folha - Por que você acha que o homem tem mais tendência para a galinhagem e a mulher não? Pergunta feita pela platéia.

Cony -
(...) a gente fica entrando na chamado psicologia de almanaque do homem. O homem tem uma certa importância, não teve as limitações que a mulher teve - agora não, porque agora com a pílula, tem toda uma cultura diferente -, mas até bem pouco tempo, eu peguei essa fase, não é? A mulher tinha receio de ser galinha, entre outras coisas para não ser considerada uma prostituta e também medo de gravidez, medo de ser expulsa da casa dos pais, enfim, a mulher é muito mais reprimida do que o homem, porque o homem sempre se atirou mais.

O homem tinha mais liberdade, era uma sociedade machista. A sociedade foi machista e continua machista até hoje. Mas está em fase de declínio. Hoje em dia a gente sente que as mulheres estão, não vou dizer: tomando o poder, mas, elas estão ocupando espaços que os homens estão deixando agora, por quê? Por que os homens são muito dispersivos e as mulheres são mais calculistas no bom e no meu sentido. Então, por isso, elas têm, realmente, menos tendência à galinhagem. Mas se são mesmo galinhas, são galinhas porque nasceram mesmo determinadas desde a fundação, já há oito(?) anos, elas foram feitas para ser galinhas, mas isso são poucas. O homem não. O homem já nasceu galinha por si, pela própria natureza.

Folha - Como você explica casos em que, após matar a pessoa por quem estava apaixonada, a pessoa que fez esse crime comete o suicídio?

Cony -
... quando a pessoa, eu fiz reportagem policial lá no Rio de Janeiro e aqui em São Paulo também. Fiz aqui dois ou três casos, nos anos 70 de crimes passionais, não é? Eu vi três casos de assassino que matou a mulher, bom houve um caso que foi a mulher que matou o homem e que se suicidou depois. Mas aí é o seguinte: é uma forma dessas pontas de, ao mesmo tempo, não ter o que fazer na vida depois de ajustar contas com o objeto da sua paixão e outra também no sentido do medo do que viria depois.

Não há exatamente. Agora, o verdadeiro apaixonado quando mata, ele mata para beber até o fim o sangue da sua vítima, ou seja, libertar-se daquilo. É uma forma de sair pelo ralo o objeto da sua frustração e assumir, evidentemente, a culpa daquilo. A pessoa que mata e depois se mata, crime duplo, essa pessoa, realmente, a paixão dele não era bem uma paixão, era mais um amor equivocado, ele pensava que era paixão. A verdadeira paixão é aquela gosta de ver a pessoa se exaurir no sangue até à última gota. E também exemplo dos equívocos, que as pessoas matam e se matam por equívoco. O exemplo mais famoso disso é Romeu e Julieta. A Julieta ficou adormecida, Romeu chegou, pensou que estava morta, se matou e quando a Julieta acordou e viu que Romeu estava morto, se matou também. Isso é uma tragédia e tragédia de circo. Não é tragédia da vida real.

Folha - Tem uma pergunta aqui que começa citando o poeta T. S. Elliot. (...) admirador da paixão não satisfeita e da dor muito maior da paixão satisfeita. A permanência da paixão está ligada a dificuldades, ausência, paixão é fome. Será que se mantivermos o campo passional tensionado de (...) impossibilidade etc., a paixão pode perdurar?

Cony -
Sim, acho que você vê está citando Elliot, não é? O caso de Elliot me parece ser um caso, realmente, de paixão. Não entro no mérito da poesia dele desse trecho citado, mas a vida dele é o seguinte: todo mundo sabe da vida dele como é. Como é que a mulher infernizou a vida dele. Não infernizou por maldade, infernizou porque era uma pessoa doente uma pessoa histérica e ele sofreu com isso. O caso dele foi de paixão, realmente, Não é à-toa que ele escreveu Terra Desolada.

Público - ... (Inaudível)....

Cony - Mas a tensão, dificilmente uma tensão dura muito tempo. Não caso do Elliot, caso pessoal dele, ele ascendeu socialmente na Inglaterra. Ganhou o prêmio Nobel e foi considerado o grande poeta do século. O grande drama dele tinha de amar a mulher e a mulher ser histérica como foi. Agora, você falou uma palavra bem, a tensão. Agora, ninguém aguenta tensão muito tempo, porque a tensão muito tempo ou leva à loucura ou leva, realmente, ao martírio, que é a própria definição da paixão. Enquanto o amor evita a tensão, a paixão procura a tensão. Aliás, o que é a paixão senão o amor tensionado?

Folha - Eu queria terminar com duas perguntas e pedir desculpas às pessoas que não tiveram suas perguntas contempladas aqui: é a seguinte, a primeira, Cony por mais que o Fluminense me faça sofrer, não consigo sentir desprezo...

Cony -
(...) sofrer (...) superei essa crônica.

Folha - Isso requer alguma explicação? Quer dizer, essa pessoa torce pelo Fluminense, mas não consegue sentir desprezo. Isso aparentemente contraria alguma coisa que você tenha falado.

Cony -
Talvez a palavra desprezo seja forte, não é? Eu vou citar então para o lado do Fluminense o Marcel Proust, o primeiro livro do Em Busca do Tempo Perdido. A paixão do narrador pela Gilbert(?) Paixão, depois vem várias fases que é a paixão se transformou em amor e tal, mas na fase mais apaixonada, ele passa na casa dela e vê uma sombra, uma silhueta na janela e imagina que ela esteja com um homem dentro de casa.

Ele, então, com aquele imagem que está sendo traído. O objeto da paixão está me tensionando, para chegar até à sua pergunta. Naquele momento de tensão, então, fica desatinado e começa a andar pelas ruas de Paris, um sábado à noite. Aquela Paris do início do século 20, ainda luz de gás, tudo meio bruxoleante, ele anda desgovernado vai de um lado do boulevar, dos dois boulevares está dentro dos Capuchinhos, não é, que são (...) Ele vai de um lado para o outro várias vezes, começa a andar, andar, andar, esbarra em todo mundo e o olho fixo dele pensando nas pernas e pernas da (...) e ressuscitando na memória dele, evocando na memória dele todos os momentos que imaginava ter com ela, os momentos bons, momentos maus e de repente aquilo lá acaba, explode numa bola de sopro. De repente ele esbarra numa mulher, pede desculpa, pardon (...) madame. Então, ele dá muito espaço, aí é que ele descobre que (...) Ele não conhece a mulher. Ele estava sofrendo por um mito. Ele estava sofrendo por uma idéia e não pela pessoa. Não tinha nada a ver. Quando ele parou e viu o objeto daquela mulher, uma mulher andando no boulevard, no sábado à noite, não tem nada a ver.

Então, é a chamada inconsciência da paixão. A paixão tem essa dose de inconsciência. Ela, às vezes, não tem nada a ver, nada a ver com o objeto em si. O amor não. o amor, como eu disse, pede reciprocidade. A gente ama quem a gente admira. No caso do Fluminense, aí eu volto ao Fluminense, hoje, eu quando esbarro, vejo, não só o Fluminense, mas quando esbarro hoje o que eu amei no passado e que eu não amo mais. Eu digo assim: mas foi isso o que eu amei? Foi isso que eu perdia a minha vida? Foi isso que me motivou a fazer tantas coisas, tantas besteiras na vida? E a gente vê que não valeu a pena. Isso no terreno da paixão. No terreno do amor não. No amor aí, sem querer repetir o Fernando pessoa, o amor sempre vale a pena. A paixão nem sempre, mas a paixão é mais gostosa.

Folha - Uma das receitas para emagrecer é se apaixonar. Como você explica a paixão que não é matéria substituir dessa forma ao material?

Cony -
Não sei se esse sistema de... prefiro para emagrecer fazer uma dieta de proteínas, dieta dos astronautas. Se eu for me apaixonar para emagrecer, realmente, estou perdido. Não vejo por onde. Evidentemente, quando a pessoa está apaixonada a pessoa vai de dieta, mas tem pessoas que vão até para a voracidade, ao contrário, não é? Tem pessoas apaixonadas que temem compensar ingerindo alimentos, inclusive gostosos, chocolates. Não vejo, não concordo, não é?

Folha - Mas de qualquer maneira o fundo dessa pergunta é a substituição de algo material pela paixão que é imaterial, não é?

Cony -
Não, a paixão não é bem imaterial, a paixão tem objeto um objeto definido. Enquanto os outros sentimentos talvez sejam um pouco imateriais, a paixão é uma coisa definida. Agora, uma coisa definida que tem apenas um leve traço de apoio da realidade. Se você se apaixona realmente, o caso da Gilbert, de O Tempo Perdido, ele estava apaixonado por um mito, uma cabeça, uma evocação, uma memória, um gesto, um olhar, um tom de voz e de repente esbarrou com aquilo tudo e não reconheceu. Então, há uma inconsciência, digamos assim, involuntária. Toda inconsciência no fim seria involuntária. Estou fazendo pleonasmo, mas há uma inconsciência no fato da paixão. A paixão, realmente, pertence mais ao território da inconsciência do que ao consciente. Aí eu cito Kant outra vez: é a recriação mórbida do objeto que condiciona a conduta humana contra a razão.

Folha - Eu queria só deixar aqui a última pergunta, que eu acho que o Cony talvez não possa responder, mas achei curiosa: dr. Cony qual é o telefone do seu consultório? (Risos).

Queria agradecer, obviamente, a presença do Cony e de todos vocês. Muito obrigado Cony. Obrigado por vocês estarem aqui.


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